quinta-feira, março 27, 2008

Dia Mundial do Teatro

Tenho andado às voltas com várias etimologias para o meu trabalho e isso tem-se visto por cá também... A que está na origem da palavra "teatro" é um dos muitos verbos gregos designativos da visão, "théaomai".
Porque hoje "ver" não significa quase nunca, infelizmente, "deixar-se tocar por", é urgente que se dê valor ao Teatro. E não apenas no dia 27 de Março de cada ano em que todas as peças nos aparecem, até porque "é grátis", não, nas Escolas, nas Bibliotecas, nas Autarquias, nas Juntas, em cada casa e a cada fim-de-semana...

Segue-se um excerto de uma peça de um amigo, que me encanta a cada nova leitura, uma peça de teatro premiadíssima e representada em toda a Europa e no Brasil, que nunca teve a honra, ou a sorte, das tábuas de um palco português...

"JUDITE
Se fôssemos ver as estrelas cadentes?
ELIAS
Quando eu era pequeno…
EMANUEL
Não fiques melancólico, filho.
ELIAS
… pensava que elas iam rebentar em cima de mim.(…)
MARTA
O espaço é muito grande...
JESSÉ
Cabemos nós, cabem as estrelas...
MARTA
O que mais há no espaço é vazio."

Um Forte Cheiro a Maçã, Pedro Eiras

segunda-feira, março 24, 2008

Anatomia da Felicidade



Beatriz - do Latim, beatrix, -icis, de beatus, -a, -um (adj.) : feliz

quarta-feira, março 19, 2008

De círculos, ciclos, ilhas e re(en)contros


Encontrei a Marta no outro dia no Hiper Sá. É incrível como toda a gente pára por lá, não é por se estar na ilha, em todas as cidades há locais frequentados por toda a gente, no fundo as ilhas não existem, ou quando muito existirão onde, paradoxalmente o maior grau de evasão é possível, dentro...

Não a vi à primeira, ando muito desassossegada com a doença da minha mãe - fui lá de fugida com o meu pai entre uma e outra toma de medicação da minha mãe - andava, e ando, com a cabeça na lua (ou em coisas bem mais importantes que a lua, a terra e as pessoas que empurram carrinhos de compras à saída do corredor do hipermercado em que eu por acaso estou a entrar).

A Marta olha para mim de alto a baixo, há coisas que nunca mudam, e no fim lá solta o mais baixinho e cabisbaixo dos "Olá Joana" do mundo, mas poderoso o suficiente para me trazer de volta donde quer que eu estivesse e reflexivamente, ainda não me tinha apercebido que era ela, retribuir-lhe o "Olá"... "Marta, és tu, há quanto tempo, nem te estava a..., está tudo bem contigo?" Confesso que a sequência me saiu demasiado sequencial, tipo ladainha, e talvez por isso ou pelo tempo, ou pelas situações, por nós próprias também, ela terá depreendido que era retórica a interpelação. E disse que sim. E sorriu. E prosseguimos os nossos caminhos, opostos, quase imediatamente. Não era, porém. Não era. Queria mesmo saber como estava. Queria dizer-lhe que lamentava o falecimento relativamente recente e inesperado do pai, por acaso médico da minha mãe, queria falar-lhe da minha mãe agora e de mim, e de todas as coisas que são importantes, que a adolescência ficou lá atrás, numa outra vida, que o tempo passou e nós mudámos também, queria não ter dado pelo apagamento do sorriso e do brilho especial do olhar, queria trocar contactos e tomar café e... Não consegui. E acho que a vida é mesmo assim.

Deviam ensinar-nos na escola que ciclo é a redução de círculo e que não vida nunca andamos aos círculos mas percorremos um caminho, mais ou menos recto, composto por ciclos. A imagem do Principezinho é muito feliz neste sentido. Que volta e meia o passado bate-nos à porta em forma de reencontros absurdos de tão inesperados e de recontros de situações de perda, não necessariamente de doença, que nos agridem e nos minam a confiança no futuro, deviam ensinar-nos que não vale pena ter medo, que os nossos medos mais secretos estão sempre lá, à porta, prontos a receber-nos. E que o verso em branco do futuro está mesmo, mesmo, mesmo, no início e no fim, sempre, em branco.

quinta-feira, março 13, 2008

Os meus poetas

Se alguma vez algum, agora este. Amigo de um amigo. Amigo do Pedro. No mês da poesia, mas não só, sempre:

trago dentro de mim um mar imenso
feito de vagas tristes
e sonhos vagos

o horizonte é uma manhã
que eu quis minha para ser eu

e para porto de abrigo escolhi uma tarde
que soubesse chorar a morte do sol



arranca-me do teu corpo
que eu não suporto a dor de ser em ti


há dias em que acordamos e percebemos tudo
o recorte das cidades no horizonte
a distância que há nos caminhos que rasgam os corações
como se fossem searas de trigo
o nome de certas coisas que só sentimos num abraço

depois percorremos a mão pelo granito
como se fossemos o tempo
e como se a vida não fosse mais do que uma claridade
que invade pela frincha da porta o quarto escuro

é então que descobrimos
num desses rostos com que cruzamos o olhar
que a vida podia ser outra
e que seríamos felizes num outro sorriso
se lhe entregássemos inteiros os nossos lábios

há dias assim
em que acordamos e percebemos tudo
como se tudo nos estivesse imensamente próximo
como se cada dia nascesse e morresse num abraço
como se a vida coubesse num poema

José Rui Teixeira, Quando o Verão acabar

quinta-feira, março 06, 2008


Não era para um kit kat, nem sequer para uma cola. Era para deixar a cama, para deixar de focar e desfocar o tecto branco do meu quarto, para deixar de suar e ver tudo subitamente animado e inquieto à minha volta quando tenho de me levantar, ou para deixar de demorar uma eternidade para chegar à casa de banho, enfim, para deixar- nem que fosse por um pouco - de estar doente e sair da cama um bocadinho, para olhar, para respirar - como quando, na Biblioteca, estou cansada de trabalhar.
Na Biblioteca, quando estou cansada de trabalhar, o meu olhar migra dos livros e fixa-se, quase sempre, quase naturalmente, na janela, no mundo fora da janela, no verde, no sol, nas minhas memórias e nos meus projectos de verde e sol. É uma pausa boa, revigorante.
Um dia, já nem me lembro por que razão específica, se calhar o dia estava cinzento e chovia, em Braga chove sempre tanto!, tive que me deter com o mundo fora dos livros, dentro da Biblioteca. E não foi difícil. Tanta coisa acontece ali! É a adolescente mal-formada que por despeito maltrata a funcionária, é o funcionário que sabe onde estão todos os livros mas que tem um problema (grave) com o sistema informático, são as pessoas que confundem a Biblioteca com a esplanada, é um outro funcionário que não sabe falar inglês e deixa ainda mais perdido um anglófono de passagem, é a estagiária da sala da catalogação que chora a manhã toda porque a mandaram para ali, para a sala de leitura, é a improvável história de amor do funcionário desalinhado com a menina certinha...
Do início: a menina certinha é certinha no chegar, no estar, no pedir, no falar, no trabalhar, no vestir e no calçar. A menina certinha é séria, muito séria. Séria a passar no corredor, séria a dirigir-se ao computador, séria a ler, séria a escrever, séria nos castanhos e nos pretos dos casacos e das saias, séria nos tacões altíssimos dos sapatos de uma outra era, séria no cabelo, escorrido, risca a meio, séria na vontade, séria no empenho, séria no trabalho.
Quando saio para almoçar, fica; quando chego, está. Não sei se almoça, se alguma vez se levanta da cadeira ou desvia o olhar dos livros. Para mim, ela está sempre ali, muito direita, muito concentrada, quase sobre-humana.
Todos os dias, pouco depois de ter regressado do meu almoço, duas ou três da tarde, ele vem cá acima. E isso é estranho, conheço-o, é o funcionário da sala de baixo, um que vou importunar muitas vezes, demasiadas para ele, ao requisitar livros que sempre se encontram ou no depósito, ou na catalogação, ou nos fundos especiais, livros que fazem com que ele tenha de interromper o que quer que esteja a fazer no computador e... Bem, ele é uma espécie de Lucky Luke de mal com o mundo: substitua-se o look relaxado deste por um de desprezo visceral pela Humanidade inteira et voilá! é ele, o mesmo cabelo, a mesma cara, a mesma ausência de formas... Então, todos os dias ele sobe, cumprimenta, (coisa estranha!), a pessoa encarregue da nossa sala, e, escusemo-nos a compreender, faz um pouco do trabalho dessa pessoa (!) muito agitado: verifica os livros que estão no carrinho, à frente da menina certinha; coloca-os nas respectivas prateleiras, à esquerda da menina certinha; alinha livros, tira, põe, mexe e remexe nas prateleiras e só depois vai à janela, à direita e à frente da menina certinha, e olha para o dia. Às vezes, também, nos dias em que, suponho, não conhece ou não é tão próximo da pessoa cá de cima, sobe as escadas e fica dali a olhar para ela, muito parado.
Se a mim o que chamou primeiramente a atenção foi o voluntarismo extemporâneo que originou o cirandear localizado do rapaz, tenho para mim que a menina certinha só se apercebeu de alguma coisa quando deu com os olhos da estátua parada ao cimo da escada coladíssimos aos seus. E, acto reflexo, encaracolou-se. E isso não está certo. Nada, nada certinho. Mas foi o que aconteceu. Sempre. Encaracola-se, muito, muito, muito; encaracola-se sobre si mesma, sobre os livros, sobre o que estiver mais à mão. Mas ele continua a vir, menos vezes, é certo, mas duas pelo menos: ao iniciar e ao acabar o seu dia de trabalho.

Não me consigo decidir se é delicioso ou apenas um bocadinho triste, se é um delírio, inconcebível, improvável ou um milagre difícil, mas é motivo para uma pausa, coisa de poucos minutos, em que o pensamento esvoaça para o sítio, ali, ali onde a vida é jovem e...

segunda-feira, março 03, 2008

03 de Março

Não tenho escrito. Não escrevi a semana passada. Fiquei doente. Febre, a semana passada. Faringite, agora. Febre e faringite. Outra vez. Esta sensação horrível de opressão no peito a cada respirar e a impossibilidade de falar, de emitir um som sequer, garganta extremamente seca, toda em chama. Alguém se lembra do bonequinho verde? Voltou a acontecer. Pelas mesmas razões que eu optei por omitir na altura e chamar "Outono" e "viagens" e "stress". Aconteceu outra vez. Outra vez! E desta vez até podia chamar "Primavera" e "directas" e "stress". Mas não vou. Estou doente por causa de uma pessoa. A mesma da outra vez. Estou doente e é terrível esta constatação de haver no mundo uma pessoa capaz de me pôr fisicamente doente. (É maior o meu terror por o mal-estar ser físico, foge sempre ao nosso controlo um mal-estar do corpo, e a males emocionais estamos já todos habituados, bem ou mal, basta sair à rua e olhar para o lado.)
... de me pôr fisicamente doente ou de fazer com que *eu* me ponha fisicamente doente. No início e no fim de tudo estamos nós. Certamente.
De qualquer maneira, à distância de uma semana e mesmo doente, continuo a repetir baixinho, dentro, as palavras de Eugénio de Andrade...

Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.

Ontem, dia quase feliz, quando a febre já tinha passado e só tinha dores de garganta, fui ver O Feiticeiro de Oz com banda sonora ao vivo - maravilhas da técnica! - a cargo da Orquestra Nacional do Porto na Casa da Música. É verdade que era um programa para crianças, mas gosto imenso do filme, da Judy Garland e da Orquestra, além do que ainda não perdi, faço por isso, nem a infância, nem a adolescência, nem muitas outras fases, ideias e coisas que nem sei se fazem muito bem à saúde, mas enfim...
Então, ao meu lado, que um camarote é uma pequena família, mesmo quando são várias as famílias que o compõem, sentou-se um senhor com a filha. A Teresinha. Com o seu sobretudo à capuchinho vermelho a fazer pendant com os dois laços de fita vermelha dos totós, que qualquer capuchinho que se preze tem, naturalmente, a Teresinha viu o filme quase todo no colo do pai. "Coitadinha, t
ão longe de casa. Oh pai! Coitadinha!" E eu já não sabia se me emocionava do filme, que já sei de cor, ou do capuchinho ao meu lado.
Quando tinha a idade da Teresinha não era, de longe, tão expansiva (ainda hoje...), mas tinha o mesmo casaco, os mesmos totós e sentava-me ao colo do meu avô no canapé da frente da casa virados ambos para as orquídeas. Todas as tardes ou todas as manhãs, não sei, quando o sol ia alto e aquecia-nos aos dois. Era o meu lugar, aquele colo. Tanto e tão meu, que quando chegou a minha irmã e eu passei a ter que partilhar com ela o sol e o avô e doravante a ficar em pé encostada às pernas dele porque a segurava ao colo, não resisti aos ciúmes e mordi-lhe o dedo do pé. Claro que a bebé desatou a chorar e eu a contar e resolveu-se a coisa com diplomacia, muito embora não me recorde ao certo como. Também não é importante. Ou pelo menos não tanto quanto as nossas manhãs ou tardes de sol; a mão grande, forte de quase meter medo, e quente, do meu avô, quando me levava com ele todos os meses naquele dia único do mês em que vestia um casaco, o dia em que ia receber a reforma; o cheiro do chapéu de sair, o nosso périplo pelo centro do Funchal onde toda a gente o conhecia e cumprimentava com veneração; as compras do mês que se eclipsaram da minha memória excepto o café, "meio quilo de cevada, meio quilo de grão, 500 gramas do bom" pedia sempre isto, assim; os três saquinhos de rebuçados amarelos de funcho para a hora do terço, sete e meia, a grande caixa de bolacha quadrada Saborável, para acompanhar o café das tardes de Domingo dos avós. Não me lembro se nesses dias me comprava um bolo ou um brinquedo, como os meus pais quando saíam comigo, mas tenho muito presente o carinho, o calor da mão, do colo, de cada beijo molhado e algo mais inefável, muito próprio dele, que não sei explicar e de que sinto falta muitas vezes, hoje.
A Teresinha ainda não sabe ler e certamente lhe passou ao lado o quase aforismo do Feiticeiro de Oz "A heart is not judged by how much you love, but by how much you are loved by others." mas percebeu que a Dorothy estava longe de casa que é o colo onde se está bem, e isso, tenho por certo, sobreviverá o filme na sua memória de criança.

Se estivesse vivo, o meu avô faria hoje 94 anos.