Não era para um kit kat, nem sequer para uma cola. Era para deixar a cama, para deixar de focar e desfocar o tecto branco do meu quarto, para deixar de suar e ver tudo subitamente animado e inquieto à minha volta quando tenho de me levantar, ou para deixar de demorar uma eternidade para chegar à casa de banho, enfim, para deixar- nem que fosse por um pouco - de estar doente e sair da cama um bocadinho, para olhar, para respirar - como quando, na Biblioteca, estou cansada de trabalhar.
Na Biblioteca, quando estou cansada de trabalhar, o meu olhar migra dos livros e fixa-se, quase sempre, quase naturalmente, na janela, no mundo fora da janela, no verde, no sol, nas minhas memórias e nos meus projectos de verde e sol. É uma pausa boa, revigorante.
Um dia, já nem me lembro por que razão específica, se calhar o dia estava cinzento e chovia, em Braga chove sempre tanto!, tive que me deter com o mundo fora dos livros, dentro da Biblioteca. E não foi difícil. Tanta coisa acontece ali! É a adolescente mal-formada que por despeito maltrata a funcionária, é o funcionário que sabe onde estão todos os livros mas que tem um problema (grave) com o sistema informático, são as pessoas que confundem a Biblioteca com a esplanada, é um outro funcionário que não sabe falar inglês e deixa ainda mais perdido um anglófono de passagem, é a estagiária da sala da catalogação que chora a manhã toda porque a mandaram para ali, para a sala de leitura, é a improvável história de amor do funcionário desalinhado com a menina certinha...
Do início: a menina certinha é certinha no chegar, no estar, no pedir, no falar, no trabalhar, no vestir e no calçar. A menina certinha é séria, muito séria. Séria a passar no corredor, séria a dirigir-se ao computador, séria a ler, séria a escrever, séria nos castanhos e nos pretos dos casacos e das saias, séria nos tacões altíssimos dos sapatos de uma outra era, séria no cabelo, escorrido, risca a meio, séria na vontade, séria no empenho, séria no trabalho.
Quando saio para almoçar, fica; quando chego, está. Não sei se almoça, se alguma vez se levanta da cadeira ou desvia o olhar dos livros. Para mim, ela está sempre ali, muito direita, muito concentrada, quase sobre-humana.
Todos os dias, pouco depois de ter regressado do meu almoço, duas ou três da tarde, ele vem cá acima. E isso é estranho, conheço-o, é o funcionário da sala de baixo, um que vou importunar muitas vezes, demasiadas para ele, ao requisitar livros que sempre se encontram ou no depósito, ou na catalogação, ou nos fundos especiais, livros que fazem com que ele tenha de interromper o que quer que esteja a fazer no computador e... Bem, ele é uma espécie de Lucky Luke de mal com o mundo: substitua-se o look relaxado deste por um de desprezo visceral pela Humanidade inteira et voilá! é ele, o mesmo cabelo, a mesma cara, a mesma ausência de formas... Então, todos os dias ele sobe, cumprimenta, (coisa estranha!), a pessoa encarregue da nossa sala, e, escusemo-nos a compreender, faz um pouco do trabalho dessa pessoa (!) muito agitado: verifica os livros que estão no carrinho, à frente da menina certinha; coloca-os nas respectivas prateleiras, à esquerda da menina certinha; alinha livros, tira, põe, mexe e remexe nas prateleiras e só depois vai à janela, à direita e à frente da menina certinha, e olha para o dia. Às vezes, também, nos dias em que, suponho, não conhece ou não é tão próximo da pessoa cá de cima, sobe as escadas e fica dali a olhar para ela, muito parado.
Se a mim o que chamou primeiramente a atenção foi o voluntarismo extemporâneo que originou o cirandear localizado do rapaz, tenho para mim que a menina certinha só se apercebeu de alguma coisa quando deu com os olhos da estátua parada ao cimo da escada coladíssimos aos seus. E, acto reflexo, encaracolou-se. E isso não está certo. Nada, nada certinho. Mas foi o que aconteceu. Sempre. Encaracola-se, muito, muito, muito; encaracola-se sobre si mesma, sobre os livros, sobre o que estiver mais à mão. Mas ele continua a vir, menos vezes, é certo, mas duas pelo menos: ao iniciar e ao acabar o seu dia de trabalho.
Não me consigo decidir se é delicioso ou apenas um bocadinho triste, se é um delírio, inconcebível, improvável ou um milagre difícil, mas é motivo para uma pausa, coisa de poucos minutos, em que o pensamento esvoaça para o sítio, ali, ali onde a vida é jovem e...