Anteontem fui a uma festa. A festa que começou por ser a minha, de despedida, e acabou por ser uma salganhada horrorosa de pessoas estranhas, esquisitas, muito fora do comum e com as quais pouco tenho a ver.
Explico: o Raj, um dos meus fãs – não gosto, mas tenho de o admitir, a bem da verdade, acordou um dia da semana passada – enquanto eu me perdia em NY, a comer um pretzel e a sorver golinhos do frio cortante do Central Park (ou quando estacava, em choque – bom, muito bom – frente ao “The House of Nazareth” do Zubarán no Guggenheim, ou quando queimei o céu da boca, perdão o palato, sejamos científicos, à força de tentar aquecer o coração com o Chocolate quente da Starbucks no WTC… Não vão lá. O vazio do ground zero é de um abandono gritante, enlouquecedor, de uma frieza, sepulcral, corrosiva, mau demais!...) com a surpreendente ideia de me organizar uma festa de despedida. Convidou meia dúzia de pessoas que eu conheço e com as quais me dou bem – os amigos que temos em comum – e mais, partiu do pressuposto de que eu traria o Manuel comigo – verdade, verdadinha, o pessoal daqui começa a conhecer-me, ou pelo menos a registar os meus hábitos. Até aí tudo bem. Ofereceu-se para cozinhar ele tudo, desde as entradas à sobremesa, comida indiana, vegetariana e não vegetariana. Por falar em tentar impressionar uma rapariga… As bebidas ficaram por conta do Manuel, da Linda e do Pascal. E tudo se encaminhava para um sábado mais ou menos normal entre amigos.
Não estava à espera, não me dou muito com o Raj, tradução para Portugal, falo com o Raj, como falo com outra pessoa qualquer. É meu amigo? Não. Conhecido? Talvez, nem sei bem. Não sabe de que músicas gosto, que livros leio, e só há pouco se apercebeu de que sou vegetariana, mas a surpresa foi agradável. Foi, até ao momento em que de seis ou sete sete passaram a ser vinte e sete os convidados! “It got out of control, Joana, but you don’t mind, do you?” “Erh... No, Raj, I don’t mind.” A festa é tua, a casa é tua, os amigos são teus. Pensei, não disse. Claro que me importo! Quando é uma festa da Universidade podem estar milhentas pessoas que eu não conheço que não faz mal, mas na casa de alguém noblesse oblige que se entabule conversação para conhecer ou se dar a conhecer, ou ambas as coisas. E isso não é um problema, já foi, agora não. O problema é que o Raj conhece muita gente, muito alternativa, demasiado alternativa, até para uma ‘católica-vegetariana-meditativa’ como eu…
Nunca fui a nenhuma festa, quando era miúda. Quando andava no Colégio. Nunca ninguém me convidou. E a minha mãe agradecia aos céus essa infelicidade, por impossibilidades práticas de retribuir o convite, porque passava a semana a trabalhar, ia para o curso à noite, e os sábados e os domingos eram passados a lavar e a passar roupa e a preparar a semana seguinte e nunca eram grandes o bastante. E eu achava, não sei porquê, que isso era normal. Até a minha irmã ir para o Colégio e ser convidada para todas as festas possíveis. E eu começar a pensar que alguma coisa andaria mal no reino Joanino. Não teria a ver com o peso, que a minha irmã sempre foi anafadinha, muito mais que eu alguma vez; porventura teria a ver com a roupa, lá em casa nunca se ligou a marcas – a minha mãe não tinha muito tempo também; mas a minha irmã vestia mais ou menos como eu… Se calhar tinha qualquer coisa a ver com o desempenho nas aulas de Educação Física: eu era uma nulidade; a minha irmã, de uma agilidade sem comparação – e gordinha! Um dia percebi que não era nada disso (ou seria a súmula de tudo), um dia, não me recordo já se antes ou depois da festa da Sandra e do Bruno… um dia o Luís perguntou-me se ia à festa da Marta. Acho que a Natacha me tinha perguntado primeiro, enquanto fazíamos um exercício de Inglês em grupo. 9º ano, professora Suzel. Lembro-me bem. Mas o clique só se deu quando foi o Luís a perguntar.
A Marta era da minha turma no Colégio e por coincidência, nesse ano, também era da minha turma no Instituto. A Marta, como todas as meninas ‘muito’ bem do Colégio, era boa aluna; mas não se situava no meu nível, nem na escola, nem no Instituto. A Marta era infantil, pelo menos mais que eu, e chegava ao Colégio e dizia ao Luís e aos outros e aos professores com que calhava termos aulas, que eu tinha sempre os melhores resultados de todo o Instituto. Percebo por isso a naturalidade do Luís em perguntar-me da festa. O sim era quase garantido. E, pelos vistos, o fim-de-semana prometia. Ela tinha convidado toda a gente da nossa turma e alguns das outras turmas de 9º ano. Bem, quase toda a gente. Não me convidou a mim, nem a duas outras raparigas, uma que morava no campo, outra filha de emigrantes. Eu e elas, elas e eu. Minorias. Mas “eu” e as “minorias” não combinávamos, segundo o Luís: “… como vocês são amigas, do Instituto e tal, pensei…” Pensou. E travou, incrédulo e cabisbaixo (triste?), antes de me dizer o que tinha pensado. (Tinha pensado em pedir-me para o acompanhar, soube-o já nem sei por quem, na segunda feira.) Porque à festa da Marta só podiam ir casais, as meninas de vestido e os rapazes de fato, blaser pelo menos, tá?
Tínhamos catorze anos. E já aos catorze anos a menina Marta era uma sectária de primeira! E, não posso censurar o Luís, aos catorze anos a trangressão à norma instituída ainda só funciona em relação aos pais e não em relação ao mundo – se fosse aos dezassete…
Fui para casa e contei à minha mãe. E ela teve pena. E tentou consolar-me. Mas não havia consolo possível: todo o fim-de-semana a festa da Marta ocupou-me os pensamentos, adormeci e acordei a pensar nisso, e na segunda-feira, o que me arrancou da cama manhã cedo, pela primeira vez, não foram as aulas, mas o desejo de saber como tinha corrido a festa da Marta.
Um fiasco. Muito casal de catorze anos, algum álcool… as coisas descontrolaram-se. Uma festa pretensamente bem, leia-se super-exclusiva, que se tornou uma seca, só apimentada por umas hormonas que, aos catorze anos, os rapazes não controlam bem… Depreendi eu, do que dizia o Luís, à boca cheia, naquela segunda feira de manhã, lá na escola. E o disse-que-me-disse não agradou obviamente à Marta. Discutiram feio, “Tens muito a mania, sabias? Quiseste convidar só quem te caiu no goto, e olha no que deu!” “Mas tu foste, não foste? Podias ter ficado em casa.” “E ia perder aquele espectáculo ao vivo? Nem pensar.” Desde então e até ao final do ano, imperou a boa educação entre os dois, apenas.
Quando o nono ano acabou, fomos para o Secundário em escolas diferentes. Eu continuei no ensino privado, ela optou pelo público. Nessa altura estava in entre os meninos ‘muito’ bem. Ela, a prima, o Luís e muitos outros foram para o Liceu. Perdi-lhes o rasto quase por completo.
Lembro-me de uma vez, já no décimo primeiro ano, ter encontrado casualmente o Luís, acompanhado da mãe. Avistei-o ao fundo da rua, não contive o sorriso, mas achei que dois anos era muito tempo e que, quase de certeza, não me iria reconhecer. Tive uma surpresa. Reconheceu-me imediatamente! Acelerou o passo e apressou o seu melhor sorriso. E cumprimentou-me com o mesmo à vontade, a mesma satisfação e o mesmo sorriso, maroto, de outrora. E ainda me apresentou à mãe.
Acho que foi também nesse ano que a Marta, descontente com a opção escolar tomada, veio à minha escola, visitar as instalações, numa das suas tardes livres, a ver se lhe agradaria uma mudança. Nunca ouvi, na minha vida toda, maior vaia (!), bem talvez no Estádio do Dragão... É que as minorias não são estanques. Um dia, a minoria cresce e deixa de o ser. Um dia, a dinâmica das forças inverte-se. Acontece. Ela não conseguiu lá estar mais do que cinco minutos. Tive pena. Assobios, bocas, provocações, impropérios... Tive muita pena mesmo, ninguém merece um tratamento daqueles. Mas ela tinha criado um rasto de inimizade impossível de apagar. Sei que se lhe tivesse dirigido o olhar, ela teria vindo falar comigo. Não havia naquela escola mais ninguém disposto a fazê-lo, também. Mas não o fiz, estava com pressa, tinha alguma coisa muito urgente para fazer. Não me lembro o quê, mas sei que tinha alguém à espera. Para trás ficava uma vaia monumental, histórica.
Anteontem lembrei-me da festa da Marta. Porque deve haver um timing para o descontrolo, que não tem nada a ver com a idade, mas quase de certeza com o álcool: umas duas horas depois de acabarmos de jantar everybody got cozy. (E aqui come-se muito cedo!) Como se já não me bastasse fingir que não percebo certos olhares e certas insinuações, esquivar-me a certas pessoas e a certas conversas para manter a minha sanidade mental, os meus valores e algumas amizades intactas, como se já não me bastasse não conhecer quase ninguém, e agradecer a Deus alguns daqueles ‘ninguéns’ não fazerem parte dos meus conhecimentos… Bem, valeu-me o Manuel, (no, we don’t ever get cozy!), a única pessoa com quem deu para parar de assobiar para o lado e soprar para cima, e ter uma conversa decente.
É por estas coisas que nos levamos, um ao outro, às festas.
Aos catorze anos as festas tinham outro encanto.
6 comentários:
Aos catorze, muitas coisas tinham outro encanto. Até as Martas da vida tinham um peso diferente.
Ainda bem que agora há o Manuel :)
You read me and you read my mind: "muitas coisas (MESMO!!!) tinham outro encanto".
Jinhos.
P.S. "As Martas da vida" perderam o peso (e a substância) pelo caminho, puf(!) desapareceram somewhere along the way... :)
Quanto ao Manu, o Manu é um fixe!
E pela perda de importância das martas da vida, viva a old age :P
Viva! :P
Jinhos.
Bom, não me atrevo a escrever tanto como tu... :P Mas como te compreendo aqui também...
Há alturas em que termos "a maioria absoluta" da nossa vida dava jeito.
Oh se dava...
Jinhos.
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