E eis que o Verão chega ao fim de facto. O metro começa a passar a horas, o comboio volta a encher-se, as caras conhecidas regressam aos lugares do costume. A normalidade do barulho e do riso e das discussões e dos afectos torna à minha casa.
E eis que o Verão chega ao fim de facto. A Faculdade reabriu, os encontros com o Orientador recomeçam, os cafés de fim de tarde no sítio do costume com os amigos abrandam, quase cessam, já não há tempo. A vida flui mais exigente e depressa, muito depressa, agora que é Setembro.
Não se sentou sem antes pedir licença. Sorri-lhe um sorriso muito pequenino, tinha dores e calor e frio, tudo ao mesmo tempo, e, aborrecida, tentava disfarçar tudo muito bem com o livro que tentava, muito em vão, ler. Se tivesse a minha idade, não levava sorriso nenhum porque simplesmente há dias assim, dias em que o sorriso nos rasga a cara em vez de a iluminar. Sorri-lhe um sorriso muito pequenino, o automático a qualquer pedido de licença. Gosto de pessoas que pedem licença. Só as pessoas mais velhas é que pedem licença, já reparei. E eu. Eu também. Porque gosto. É bonito. (De vez em quando ganha-se com isso um sorriso. E os sorrisos são importantes para os meus dias.)
No banco em que se sentou, na generalidade dos bancos, havia publicidade acerca da Red Bull Air Race do próximo fim-de-semana. A CP não terá nenhum comboio ao serviço, blá, blá, blá, blá... Levantou o papel, sentou-se, leu e começou a dobrá-lo. Voltei ao meu livro, às dores, aos calores e aos arrepios. Algures entre isso e uma história das Histórias (belíssimas!) para uma noite de calmaria, há um cheiro que me desperta, um cheiro familiar, um daqueles cheiros muito nossos, só nossos, da infância: o cheiro a tabaco do meu avô. O cheiro a tabaco do meu avô numas mãos, com unhas amarelas do fumo de décadas como as dele, numas mãos ágeis que faziam um barco com o papel da publicidade da Red Bull Air Race.
Um barquinho de papel. Só as pessoas mais velhas pedem licença. Só uma pessoa mais velha pensaria em fazer um barquinho com aquele papel em menos de um quarto de hora de viagem. O meu avô foi quem me ensinou a fazer barcos de papel. Lembro-me bem, estávamos sentados no canapé da rua e ele, pacientemente, dobrava, abria, fechava e depois dizia vá, agora tu, e eu saltava etapas, esquecia-me e ele, sempre paciente, ainda não é essa parte, primeiro dobras aqui para dentro, entendes, vezes sem conta, toda a paciência do mundo a migrar das suas palavras para as mãos. Optou por me ensinar a fazer um chapéu, primeiro. Um chapéu de papel equivalia a metade do processo de um barquinho. Saber fazer um chapéu é portanto meio caminho andado para alguém como eu fazer o barquinho. E eu, língua de fora, a dobrar, a dobrar, agora é que é, agora é que vou conseguir fazer tudo sozinha. Eventualmente consegui. Nunca sairia dali para lanchar ou para o que fosse sem o conseguir. Ele sabia, sabíamos os dois. Ele divertia-se com isso, eu entretinha-me com o desafio.
Ao cair da noite fazia ambos, chapéu e barquinho, com a mesma destreza que ele. E ele sorria orgulhoso e eu sorria satisfeita. E ele punha-me no colo para vermos juntos as cores do dia que acabava e eu apontava o rosa, o azul e o roxo do fim da tarde sem saber que mais de um quarto de século depois seriam estas recordações que me dariam colo e soprariam para longe as dores.
E eis que o Verão chega ao fim de facto. A Faculdade reabriu, os encontros com o Orientador recomeçam, os cafés de fim de tarde no sítio do costume com os amigos abrandam, quase cessam, já não há tempo. A vida flui mais exigente e depressa, muito depressa, agora que é Setembro.
Não se sentou sem antes pedir licença. Sorri-lhe um sorriso muito pequenino, tinha dores e calor e frio, tudo ao mesmo tempo, e, aborrecida, tentava disfarçar tudo muito bem com o livro que tentava, muito em vão, ler. Se tivesse a minha idade, não levava sorriso nenhum porque simplesmente há dias assim, dias em que o sorriso nos rasga a cara em vez de a iluminar. Sorri-lhe um sorriso muito pequenino, o automático a qualquer pedido de licença. Gosto de pessoas que pedem licença. Só as pessoas mais velhas é que pedem licença, já reparei. E eu. Eu também. Porque gosto. É bonito. (De vez em quando ganha-se com isso um sorriso. E os sorrisos são importantes para os meus dias.)
No banco em que se sentou, na generalidade dos bancos, havia publicidade acerca da Red Bull Air Race do próximo fim-de-semana. A CP não terá nenhum comboio ao serviço, blá, blá, blá, blá... Levantou o papel, sentou-se, leu e começou a dobrá-lo. Voltei ao meu livro, às dores, aos calores e aos arrepios. Algures entre isso e uma história das Histórias (belíssimas!) para uma noite de calmaria, há um cheiro que me desperta, um cheiro familiar, um daqueles cheiros muito nossos, só nossos, da infância: o cheiro a tabaco do meu avô. O cheiro a tabaco do meu avô numas mãos, com unhas amarelas do fumo de décadas como as dele, numas mãos ágeis que faziam um barco com o papel da publicidade da Red Bull Air Race.
Um barquinho de papel. Só as pessoas mais velhas pedem licença. Só uma pessoa mais velha pensaria em fazer um barquinho com aquele papel em menos de um quarto de hora de viagem. O meu avô foi quem me ensinou a fazer barcos de papel. Lembro-me bem, estávamos sentados no canapé da rua e ele, pacientemente, dobrava, abria, fechava e depois dizia vá, agora tu, e eu saltava etapas, esquecia-me e ele, sempre paciente, ainda não é essa parte, primeiro dobras aqui para dentro, entendes, vezes sem conta, toda a paciência do mundo a migrar das suas palavras para as mãos. Optou por me ensinar a fazer um chapéu, primeiro. Um chapéu de papel equivalia a metade do processo de um barquinho. Saber fazer um chapéu é portanto meio caminho andado para alguém como eu fazer o barquinho. E eu, língua de fora, a dobrar, a dobrar, agora é que é, agora é que vou conseguir fazer tudo sozinha. Eventualmente consegui. Nunca sairia dali para lanchar ou para o que fosse sem o conseguir. Ele sabia, sabíamos os dois. Ele divertia-se com isso, eu entretinha-me com o desafio.
Ao cair da noite fazia ambos, chapéu e barquinho, com a mesma destreza que ele. E ele sorria orgulhoso e eu sorria satisfeita. E ele punha-me no colo para vermos juntos as cores do dia que acabava e eu apontava o rosa, o azul e o roxo do fim da tarde sem saber que mais de um quarto de século depois seriam estas recordações que me dariam colo e soprariam para longe as dores.
5 comentários:
Quando ja nao se tem avos, as palavras sobre avos, que nos levam a nossa propria infancia, aquecem-nos o coracao. Ou pelo menos aquecem o meu coracao!
Beijo!
origami com amor é do melhor!
Tenho lido todos os seus textos e estou a gostar muito do seu jeito narrativo-descritivo-reflexivo.Estava a guardar-me para comentá-los e aos seus temas,ao pé de si.Mas hoje o seu e-mail veio fazer-me ver que o nosso rendez-vous está problemático.E pronto... Esperemos ! Beijinhos.
Confesso, sou uma pessoa difícil de agradar. No que leio não sou diferente, mas hoje o teu texto tocou-me de forma especial, talvez por saber bem e sentir na pele aquilo que com tanta substância descreves.
Parabéns, adorei.
ORIGAMI!!!!!
A mnh namorada fez-me uma coisa nos meus anos, q me encheu o coração, posso mostrar depois, se quiseres, sim?
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