Às vezes, como agora, sinto muitas saudades dos meus avós. A maior parte das vezes é de um deles apenas. Mais do meu avô, mais da minha avó, depende. Depende. Não sei bem de quê. Mas depende.
Quando chega o Outono lembro-me da minha avó. Lembro-me das tardes de chuva grossa da Madeira dos meus seis anos, ping, ping, ping a gotejar da vinha para o nosso quintal. Lembro-me da minha avó nas tardes em que, depois de uma manhã inteirinha de copianço descarado de tudo o que fazia o Manuel, tinha que o ouvir queixar-se do meu descaramento aos pais a duração inteira da boleia que sempre me davam, fizesse chuva ou sol. Lembro-me da minha avó nessas tardes a descalçar-me as galochas cor-de-rosa para ir almoçar. Era um custo! Lembro-me da minha avó no Outono por causa dos nossos almoços ao som da chuva e dos meus quadradinhos de laranja com açúcar para a sobremesa. Não há Outono que não me saiba à laranja com açúcar, não há chuva grossa que não me lembre os meus almoços da primária com a minha avó.
Ela perguntava-me, então e o que fizeste hoje na escola, e eu dizia: um ditado, contas e um desenho; e quantos erros tinha o ditado, ela continuava, e eu: oh tinha um; amanhã será melhor, dizia-me, e eu: sim, talvez, não sei, só o Manuel tem zero erros, mas também o Manuel lá na Venezuela andava já na terceira classe, eu nunca andei na terceira classe, eu só fui para a escola o ano passado, e o Manuel tapa muito o trabalho dele para eu não ver, está sempre com o braço por cima da folha e eu assim não...; não te preocupes com isso, fizeste também um desenho, desenhaste o quê, desenhei uma galinha, e a professora colocou todos os desenhos na parede e então pôs o meu desenho exactamente ao lado do desenho do Manuel e assim não dá porque se vê perfeitamente que a minha galinha é igual à dele, as duas, lado a lado, exactamente iguais, não é justo. E a minha avó ria-se. E eu não percebia, mas também me ria. E a comida escorregava melhor assim e o tempo passava rápido, ao contrário da chuva.
O Manuel mudou de escola no final desse ano, quando apenas eu e ele tínhamos zero erros no ditado e os meus desenhos começavam a diferenciar-se dos dele. Acabaram-se os queixumes, as boleias, os acenos agradecidos da minha avó aos pais dele, acabou-se a nossa competição. Não acabou nunca o apoio e o interesse da minha avó por tudo o que sempre fiz na escola. E acho que é isso que está no travo doce de laranja com açúcar de que sinto tanta falta a cada Outono. A minha avó morreu há precisamente dez anos na semana em que entrei na Universidade.
4 comentários:
Só para dizer que percebo exactamente do que estás a falar e que o dizes de uma forma muito bonita...
Antídoto,
Só para dizer a única palavra que me ocorre: obrigada.
Jinhos.
Este texto é lindíssimo:)... tão terno e simples... e mais não é preciso:)*
Adorei o teu texto... comoveu-me mesmo!
Aprendi, há uns anos, que os avós, são pessoas que nunca morrem, vivem sempre connosco.
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