Sempre quis escrever um post assim. Sempre, sempre não. Sempre quis contar a história de dois meus alunos, por acaso com o mesmo nome - Hélder. Depois, por aqui, conheci um outro - Hélder, com uma teoria fantástica que tem a admirável capacidade de abrir um sorriso, largo, rasgado, a todas as Joanas do mundo, teoria devidamente fundamentada na vida e explicada num post com um título adorável que eu não vou usurpar.
O primeiro Hélder entrou na minha vida no Secundário. Era o seminarista mais bonito da turma, o aluno mais cobiçado das Humanidades, aquele por quem todas as meninas suspiravam... Era um dos mais problemáticos seres humanos que já alguma vez conheci em toda a minha vida. Também. De rastos emocionalmente, inseguro, carente, nervoso, saudosista, temeroso... Irracionalmente ancorado num passado distante, para ele continuamente presente, agrilhoado a uma pessoa que não podia ter. Na minha casa é recordado pelo aperto de mão caloroso, e quente - literalmente quente, que deu ao meus irmãos mais novos, num certo dia de chuva em que os levei à minha Escola. Para mim há-de ser sempre uns enormes olhos azuis a pedirem, à sacieade, por luz ao mesmo tempo que se mergulham na escuridão.
O segundo Hélder foi o da Faculdade, um daqueles senhores doutores de nada que formam troupes - espero que se escreva assim - e confundem autoridade com falta de respeito em nome de uma mais fácil integração no meio académico francamente duvidosa. Felizmente, este era dos passivos, ou seja, fazia parte da coisa, mas não praxava ninguém. Ia às actividades, observava, ria-se e a coisa fica por aí. Menos mal. Custou menos tratá-lo como colega quando as aulas a sério começaram. Colega sim, que o número de matrículas do dito era inversamente proporcional às cadeiras feitas. Como colega sempre cordial, amigo das minhas amigas e, consequentemente, inevitavelmente, lá para o fim do ano que eu sou difícil, meu amigo também. Daquelas amizades de Faculdade que de amizade pouco têm, mas que dá jeito que sejam, especialmente para ele, no fim de semestre.
O terceiro Hélder foi o do estágio. O miúdo mais displicente que alguma vez tive numa turma. Nunca mais me esqueço do desconcertante (sim desconcertante ao extremo, para quem não mede 86-60-86, veste discretíssimamente e tem uma postura como a minha) "Oh professora, salte para cima da mesa mas é e faça um strip!" de permeio com os "Ai!... Já perdi cinco euros" em resposta aos meus bons dias, da aula assitida que me estragou com impertinências, do "Não lhe admito, a stôra Joana é que é minha prof, não tenho que lhe obedecer a si, só a ela! Só a ela, está a ouvir?!" e subsequentes ameaças à integridade física do carro do meu Orientador... Nunca mais me esqueço do meu estoicismo, às vezes verdadeiramente hercúleo, para respirar fundo e ignorar e prosseguir com as aulas, ano fora, quando o que queria mesmo era marcar-lhe falta e expulsá-lo e fazer participações e procedimentos afins. Queria eu, paradoxalmente, porque muito mais que ele, provar a mim própria que o miúdo valia a pena. Coisas que só vinte e um anos de vida e nenhum de experiência docente explicam. Mas o facto é que valia mesmo! De resto, como toda a gente. (No Conselho de Turma em que o próprio estava presente como um dos representantes da turma - estratégia falhada para o tornar responsável - e em que os demais professores competiam a ver quem arranjava o pior e/ou o maior número de adjectivos negativos para o rapaz, limitei-me a dizer generalidades acerca da turma e ele percebeu. Então, quando coube ao próprio fazer a apreciação dos professores, não houve adjectivo positivo do - inaceitavelmente reduzido - vocabulário dele que não me encaixasse.) Era no fundo um miúdo amoroso, mas extremamente carente, desgostoso consigo próprio e com o mundo, com imensos problemas de afirmação e uma paixoneta pela única professora que se recusou a responder à irreverência com força ou amargura, ou ambas, enfim... um miúdo a crescer!
No fim do estágio voltei à Faculdade, desta vez para dar aulas e nessa altura reencontrei o Hélder número dois, transfigurado em tudo menos na reluctância em acabar o curso. Um noivado de nove anos que tinha chegado ao fim, um rol extensíssimo de apressadas relações naturalmente falhadas e o um olhar perdido, opaco, igualzinho ao do Hélder número um. (Muito azar têm os Hélders com as mulheres!) Meu colega no primeiro e no segundo ano do meu curso, meu aluno quatro anos depois, quando decidia aparecer, nos intervalos de intensa actividade praxística (agora praxava, era até o mais importante dos doutores de nada) e social, na generalidade.
Muitas situações na vida são complicadas: olharmos nos olhos de certas pessoas e termos que dizer não porque é melhor assim, especialmente para elas; desviarmos o olhar de certas pessoas porque é melhor assim, especialmente para elas; quebrarmos o contacto com certas pessoas porque é melhor assim, especialmente para elas; deixarmos livres certas pessoas porque é melhor assim, especialmente para elas; falarmos e rirmos e concordarmos quando se sabe perfeitamente que o nosso interlocutor não sente nada do que diz, pensa o oposto e di-lo a todos excepto a nós; fingirmos que não percebemos provocações, jogos mentais e piadas e indirectas (graças a Deus raramente as entendo no momento, por isso sou perita na contraposição) e a isso responder-se com um sorriso (sempre, instantanea, imediatamente!), um assentimento mais ou menos efusivo - dependendo da pessoa e/ou da gravidade da afirmação -, ou uma pergunta sobre o tempo ou sobre a bola. São situações complicadas porque constrangem, obrigam uma pessoa a ser quem não é, o que não é, em nome de uma convenção, de uma norma social silente que em rigor pouca razão tem de ser.
Passar de colega de Faculdade para aluno de Faculdade, a porta da sala de aula para dentro não me parece uma delas. Não encaixa em nenhuma das situações que enunciei. Pelo menos para mim, que para o meu amigo Hélder essa transição foi mais que dramática, foi de facto impossível! Encarou o meu trabalho como uma afronta pessoal. Consigo percebê-lo mas só até certo ponto. É até natural, ter podido praxar-me, ter sido meu colega, termos ido aos mesmos jantares, às mesmas festas de aniversário, partilharmos amigos e agora ter que passar sob a minha lupa, o meu escrutínio infalível.
Tentei falar com ele. Clarificar (e enfatizar) a largueza do perímetro do tu por oposição ao "você" restrito às instalações da Faculdade. Não me deixou explicar. "Já sei, claro, tem que ser mesmo assim. Não precisas de me explicar nada, então Joana, sem problema..." Mas o problema continuou. Viu-se. Continuava a faltar, fugia assim que me via entrar no bar, deixou de ir aos aniversários...
A meio do ano tive de deixar de assinalar as presenças de todos, de outro modo não o poderia levar a exame, mas a beneficiência ficou por aí, tinha que ser profissional, tinha sessenta olhos postos em todos os meus procedimentos no que ao Hélder dizia respeito. Perdi-lhe o rasto, mas sei que me acusa de ter sido mais exigente com ele do que com o resto da turma, ainda hoje. Uma complicação.
O último Hélder, o quatro, é amigo dos meus irmãos mais novos. Também é da Madeira, já se conhecem desde o Conservatório. Um miúdo adorável que é só olhos quando fala do cravo que foi comprar há tempos à Alemanha e do futuro da Música Antiga em Portugal. De conversa fácil, com uma noção de moralidade e uma ética invulgares para a idade e uma sede invejável de saber, de lugares, de pessoas, de Mundo... Arrasta-nos muitas vezes para os seus passeios de im de semana, Braga, Espinho, Guimarães, "... porque vocês já conhecem e assim mostram-me, é sempre importante conhecer!"
Estive muito doente esta Páscoa. Vieram muitos amigos dos meus irmãos, colegas do Conservatório da Madeira cá para o Porto e teve lugar o almoço de reunião mais complicado de marcar da História da Humanidade. "No Sábado o Hélder não pode, no Domingo o pessoal de Aveiro não pode, na Sexta a A. não pode..." Enfim... Apesar de convidada, não fui, não estava em condições. Fui às celebrações do triduo Pascal e só eu e Deus (e os meus irmãos talvez) sabem o que me custou.
No Sábado, descobrimos o impedimento do Hélder, a razão porque não ia a casa nestas férias, o compromisso, o segredo. Ia, no dia em que o mais usual é acolhermos os novos cristãos, fazer a Primeira Comunhão. Não tinha dito nada a ninguém. Por desejo de privacidade, por vergonha, por constrangimento, por falta de coragem... não sei. Mas no fim não nos escapou, levou os quatro abraços mais apertados da História (também!) e um convite para passar o Domingo de Páscoa connosco. Na casa dos milhentos cds e dvds e dos ziliões de livros (e de quatro pessoas muito sui generis também!)
Foi a melhor Páscoa de toda a gente, até hoje!
Ah, Páscoa para mim, este ano mais que nunca, foi isto:
4 comentários:
e no entanto, por vezes o nao desistir é mesmo o mais dificil de tudo.
Eu para aqui a lamber as minhas feridas e não sabia que estavas doente! Espero sinceramente que já estejas totalmente recuperada.
Adorei o post!
Lembrei-me imediatamente do meu primeiro namorado (tinha quatro aninhos...), que se chamava... lol ;)
E por causa da Primeira Comunhão... também fui baptizada e fiz a primeira comunhão (tudo junto) na noite de Páscoa... aos 17 anos! Foi lindo!
Quanto ao vídeo... palavras para quê?
Jinhos gandes, gandes! Muáaa...
Tu não existes miúda.
Ás vezes penso que sou ingénuo por partir sempre do princípio que as pessoas são boas. Gosto de dizer que se trairem a minha confiança o problema é delas e não meu; que o único que me interessa é a minha consciência e essa só está bem se eu persistir na ingenuidade e na confiança.
Ler-te reforça-me duas ideias: A de que devo continuar a acreditar que há gente que vale a pena e a de que a minha teoria sobre as Joanas está certa. Não preciso de te conhecer fisicamente para saber que sim...
Beijo grande de um Hélder que hoje -e só hoje - volta a sê-lo.
Absorbent,
Sem dúvida! (Se bem que o DESISTIR custa horrores também, a maior parte das vezes...) ;)
Orquídea,
Eheheheheheh! Já estou quase, quase boa! :P
A sério? São pessoas especiais as da Páscoa, nada que já não soubéssemos de ti. ;)
Hélder,
Tu também não existes. E não és ingénuo, és um querido! ;)
Obrigada por "O" teres sido hoje! :)
Jinhos a todos.
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