Ossos longos, ossos chatos, ossos curtos, ossos irregulares. O osso é uma estrutura exclusiva dos animais vertebrados - a única que lhe sustenta o corpo e apoia os músculos para o movimento. É osso o que protege cada órgão vital do nosso corpo: o crânio protege o cérebro, as costelas, o coração. SUB-STANTE.
sexta-feira, maio 30, 2008
De um Imperativo inesperado
- Sim.
- Está mal.
- ?
- Devia trabalhar as tardes.
- Porquê?
- Porque as tardes custam mais a passar.
- ...
quarta-feira, maio 28, 2008
De rotinas, soninhos doces em viagem e exigências da meia idade
Um taxista nova iorquino decidiu aqui há tempos pôr em livros as histórias, as vidas, que se sentavam no banco de trás do seu automóvel, que em NY há muita história, muita vida, que merece ser contada, partilhada, mesmo quando um vidro, qual lente, separa o utente do condutor (e ainda bem).
Pensava nisto ainda há pouco quando, ao fechar o livro que ando a ler, a escassos minutos da paragem terminal do comboio, me deparei com seis olhos à minha esquerda a exigir-me silenciosa mas muito firmemente um gesto. Qual, não sei ao certo, não tive tempo de o descortinar, já que em piloto automático me encaminhava serena e quase segura – não fossem os tais seis olhos – para a porta.
Mas suspeito que tem qualquer coisa a ver com o meu companheiro de viagem. Sou uma pessoa de rotinas, prezo-as, cultivo-as, já o disse muita vez por cá. Sento-me sempre no mesmo sítio no comboio, vou sempre no mesmo comboio e com o tempo, como é comum, quase natural, suponho, vou-me dando conta de pessoas que fazem o mesmo, sentam-se quase invariavelmente no mesmo sítio, vêm sempre no mesmo comboio que eu. São os meus companheiros de viagem, silenciosos alguns - há uma caloira da UM que tem uma energia e uma verborreia, alegre, absolutamente invejáveis às sete e meia da manhã – leitores como eu, outros tantos; leitores de jornais (especialmente os gratuitos), muitos; auditores (de mp3 ziliões de decibéis acima do aconselhável) outros; mensageadores, alguns, mais ou menos na mesma proporção e faixa etária dos auditores; dorminhocos, alguns também; presentes, todos. E isso, além de curioso, engraçado no início, é agora, a modos que..., confortante.
Não me lembro de quando começou a vir, e muito menos porquê. Estas coisas não têm explicação, mas se tivessem... aposto que seria porque eu estou sempre a ler, ou seja: não falo, não ouço música, não mando mensagens..., muitas vezes, dependendo da parte do livro em que me encontro, nem sorrio para cima em jeito de cumprimento, comme il faut, muitas vezes... Então, um dia ele veio e não me lembro se lhe sorri – é possível que não mas estive a observá-lo, sei, – em pé, esticou-se para colocar a mochila na prateleira de vidro, sobre as nossas cabeças, e sentou-se, depois lembrou-se de que tinha deixado lá o passe e voltou a levantar-se, tirou-o do bolso grande da mochila e meteu-o no bolso pequeno do kispo, voltou a colocar a mochila lá em cima, voltou a sentar-se, mostrou o passe ao revisor, e adormeceu; no outro dia o mesmo, e no dia a seguir e no outro e foi ficando, ou vindo, enfim... Houve um dia em que veio com um colega de trabalho, nesse dia não adormeceu: conversavam os dois muito animadamente. Foi então que percebi o que fazia, entre um parágrafo, é informático, e outro, na UM, do meu livro, e isso talvez justique o desgaste que o leva ao soninho doce do comboio. Imagino os informáticos como geeks sem qualquer noção de tempo, espaço, língua, sociedade, mundo... que não seja o que eles próprios criam frente a um qualquer écran, por isso nunca me passou pela cabeça que o sósia do Tiago Dores, muito arranjadinho, muito certinho no seu casual/sporty chic conjugando perfeitamente as riscas da camisola, com as calças, com o kispo, com as sapatilhas... fosse de todas as profissões do mundo... informático! Acho que trouxe comigo uma imagem do protótipo do informático estrangeira, baseada nos que importunei nos EUA; a mesma conceptualização não se aplica, parece, a este nosso cantinho. De qualquer dos modos, para o caso, a aparência do meu companheiro de viagem interessa muito pouco. Os dias passaram, os meses também, ele continua a chegar, sentar e dormir e eu continuo a ler. Quando pensa que o sol que entra pela janela o pode perturbar no repouso, põe os óculos de sol, Ray Ban – nos EUA os informáticos não fazem ideia o que seja... – quando chove, como quase sempre, como hoje, afunda-se na cadeira e no sono, às vezes também fecho os olhos um pouco e quase me apago, mas nunca completamente, não consigo dormir em viagem, acho que dorme mais profundamente quando, porque chove, está mais escuro; isto depreendo de em dias como hoje em que dorme um bom bocado... de boca aberta.
Não me levanto, nem me deito, a pensar nele, nem sequer entro no comboio, e me sento, com ele no pensamento, mas ocorre-me vagamente assim que se aproxima a paragem em que sei que ele deve entrar, muito especialmente porque, quando regressei de ter estado na Madeira um mês com a minha mãe, me apercebi de que se passara a sentar-se lá à frente. As rotinas podem ser constantes, mas não são eternas, pensei. E não vejo mal nenhum nisso. Há tempos voltou, e, certinho na roupa, constante nos Ray-Ban, continua a colocar a mochila lá em cima, o passe no bolso do kispo, e continua a dormir mais ou menos profundamente, e neste caso ainda de boca aberta, enquanto leio. E coexistimos e coabitamos aqueles centímetros quadrados durante pouco mais de meia hora todos os dias pacificamente, naturalmente, sem constrangimentos, nem protocolos, nem intimidades, nem problemas.
E por isso não percebo que me exigiam os seis olhos de meia idade que migravam constantemente de mim para ele, esta manhã, enquanto me deixava sair antes de tirar de lá de cima a mochila. Não percebo, mesmo.
terça-feira, maio 27, 2008
Da doçura de um chá... quente
Estou a precisar de muita doçura, hoje. Bonito. Muito bonito.
Todos precisamos de doçura todos os dias, nuns dias mais do que noutros, naturalmente. Mas até então, tal nunca me tinha ocorrido. Porque sou mais necessitada de quentura, do que de doçura, suponho. Ou melhor: a minha doçura é preferencialmente quente. "Preciso de beber alguma coisa quente, rápido." E o quente apesar de não ser tão bonito, melodioso e suave e profundo como a doçura, conforta-me exactamente da mesma maneira. Envolve-me de uma languidez e de uma serenidade tão grandes quanto necessárias. É a minha doçura! Agora mesmo estava a pensar no quanto preciso de um chá, bem quentinho, porque... "Estou mesmo a precisar de muita quentura, hoje!"
sábado, maio 24, 2008
A comunicação sem canal
Em Linguística falamos muito de comunicação. A linguagem serve antes de tudo o mais a comunicação. A níveis de escrita correspondem necessariamente níveis de leitura, mas, independentemente dos modos e dos meios, o importante mesmo é a eficácia/eficiência da comunicação. A Pragmática e a Prosódia são, disciplina e componente, essenciais à comunicação. Mas a comunicação não é nada disso. Ou é. Mas muito, muito mais que isso, também.
Ontem tirei o dia para fazer de cicerone a uma amiga polaca que veio ao Porto, pela enésima vez, dar uma conferência e queria, com a filha de onze anos, conhecer... Braga. Calhava bem, a sexta-feira, com elas, bem juntinha ao feriado, só para mim, dava ao meu espírito, por antecipação, um entusiasmo muito grande –a deliciosa projecção daqueles dois dias juntos sem “linguísticas” leituras... bem vistas as coisas, uma espécie de fim de semana de que não dispunha há anos-luz!
A minha amiga fala um inglês invejável, tirou na Irlanda o curso e o doutoramento, mas a filha, naturalmente, aos onze anos, não se pode gabar do mesmo. Se a isto juntarmos o meu Polaco, que se encontra num estado ainda pior (não vai além do sim, não, bom dia, boa noite, adeus, obrigada.), o dia prometia. Saímos relativamente cedo do Porto, chegamos à hora prevista a Braga, fizemos o périplo normal pelos museus da cidade e pela Sé, fomos almoçar ao meu restaurante favorito (não-vegetariano), fotografámos o barroco, o gótico e o manuelino, fomos às compras, à minha Faculdade e acabámos o dia a lanchar na minha livraria predilecta. Foi bom, muito bom, especialmente tendo em conta o azar delas no dia anterior, tanto com o tempo, como com o atendimento e com a própria comida (!) num dos mais famosos e típicos restaurantes da baixa do Porto. A M., filha da minha amiga, já só queria ficar por cá, que as pessoas afinal são simpáticas e a comida, uma delícia! Ou pelo menos era o que dizia à mãe, que me dizia a mim, numa espécie de chain translation muito engraçada e sobretudo, creio, sincera.
No fim de contas, para dividirmos as sobremesas e escolhermos brincos e blocos de desenho, para partilharmos os phones do ipod no comboio e apanharmos papoilas, a língua é, quase absolutamente, desnecessária.
A comunicação é uma coisa extraordinária, porque, ao contrário do constante nos manuais, não se baseia somente na conjugação de factores como uma mensagem, falada, escrita, um emissor, um receptor, um canal (preferencialmente sem ruído)... Não. Há mensagens que não necessitam de qualquer tipo de canal para se efectivarem com eficiência. A comunhão dispensa, as mais das vezes, a comunicação. A ausência dela (de comunhão) também, suponho.
Estamos na era das comunicações infelizmente: a comunicação passou de actividade natural localizada e circunscrita a determinados contextos a necessidade. Os telemóveis ajudam, a internet também. Por meio da palavra, sempre. É preciso responder, é preciso explicar, é preciso clarificar, é preciso especificar, é preciso esmiuçar, é preciso mostrar e moer e magoar e ficar por cima.
Acarinhei cada momento do dia de ontem com a I. pelas nossas conversas do costume, e com a M. sobretudo pelas conversas que não tivémos, pela economia da linguagem falada. Há muitas maneiras de dizer sem falar - como na adolescência e nos tempos da Faculdade quando fazia “retiros de silêncio” -, porque as coisas importantes saem-nos do coração e vão até ao outro, que entende, se assim tiver de ser.
A M. entendia-me ontem na perfeição.
segunda-feira, maio 19, 2008
O que fazemos com as mãos
Lembro-me que ele passava todo o nosso tempo livre, o tempo que eu empregava a ir ter aulas extra-curriculares de Italiano ou a ler La Gloire de Mon Pére e o Chateâu de ma Mére do Marcel Pagnol (que foi assim que a minha professora de Francês começou naquele meu décimo primeiro ano a tentar levar-me para as românicas, da melhor maneira, ao emprestar-me toda a sua Biblioteca), a projectar a loja, o seu interior, muito mais até do que o nome que lhe daríamos ou os produtos que poríamos à venda. “Cada um de nós tem que construir alguma coisa para se por lá dentro. Uma coisa feita pelas nossas mãos.”
Uma coisa feita pelas nossas mãos. A minha avó, muito antes de eu ir para a escola, achou de me ensinar a bordar, e, dizem que eu não me lembro, cheguei a fazê-lo melhor do que ela! Coisa absolutamente extraordinária. Só que a seguir veio a escola e o violino e o ballet e a natação e o inglês e o francês e o bordado ficou longe, longe, longe, naquele sítio nosso, a memória, onde ficam guardadas todas as coisas que um dia fizeram parte de nós mas que jamais sê-lo-ão de novo. Hoje em dia, bordar é coisa que não faço. Porque pura e simplesmente não sei, e aprender de novo é coisa para alguma paciência e muitas tardes de sol que emprego na Madeira a fazer outras coisas. Mas, apesar disso, gosto de trabalhos de mãos. Sempre gostei. Em miúda preferia as pinturas às bonecas; na adolescência passava noites seguidas com a minha mãe a guarnecer caixinhas de madeira, ou a confeccionar estojos de tecido; e ainda agora acumulo uma série de revistas para fazer bijouterias e malas, coisas bonitas, só para mim, só porque sim!
Aos fins de semana costuma-se fazer um bolo cá em casa, no Porto. Normalmente é a minha irmã mais nova que o faz, porque tem gosto nisso (e faz questão), mas ontem, não sei porquê, a vontade de assegurar a tradição era pouca, e a mim que me apetecia tanto (!), esperei, esperei, esperei e nada, quando por fim lhe “lembrei”....: “Se queres, faz tu.”
Conclusão mais óbvia e imediata: fiz eu. A verdade é que já não fazia um bolo há muito tempo, nem sei já se terei feito algum desde que moramos os quatro todos juntos no Porto. Se calhar não. Por isso, ou talvez não, nem sei, foi óbvia a receita que escolhi, a minha predilecta: Bolo de Maçã com Canela, e soube tão bem!... O procurar todos os ingredientes nos armários, o medir, o contar, o inventar (necessidade, a quanto obrigas!), o prestar atenção ao tempo, o desenformar, o comer quentinho, o consolar de uma tarde pouco doce (mas Parabéns ao SCP!), o comer ainda depois do jantar...
O meu amigo tinha razão em valorizar as coisas que fazemos com as mãos. Há coisas que fazemos com as nossas mãos e a que raramente damos valor. São coisas incrivelmente importantes e belas. Mesmo que durem apenas uma tarde.
quinta-feira, maio 15, 2008
Da família
A vida leva-nos por caminhos diversos dos que imaginámos aos dezassete anos e orienta-nos de forma sábia, sempre, mesmo quando o contrário seja aquilo que se apresenta mais clara e rapidamente aos nossos olhos.
Gostava de ter uma família como a minha. Não exactamente como a minha, não é possível, claro, não o oposto da minha, não me seria possível nem expectável, claro, mas como a minha, no sentido em que os mesmos valores, mais ou menos tradicionais, estejam presentes e sirvam de conforto e guia. Conheço muita gente que não quer ter uma família como a sua, nem sequer quer ter família. E isso a mim causa-me espanto. Numa altura em que se defende cada vez mais uma sociedade plural em que muitas famílias já são mono-parentais, adoptivas, afectivas, e ainda assim, e bem, funcionais, há algo que me escapa e que temo sempre quando alguém, da minha idade e do meu meio, me diz que não querer ter, de todo, uma família. Claro que existe sempre a família dos sobrinhos, dos afilhados, dos amigos, dos vizinhos, dos gatos, dos cães, dos peixinhos dourados e dos cágados, e a do clube, e a do xadrez, do bridge, do golf, do ginásio, e a do emprego, e a do comboio ou do metro, ou do autocarro ou da pastelaria, até, mas, apesar do sentimento, tão bom, de pertença ser quaaaase o mesmo, não sei até que ponto a certeza da presença será a mesma na vida da gente.
Às vezes penso que é um problema da portugalidade, queremos tanto ser, estar, fazer como se é, está e faz lá fora, a maior parte das vezes sem saber porquê ou, pior, importando motivos, causas e razões que nos são completamente inadequadas, que caímos neste absurdo de não ser, fazer nada de jeito. Por todos os sítios onde estive conheci pessoas com a mesma vida, instável, desafiadora e exigente, que eu e a generalidade dos meus amigos que acham que Portugal não é um país de/para famílias, e que, em boa verdade não sendo portugueses, têm famílias belíssimas, algumas bem numerosas. São pessoas que, por acaso ou talvez não, não fazem férias há muito, nem vão ao ginásio e jantam fora poucas vezes, mas sabem receber como ninguém nos seus T1s+1, por entre desculpas acerca da lasagna que quase queimava por causa do banho da bebé, ou da camisa que estava impecável, e continua agora mas com nódoas de chocolate..., sabem receber pessoas como eu, que se deliciam com o à-vontade dos pequeninos, a turbulenta paz da casa e aquela chama nos olhos dos pais... Qualquer coisa de extraordinário que aquece o coração de uma maneira!
na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu.
depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu.
hoje, na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva.
cada um deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.
José Luis Peixoto
segunda-feira, maio 12, 2008
Dos regressos.
A semana passada foi a semana dos regressos. Da admirável inefabilidade do regresso. Este post podia chamar-se assim.
Deixei de gostar da palavra regresso quando comecei a estudar em Literatura Grega a Odisseia. O professor entusiasmava-se ao falar da raiz que em Grego regresso (nosós) e doença (noséos) têm em comum e eu não compreendia. Doença, regresso; regresso, doença. Nunca regressamos de sítio nenhum para sítio nenhum iguais, mas doentes? Doentes do regresso? Doentes pelo regresso? Regressar, adoecer. Não percebia. Não percebia, até ter ido para Santiago de Compostela certa vez com um rapaz, espanhol, que, do outro lado da coxia, viagem toda, chorava. Alto. Alto. Alto. Não percebia, até ter feito o mesmo nas mais de dez horas de uma madrugada que não acabava nunca, num autocarro de Faro ao Porto, Agosto passado.
A semana passada foi a semana dos regressos, do eu à porta que deixei aberta, todo o tempo, para ti, e das janelas que fechei, todos os dias, por ti.
A semana passada foi a semana dos regressos, daquilo que me enche verdadeiramente o coração e que eu julgava perdido, coração esquecido, amarrotado, no fundo de um caixote de papéis de um país vizinho, mas distante.
A semana passada foi a semana dos regressos, do tu que nunca deixarás de ser, da tua camisola de lã inglesa, azul aos losangos, do tu que nunca chegaste a ser, do que tu nunca consegues ser, de todos os tus que foste.
A semana passada foi a semana dos regressos, do que eu nunca fui, do meu xaile vestido e do meu xaile dobrado, nas costas da cadeira, do eu que não sou, do eu que não deixarei de ser.
A semana passada foi a semana dos regressos, do sentido que finalmente tudo tem porque todo o sentido se perdeu.
A semana passada foi a semana dos regressos, de um eu, melhor que eu: portas e janelas abertas, cabelo ao o vento, mão em concha, a amparar o sol que veste de luz e vida o interior da casa.
quarta-feira, maio 07, 2008
As rosas belgas
No meu aniversário uma das minhas melhores amigas ofereceu-me uma rosa. Uma rosa artificial. Achei estranho; primeiro porque já me tinha dado uma prenda - foi, por acaso, a primeira a fazê-lo! - uma prenda de amiga, uma daquelas coisas que quem me conhece sabe que gosto, que uso, muito, e que, naquela cor, realmente tem tudo a ver comigo. Mas isto foi muito antes dos anos, prenda de anos dada com um mês de antecedência "...porque nos teus anos já não estou na Figueira, de certeza, e do Algarve, de Bragança ou do Alentejo não é certo que venha cá acima, nem com o feriado!..." Por acaso não está em nenhum dos nenhures que temia e veio, daí o segundo presente. (Ela está em Silves e feliz). "Porque se fosse natural, estragava-se num instante e assim sempre que olhares para ela, pensas em mim.) Sempre que me sento à secretária penso nela, às vezes paro de trabalhar para olhar a rosa e pensar nela; penso, penso, penso mais do que em toda a nossa convivência de dez anos de partilha de mesa na Faculdade, nos nossos almoços e jantares e aventuras de vida de professora nova num país velho, como o nosso.
O meu irmão disse-me que uns investigadores não sei donde fizeram um estudo, coisa da moda, e chegaram à conclusão que Bruxelas é a cidade mais aborrecida da Europa. Eu não conheço todas as cidades da Europa, por enquanto apenas seis, mas conheço Bruxelas, bem, o centro de Bruxelas. Conheço o que toda a gente conhece e tenho uma particular predilecção pelas Galleries St. Hubert. E não, não é graças à Loja dos chocolates Neuhaus - se bem que a montra de há um ano precisamente estava tão bonita(!), toda chocolates e flores... de encantar(!), nem sequer devido à lindíssima Taverne du Passage, mas apenas e tão só por causa de uma loja de Rosas, cujo cartão não encontro para lhe recordar o nome, mas que ainda hoje consigo visualizar muito bem na memória, pequena, moderna, extremamente elegante, com arranjos absolutamente inusitados e portanto magníficos que prendem o nosso olhar em todo o lado. Rosas, só rosas: naturais, com cheiro, caules grossos e finos e espinhos e folhas e uma ou outra pétala que se retira porque envelheceu.
Viveria de bom grado na Bélgica, e contudo nunca em Bruxelas, Leuven é a minha cidade, pequena mas cosmopolita, universitária mas bucólica, um sorriso azul, um livro amarelo, um abraço verde, uma visita a um moinho de trigo, uma papoila no cabelo, o vento na cara ao sabor do sol do campo. Ou pelo menos era isso que pensava o ano passado. O meu amigo B., por exemplo, vive em Leuven e vai todos os sábados de manhã passear os bebés a Bruxelas. O meu amigo B. tem uma vida perfeita, às vezes fico com medo só de pensar nisso, mas quando consigo evitar não pensar muito, invejo-lhe a rotina e as idas semanais à cidade mais docemente florida, perdão, aborrecida da Europa.
No entanto, percebo a minha amiga Helena. É tão humano e tão natural o desejo de capturar momentos de beleza. Passamos a vida a fazê-lo. Tentamos reter momentos de beleza, pedacinhos de amor, gestos de ternura, bocados de dor, réstias de esperança... Tiramos fotografias, guardamos prendas, gravamos sms e números, memorizamos palavras e gestos, agarramo-nos a pessoas e momentos... Para mais tarde recordar. Ou para recordar sempre, todo o dia, todos os dias - como pretendia a minha amiga com a sua rosa incólume, mas sem cheiro, nem rugas.
Esta manhã enquanto passava a blusa a ferro, recebi uma sms da minha irmã que fez noite, na noite certamente mais longa da Queima das Fitas do Porto, a informar-me de que vamos logo a um festival de Tunas. "Vamos? Olhe que não, olhe que não..." Pensei. Mas não disse porque a minha irmã acabou o curso o ano passado e portanto ainda tem vontade e ânimo e gosto e fervor em participar nestas coisas. Um fervor que já tive e que nem sei explicar muito bem como desapareceu. Não sei há quanto tempo não oiço sequer os cds das minhas tunas predilectas, cds que muita gente gravou em Braga e que levei inclusivé para os EUA (onde fizeram um sucesso tremendo, claro!), mas que não ouvi nem uma vez, nem oiço há muito, muito tempo. E pensar que tempos houve em que me desdobrei em esforços, discuti para além do razoável, investiguei, escrevi, e tive pena, muita pena, de que aquela tuna, aquela minha tuna, não pudesse permanecer o mundo de sentido que foi para mim desde o dia em que primeiro a ouvi. Para sempre imutável no tempo. Um absurdo. Para mim agora.
Que só um sentimento muito grande pode fazer brotar. Como a amizade que me tem a Helena com a sua rosa, mais perfeita que todas rosas belgas. Para mim agora.
segunda-feira, maio 05, 2008
Uma ou muitas...
Um dia, quando me falava de uma qualquer especificidade da sua língua, dizia em jeito de conclusão absolutamente justificativa: "We're a one thing culture: one language, one husband, one family, one country. Do you have the same?". Eu logo: "Huh... of course (!), we have mo..., no, no we don´t anything like that. But, hey we have this folk joke about this child that goes to the fridge to fecth her mom a drink, a beer - I think..." E tentando contar a anedota do "Mãe-há-só-uma-!", tentava como podia ilustrar, mais que o conceito de maternidade, aquilo que é a mundividência do velho continente. Ela não percebeu, claro, e eu devia ter previsto, mas como se riu desbragadamente... isso divertiu-nos a ambas. Depois, fomos para a aula de Semântica e nem de propósito, falámos do complexo semasiológico da palavra mother do Lakoff (mãe biológica, mãe solteira, mãe de aluguer, mãe afectiva, mãe adoptiva, mãe adolescente, mãe de classe média (americanos!), mãe trabalhadora/working mother, terra-mãe, casa-mãe, rainha-mãe...), o que fez com que no fim viesse ter comigo e me dissesse, algo chocada e/ou triste, nunca percebi bem: "I think only now do I understand the joke about..." E eu logo, novamente: "Never mind that, So Yeon, deep down it is all the same: just hink about nouns and adjectives, I only have one mom, my mom-noun, but I know several people that are moms-adjective!" Tirei-lhe uma bigorna de cima, vi-lhe nos olhos e no sorriso, porque de repente me pareceu tão leve e sorria calma, não se ria como com a piada, sorria e isso fez-me muito feliz.
Ainda hoje continuo a pensar nos nomes e nos adjectivos, especialmente quando me lembro da Teresinha que ficou comigo nos primeiros tempos em Paris, na Suzana que me adoptou no meu segundo Natal em Houston, na mãe da Isabel quando ia a Famalicão, na mãe da Patrícia quando fui a Valpaços, na mãe da Helena, volta e meia, mas muito especialmente quando ouço banalizar os nomes. Por exemplo, nunca consegui perceber bem por que a mulher do meu tio, minha tia - claro está! - chamava a minha avó de mãe. A minha mãe fartou-se de me explicar, mas ainda actualmente, quando penso nisso, me faz espécie. Mãe há só uma(!) do tipo nome para cada pessoa. Para tornarmos as coisas simples. Todas as coisas são simples no coração. Porque são ou não são.
Ontem foi Dia da Mãe e a minha estava felicíssima porque tinha acabado de passar uma semana com a minha irmã T. e não pode haver prenda melhor que ter os filhos por perto, que os telemóveis fazem maravilhas mas nada podem contra a presença efectiva de quem nos é querido.
Ontem também foi o aniversário da Irmã Céu. E não se pode juntar duas efemérides assim num dia só. Não é justo. Nos EUA o Dia da Mãe é só no próximo fim de semana. Aqui também devia ser nessa altura, apenas porque a Irmã Céu merece um dia no ano só, só dela.
A Irmã Céu foi a Directora do meu Lar nos meus dois últimos anos em Braga. E é a única pessoa que eu conheço a quem um mãe do tipo adjectivo não assenta de todo: fica-lhe muito apertado, arrepanhado de costuras quase a rebentar, e no entanto...
Não sei explicar bem, ela chegou sem fazer alarde, e até fazia tudo a que estávamos habituadas que elas todas fizessem, mas era simultaneamente diferente, chamou-nos à parte, explicou o seu projecto para os anos seguintes, traçou metas e objectivos e pôs em marcha uma mudança muito grande em toda a gente naquela casa. Tinha e tem um dom muito grande: o de descobrir e conseguir trazer ao de cima, naturalmente, o melhor de toda a gente. Por isso, não me surpreendi quando uma noite me entrou no quarto, a altas horas da madrugada, para ver a Olga dormir - eram quatro da manhã, o Filipe tinha-lhe telefonado e dito que tinha discutido com a Olga e não conseguia ir dormir sem saber se ela estava bem; por isso não me surpreendi quando encontrei no corredor uma rapariga que não conhecia, aluna do Lar de Viseu, que tinha vindo de propósito para a ver e não conseguia parar de chorar... e eu a tentar todo o tempo dizer algo que a fizesse rir, mesmo sabendo que na mesma situação eu reagiria de igual forma. Por isso não me surpreendi me chamou, com ar seríssimo, ao seu gabinete no fim de uma semana extenuante de estágio. "Ouve lá, sonhei que um príncipe a cavalo vinha cá buscar-te ao Lar, queres dizer-me alguma coisa?" desatei a rir. "Espere aí, a Irmã tem sonhos premonitórios? ... costuma ter? Bem me parecia. Cá para mim, inconscientemente quer que eu lhe siga as pisadas e ficou, sabe-se lá porquê, insegura. Olhe, o Freud explicava bem isso. Príncipe a cavalo!" Por isso não me surpreendi quando a li nos EUA. Aliás, a leitura dessa carta e postal anexo, sob o sol do Texas, no jardim do Student Center da Rice, é das lembranças mais felizes que tenho dos meus primeiros e mais duros tempos em Houston. Ela está sempre aqui. Onde quer que o aqui seja. E eu sempre soube isso. Mesmo quando pensava que nem eu, nem ela estaríamos no Lar para sempre. Mesmo quando eu pensava que sempre era um tempo muito grande para ser pensado no aqui e no agora.
O Lar tinha umas escadas que davam da entrada para o início do corredor e outras que davam do fim do corredor para a lavandaria. Como sou da Madeira, era das pessoas que mais fazia uso das escadas do fim do corredor e foi numa dessas idas lá abaixo buscar a roupa passada a ferro (com um esmero francamente invejável!) que descobri a "recordação" que queria levar do Lar.
A tradição das "recordações" é muito engraçada, especialmente porque começou por acaso. Certo dia ao jantar, andaria eu no meu terceiro ano, uma das mais velhas descobriu na gaveta dos talheres um garfo com as iniciais do Lar, mexeu e remexeu e conseguiu desencantar a respectiva faca, um verdadeiro achado, que a levou logo ao refeitório das Irmãs para uma pergunta inusitada: "Posso levar quando me for embora? ... oh, Irmã, de recordação..." Pode. E assim começou a tradição.
É claro que garfos e facas, mesmo com inscrição, não são coisas que me façam sonhar, mas aquela Nossa Senhora... Não sei onde a Irmã Céu a foi descobrir, numa arrecadação qualquer, de certeza, porque estava maltratada, mas era linda! Era uma Nossa Senhora das Graças, aí de uns dois metros, muito imponente, com uns olhos muito azuis, umas vestes muito brancas, umas rosas e uns raios desbotadíssimos, ali bem à entrada da lavandaria! "Oh Irmã, vá lá, eu mando retocá-la, e depois, no Porto, ponho-a num lugar mais digno, prometo, olhe que aqui... Eu trato bem dela, vá lá..." É óbvio que não ma deu, e eu sempre soube disso, mas como nunca tivemos segredos, nem problemas, nada mais natural do que tentar a minha sorte...
E pronto, foi nisto que andei a pensar ontem o dia todo. Nisto e na necessidade de ir a Lisboa um dia com o intuito de ver os amigos apenas. Até porque a Irmã Céu está lá desde há uns tempos e eu costumo ir lá, mas sempre a correr entre conferências e bibliotecas a fugir à perda de tempo. Da próxima vez é que é: o tempo que dedicamos às pessoas do tipo nome a quem o adjectivo mãe não serve nunca é tempo perdido.