quarta-feira, maio 28, 2008

De rotinas, soninhos doces em viagem e exigências da meia idade

Um taxista nova iorquino decidiu aqui há tempos pôr em livros as histórias, as vidas, que se sentavam no banco de trás do seu automóvel, que em NY há muita história, muita vida, que merece ser contada, partilhada, mesmo quando um vidro, qual lente, separa o utente do condutor (e ainda bem).

Pensava nisto ainda há pouco quando, ao fechar o livro que ando a ler, a escassos minutos da paragem terminal do comboio, me deparei com seis olhos à minha esquerda a exigir-me silenciosa mas muito firmemente um gesto. Qual, não sei ao certo, não tive tempo de o descortinar, já que em piloto automático me encaminhava serena e quase segura – não fossem os tais seis olhos – para a porta.

Mas suspeito que tem qualquer coisa a ver com o meu companheiro de viagem. Sou uma pessoa de rotinas, prezo-as, cultivo-as, já o disse muita vez por cá. Sento-me sempre no mesmo sítio no comboio, vou sempre no mesmo comboio e com o tempo, como é comum, quase natural, suponho, vou-me dando conta de pessoas que fazem o mesmo, sentam-se quase invariavelmente no mesmo sítio, vêm sempre no mesmo comboio que eu. São os meus companheiros de viagem, silenciosos alguns - há uma caloira da UM que tem uma energia e uma verborreia, alegre, absolutamente invejáveis às sete e meia da manhã – leitores como eu, outros tantos; leitores de jornais (especialmente os gratuitos), muitos; auditores (de mp3 ziliões de decibéis acima do aconselhável) outros; mensageadores, alguns, mais ou menos na mesma proporção e faixa etária dos auditores; dorminhocos, alguns também; presentes, todos. E isso, além de curioso, engraçado no início, é agora, a modos que..., confortante.

Não me lembro de quando começou a vir, e muito menos porquê. Estas coisas não têm explicação, mas se tivessem... aposto que seria porque eu estou sempre a ler, ou seja: não falo, não ouço música, não mando mensagens..., muitas vezes, dependendo da parte do livro em que me encontro, nem sorrio para cima em jeito de cumprimento, comme il faut, muitas vezes... Então, um dia ele veio e não me lembro se lhe sorri – é possível que não mas estive a observá-lo, sei, – em pé, esticou-se para colocar a mochila na prateleira de vidro, sobre as nossas cabeças, e sentou-se, depois lembrou-se de que tinha deixado lá o passe e voltou a levantar-se, tirou-o do bolso grande da mochila e meteu-o no bolso pequeno do kispo, voltou a colocar a mochila lá em cima, voltou a sentar-se, mostrou o passe ao revisor, e adormeceu; no outro dia o mesmo, e no dia a seguir e no outro e foi ficando, ou vindo, enfim... Houve um dia em que veio com um colega de trabalho, nesse dia não adormeceu: conversavam os dois muito animadamente. Foi então que percebi o que fazia, entre um parágrafo, é informático, e outro, na UM, do meu livro, e isso talvez justique o desgaste que o leva ao soninho doce do comboio. Imagino os informáticos como geeks sem qualquer noção de tempo, espaço, língua, sociedade, mundo... que não seja o que eles próprios criam frente a um qualquer écran, por isso nunca me passou pela cabeça que o sósia do Tiago Dores, muito arranjadinho, muito certinho no seu casual/sporty chic conjugando perfeitamente as riscas da camisola, com as calças, com o kispo, com as sapatilhas... fosse de todas as profissões do mundo... informático! Acho que trouxe comigo uma imagem do protótipo do informático estrangeira, baseada nos que importunei nos EUA; a mesma conceptualização não se aplica, parece, a este nosso cantinho. De qualquer dos modos, para o caso, a aparência do meu companheiro de viagem interessa muito pouco. Os dias passaram, os meses também, ele continua a chegar, sentar e dormir e eu continuo a ler. Quando pensa que o sol que entra pela janela o pode perturbar no repouso, põe os óculos de sol, Ray Ban – nos EUA os informáticos não fazem ideia o que seja... – quando chove, como quase sempre, como hoje, afunda-se na cadeira e no sono, às vezes também fecho os olhos um pouco e quase me apago, mas nunca completamente, não consigo dormir em viagem, acho que dorme mais profundamente quando, porque chove, está mais escuro; isto depreendo de em dias como hoje em que dorme um bom bocado... de boca aberta.

Não me levanto, nem me deito, a pensar nele, nem sequer entro no comboio, e me sento, com ele no pensamento, mas ocorre-me vagamente assim que se aproxima a paragem em que sei que ele deve entrar, muito especialmente porque, quando regressei de ter estado na Madeira um mês com a minha mãe, me apercebi de que se passara a sentar-se lá à frente. As rotinas podem ser constantes, mas não são eternas, pensei. E não vejo mal nenhum nisso. Há tempos voltou, e, certinho na roupa, constante nos Ray-Ban, continua a colocar a mochila lá em cima, o passe no bolso do kispo, e continua a dormir mais ou menos profundamente, e neste caso ainda de boca aberta, enquanto leio. E coexistimos e coabitamos aqueles centímetros quadrados durante pouco mais de meia hora todos os dias pacificamente, naturalmente, sem constrangimentos, nem protocolos, nem intimidades, nem problemas.

E por isso não percebo que me exigiam os seis olhos de meia idade que migravam constantemente de mim para ele, esta manhã, enquanto me deixava sair antes de tirar de lá de cima a mochila. Não percebo, mesmo.

6 comentários:

Ouriço-Cacheiro disse...

Sem querer tens com ele a relação perfeita "todos os dias pacificamente, naturalmente, sem constrangimentos, nem protocolos, nem intimidades, nem problemas"... Sortuda!

Joana disse...

Ouriço,

Touché! :) (O mal é eu ter pelo abismo da relação imperfeita uma atracção fatal! ;)

Jinhos.

rui disse...

Olá Joaninha

Relações impessoais, mas que habitam em nossa mente e que fazem parte do nosso dia a dia, descritas de forma deliciosa!

Adorei!
Beijinhos

Joana disse...

Rui,

Ora se os seus comentários não me encantassem (tal como as fotos), isso é que era de estranhar. :)))

Já matei saudades do jacarandá! :P

Jinhos.

Oásis disse...

Seis olhos? Três outros passageiros?

Jinhos.

Joana disse...

Exactamente: Três senhores com ar de pais e portanto com idade para terem juízo a mais e ensejos de "casamentices" a menos! :P

Jinhos.