quarta-feira, abril 29, 2009

Simple! Comme un coup de fil...

Joana, já estás acordada? Pedro?! Mas o que é que, sim, estou, claro, não me estás a ligar de onde eu penso que estás, pois não? Claro que estou, Gare Centrale de Brusselles, ma chére. Bem, és maluco, sabias? Eh, mais ou menos. Passa-se alguma coisa, Pedro? Sim, não, queria partilhar contigo uma descoberta. Ah, o costume portanto. Sim, o costume. Diz então. Sabias que o – supra-sumo fundador da nossa teoria – acha que Deus é mulher? Sabia, claro, oh Pedro, já fiz o primeiro ano, já li os livros que andas a ler, já... eu já tudo, totó! Ah, pronto. Ouve lá, continuas a fazer Bruxelas-Lovaina todos os dias? Yep, sabes se o – supra-sumo fundador da nossa teoria – é acessível? É, então não é?!, não há americano que não seja, queres o mail dele? Siiiiiiiim, obrigado, só mesmo tu. Pois, who else, não é? Sabes que no outro dia finalmente percebi por que razão é que e nisso a foi extraordinária e até há dias o explicou-me o quanto. Pois muito bem, fico contente em saber que tudo está a correr dentro da normalidade, a Ana e o bebé que tal? Muito bem agora, sabes que no início. Sim, recordo-me disso, têm ido visitar-te? Não, a Ana não pode, além de tudo agora finalmente conseguiu aquele trabalho no laboratório do Porto, aquele que ela queria muito. Sim, já sei. E, daqui até Junho é rápido. Pois é, Pedro, agora vou entrar no túnel, vou ficar sem rede, quando chegar ao gabinete, falamos melhor, beijinhos, beijinhos. Beijinhos.

E foi nesse derradeiro momento, na despedida a correr, nos beijinhos a fugir à entrada do túnel, foi ao abrir da mala para guardar o telemóvel enquanto fechava o sorriso pelo inesperado, foi aí, foi assim, que me lembrei dos EUA.

Um dia, era fim-de-semana, Sábado ou Domingo já não lembro, mas fim-de-semana de certeza, manhã de trabalho de fim-de-semana no Departamento. Houston silenciosa, o campus deserto, ninguém lá fora, eu e os alemães, o pessoal do costume, no computer lab, eu automaticamente no Messenger, eu a mandar mails, eu a pensar na vida, eu a querer a minha mãe, ele do nada Olá, será que me podias ligar, é que hoje ainda não ouvi ninguém e E eu, telemóvel sem saldo, telefone do departamento operacional apenas para chamadas internas, campus sem cabines, eu expliquei, não posso, mas daí do telefone do Departamento... não podes?, eu continuei a explicação, com muita pena, o telefone daqui é apenas para chamadas daqui, infelizmente, eu, eu do outro lado do mundo, num início de tarde solarengo, como só os inícios de tarde de fins-de-semanas americanos, eu não podia acreditar que, não podia ligar, eu. Continuámos no Messenger, ele calado, eu prosseguindo o trabalho, desassossegada, muito angustiada, de cabeça perdida até ao momento em que o telefone tocou e eu atendi como quase sempre o pai do Martin, só até aí, só até Hamburgo me ter chegado aos ouvidos e eu me aperceber de que só eu não podia ligar, de que o telefone do departamento não permitia efectuar chamadas internacionais mas recebia-as perfeitamente – eu atendia o Dr. H. tantas vezes quantas o Martin atendia a minha mãe, todo o santo fim-de-semana, andávamos dissociados do timing dos nossos pais – é verdade, mas sempre falámos de continente para continente com eles como se vivessem across town.

Andei durante algum tempo com aquele pedido apertado na garganta a tirar-me o sossego e o sono, hesitante entre o óbvio e falibilidades da tecnologia que só existiam na minha cabeça, esquecida do aforismo francófono que equipara a descomplicação a uma chamada telefónica, penitenciei-me, sofri estupidamente, teimei em achar que nos tínhamos adiado, adiando aquela conversa, uma conversa como tantas outras, certamente sobre o sol que não fazia na Europa, a chuva que à boca do Verão aborrecia, o dinheiro que não se tinha para viajar, os copos de sexta à noite... baaaa, não me apercebi na altura de que ele tinha falta de uma ninguém para que nunca tive a mínima vocação. Baaaa.

terça-feira, abril 28, 2009

Que diz, meu anjo?

Eu digo que é preciso ensinar esta coisa do que diz, meu anjo? à minha geração e às seguintes e à da década anterior, a essa então, quase tudo, a todas – enfim.

Eu digo que ainda assim, tudo ensinado, todos ensinados, tudo dito e redito, repetido, assimilado, praticado até exaustão, para sair como deve ser, para sair natural; eu digo que ainda assim nunca vai ser assim, que diz, meu anjo?, nunca vai ser igual à maneira de quem só sabe ser assim, meu anjo. Coisa infelizmente, inexplicavelmente, inscrita num gene do tempo das fotografias a sépia em molduras douradas de forma oval, coisa do tempo das caixinhas de música em cima das penteadeiras, coisa do tempo dos vestidos compridos de frou-frous ao andar.

Eu digo que nunca ninguém vai ganhar as asas que eu ganhei ao sorrir àquele sorriso que me disse que diz, meu anjo?, muito para além do nosso tempo e daquele espaço.

Eu digo que nunca ninguém como eu vai suar a mão naquela mão que me disse que diz, meu anjo?, a segurar o meu desconforto a descer o degrau.

Eu digo que nunca ninguém como eu vai hesitar no gesto, reforçar o sorriso, tremer na resposta, palavra ante palavra, pedido repetido, medido, acedido, meu anjo.

Às vezes esqueço-me de esquecer. Às vezes é mais fácil assim. Às vezes, quando os dias parecem segundos, centisegundos, milisegundos, de nenhuma dor. Às vezes parece que ficou lá atrás, que a deixei numa outra vida, junto com as coisas que me mudaram para sempre. Às vezes parece que sou a mesma, a dantes. Às vezes é mais fácil assim. Às vezes esqueço-me de esquecer – é quando coloco a fé de outrora agora. Às vezes, a esperança toda. Pergunto-me se os anjos também, por uns quantos centisegundos, milisegundos de humanidade. A esperança toda. Antes da circunstância dos bons-dias – demasiado sinceros. A esperança toda. Antes da polidez do sorriso – demasiado sincero. A esperança toda. Antes da prontidão da resposta – demasiado sincera. Às vezes.

Das outras vezes, na maior parte do tempo, tenho a mania de ter a mania. Lugar seguro este da mania. É quando vou contra todas as correntes, contra todos os conselhos, contra todos pais, todos irmãos, todos os amigos, todos os conhecidos e todos os desconhecidos, que não professem a minha doutrina universal do cada coisa a seu tempo, cada problema uma solução, cada pessoa uma circunstância – até ver...!, resolução por ordem de chegada via a sensibilidade necessária a cada caso e dois ou três palminhos de testa. Lugar seguro, este da mania. Pedestal digno, casa, sossego, céu, digno de anjo.

Eu digo que as asas que eu ganhei ontem nunca ninguém, eu digo que esta coisa do que diz, meu anjo?, ontem, do nada, de dentro, abriu um rumo inesperado de luz no osso do peito, no lugar do coração, dentro, dentro, dentro. Eu digo que as asas que eu ganhei ontem nunca ninguém, eu digo que um que diz, meu anjo? destes, de olhos, sorriso, dentes, mãos, e braços de sol, um que diz, meu anjo? destes faz arder qualquer humano como eu no sonho de ser anjo por aquele bocadinho que seja apenas e só até ao fim dos tempos. As asas que eu ganhei ontem... nunca ninguém.

sexta-feira, abril 24, 2009

18 anos, não é?



Obrigada a todos pelo carinho!

quarta-feira, abril 22, 2009

As pessoas não têm a vida que escolhem, mas.

A juventude sai-me pelos poros estes dias. Sai-me do nariz em duas grandes borbulhas – a pior, maior, mais vermelha e mais detestavelmente borbulha, bem na pontinha do mesmo, à la bruxa de contos de fadas, insinua quem manda no meu nariz quando tento um sorriso, despreza-me quando, pela enésima vez, noite consecutiva, ponho um patch e penso amanhã é que vai ser. Não foi, nunca é. Ela continua ali, a sorrir e a desafiar-me, ali vermelha, inevitavelmente vermelha.

A juventude também me sai dos braços e das pernas, moídos, na força que não ando a ter para segurar os sacos das compras da semana e as garrafas nem sei já de quê e. A juventude sai-me ainda no trabalho deixo para depois, nas leituras que não completo, nos rabiscos que apago, nos bocadinhos de mim que vou mandando para o lixo. Estou velha. Ando velha estes dias.

Ontem fui ao médico. Por questões que nada têm a ver com a idade ou a juventude nem sequer com a velhice, porque andava há anos a adiar esta ida sem razão, porque esta semana pareceu-me a certa, porque às vezes temos mesmo de pontilhar todos os is e traçar os tês todos como quem larga um balão ou abre uma janela ao frio.

A determinada altura As pessoas não têm a vida que escolhem, mas, Joana, repare, não lhe parece, olhe que. Reparei. Pareceu-me. E já estava a olhar desde que entrei e me sentei.

Aquele cubículo pequeno, aquela janela fechada, aquela luz bonita, fora, aquela secretária, antiga, os papéis, aqueles impressos, a ficha, aquela caneta, a caligrafia, aquelas cadeiras, a cortina, a bata, a camisa, os óculos, o sorriso, aquelas palavras. As pessoas não têm a vida que escolhem, mas.

A juventude sai-me pelos poros estes dias. Entrarem-me estas coisas pelos ouvidos não a detém: passamos a vida a fazer escolhas, mesmo quando não escolhemos, ou até quando escolhemos não escolher. E um mas, mesmo quando sai da boca de um médico, mesmo quando nos chega em forma de esperança e com um sorriso paternal, mesmo quando quase aquece ao lembrar outros dias, uma vida mais simples, um mas chega para muito pouco estes dias. Velha.

segunda-feira, abril 20, 2009

Hoje, amanhã, depois e depois


Homenagem a Saguenail

São sete filmes que dialogam entre si e nos falam de cinema através dos meios próprios do cinema. São quatro filmes de Saguenail, cuja obra questiona os (i)limites do cinema. É uma pequena visita ao universo de um realizador para quem o trabalho de sombra sobre as imagens e os sons sempre implicou a revisitação das formas que o cinema deu à luz.


Regina Guimarães



Segunda-feira, dia 20 de Abril

Pier Paolo Pasolini, La Ricotta 21h 30m

Saguenail, A Imitação

Livraria Leitura Books & Living Centro Comercial Cidade do Porto


Terça-feira, 21 de Abril

Robert Wiene, O Gabinete do Doutor Caligari 21h 30m

Saguenail, Mau Dia

Livraria Leitura Books & Living Centro Comercial Cidade do Porto


Quarta-feira, 22 de Abril

Chris Marker, La Jetée 21h 30m

Saguenail, Pas Perdus

Livraria Leitura Books & Living Centro Comercial Cidade do Porto


Quinta-feira, 23 de Abril

Saguenail, Ma’s Sin 21h 30m

DEBATE

Cinema Medeia Centro Comercial Cidade do Porto


ENTRADA LIVRE

CICLO ORGANIZADO

PELO INSTITUTO DE LITERATURA COMPARADA

MARGARIDA LOSA (FLUP) integrado no Colóquio Internacional e Interdisciplinar "Artes da Perversão"

Apareçam que eu também!

quinta-feira, abril 16, 2009

Nós e Qualquer Coisa a ver com Ela

Viu?, aquelas senhoras olharam para ela e depois para nós, acham que nós temos qualquer coisa a ver com ela, Pois..., mas não temos, já cá estava quando cheguei, sabe?, nunca pensei que isso fosse sequer possível, ai, não se ria, pela primeira vez não sou a primeira a chegar, é estranho – não é engraçado!, antecipou-se-me, coisa impensável com esta chuva, e no entanto..., olhe, se calhar é por causa da chuva, alguém teve pena e deixou-a aqui, abrigou-a aqui debaixo, como nós, de resto..., Não, não é por causa da chuva, Joana, é porque a Páscoa está arrumada, reparou?, o oratório dali da frente foi fechado ontem, as plantinhas, todos os vasos remetidos às respectivas origens e esta... esta deixaram-na aqui, Pois..., triste, coitada!, ainda assim tiveram o cuidado de a deixar ao sol, até nem está mal aqui, aqueles raiozinhos incidem precisamente sobre ela, vê?, Vejo, mas incidem porque já não chove, Joana, daqui a nada, não haverá raiozinho que a salve..., Pois, se calhar, está um bocadinho maltratada, não acha?, demasiadas ervinhas, a Páscoa não foi lá muito selectiva, botanicamente falando, e nem sequer diligente na ornamentação, enfim... coitadinha da plantinha!, podia levá-la para casa, aposto que, ai, não se ria, está bem-disposto esta manhã..., Não aposte Joana, só a podia levar, devia, na cabeça daquelas senhoras que acham que nós..., Já sei, mas se calhar temos, qualquer coisa, sabe?, Sim?, Qualquer coisa a ver com ela!, Ah isso... se calhar.

terça-feira, abril 14, 2009

Não há palavras a cores

Um dia fui para os EUA e a minha vida mudou.

Um dia, um desses muitos que passei em Houston, um dia, num dos primeiros meses de estadia, que já seriam os quartos ou quintos meses de estadia, mas primeiros on my own, um dia, apercebi-me de que o espaço daquele apartamento, tão pequeno, crescia todos os dias, muito, tanto!, sempre. Crescia pela distância, crescia pelas ausências, crescia pelo silêncio, crescia pelo cansaço, crescia pelo trabalho, crescia pelas saudades. Conseguia crescer mais do que o meu desalento a olhar o tecto branco desde o sofá ao final do dia todos os dias.

Um dia, não sei como, não sei porquê, pus-me a escrever, esqueci-me do tecto, do espaço, das horas... no sofá. Pus-me a escrever, o pensamento lá longe, na minha língua, uma história que surgiu não sei de onde, com enredo e personagens para miúdos e uma moral para todos, especialmente os mais graúdos, uma espécie de conto, a modos que infantil, uma coisa absolutamente diferente de tudo o que já tinha feito, fiz, especial por ser a primeira escrita, extraordinária por uma série de razões que a modéstia cala já e que se ligam ao Ricardo.

Precisei, precisava, de um ilustrador, não conhecia nenhum, tarefa difícil quando não se conhece muita gente que, tarefa difícil quando os nossos amigos são professores, ou músicos, ou geógrafos, ou desportistas, ou médicos, ou filósofos, tarefa difícil quando se está onde se estava, pelas razões que se estava, tarefa difícil! Um pouco a medo, muito às cegas, um pouco em desespero de causa, muito em desespero de causa, escrevi no campo Para: o e-mail que a Té me tinha enviado, tenta lá, ele faz umas caricaturas fenomenais dos nossos profes cá da Faculdade, sabes quem é o meu afilhado, é aquele amigo da Primária...

O amigo da Primária. O Ricardo tinha sido, oito anos antes, o melhor amigo do meu irmão na Primária. O Ricardo era, nesse ano, tinha sido, dois anos antes – já não lembro... – o caloiro-afilhado da minha irmã na Faculdade. O Ricardo era o irmão daquele que, não sendo o melhor amigo, era o colega de carteira da minha irmã mais nova na Primária, também.

Não conhecia o Ricardo. Nunca o tinha visto na vida. Nunca o tinha visto. Mesmo. Isto apesar de toda a gente lá de casa achar que não, que ele me tinha sido apontado na Missa do Galo não sei de que ano e na Sexta-Feira Santa de um outro e numa Missa de um Domingo qualquer do Tempo Comum de um Verão ainda mais comum, de tão banais e curtos que sempre foram os meus verões desde que vim para a Faculdade. Conhecia a mãe dele, conhecia a tia dele, amigas da minha mãe, não o conhecia a ele, nem ao irmão, nem aos amigos e colegas de escola dos meus irmãos mais novos por eles distarem de mim precisamente quatro e seis anos: Quando o Ricardo e o meu irmão entraram para a Primária, eu estava a entrar para o Segundo Ciclo, uma outra escola mais longe, uma outra vida tão minha. Quando o irmão do Ricardo e a minha irmã mais nova entraram para a Primária, eu estava a entrar para o Terceiro Ciclo, nova mudança de escola, distâncias ainda maiores.

À americana: descompliquei. Mandei-lhe um mail. Pequenino. Pediu o texto. Enviei-lho. Demorou, – estavam em época de exames e diz que a Anatomia é uma rapariga a modos que absoluta e mimada – mas quando chegou, a resposta vinha com anexos, imagens, imagens não :esboços, não, imagens, imagens sim, e lindas!, a preto e branco, está beeeem, mas logo à noite ou amanhã mando-te as imagens a cores, aí ainda vai ser dia, aí ainda vai ser hoje! E eu sorri como se sorri quando se está perto, mesmo estando do outro lado do mundo. A parceria funcionou: ganhámos umas dores de cabeça, um certo desalento no início, do nada uma surpresa, duas surpresas depois uns prémios... e ficámos contentes e prometemos repetir e passámos a ver-nos, passei a vê-lo sem necessidade de mo apontarem em quase todo o lado na Madeira, na missa, no shopping, no autocarro, na rua – o Funchal nas férias das aulas consegue ser um sítio pouco pacato, mas muuuuuito pequeno – passámos aos cumprimentos e às conversas de amigo, queimámos naturalmente muitas etapas de conhecimento, coisas que nunca nos fizeram falta.

O Ricardo hoje é médico, mas antes de o ser, é, sempre foi, filho. Hoje, um filho-médico que perdeu o pai para um ataque súbito sem origem e sem nome e para essa ironia, para esse absurdo, para essa fatalidade, a minha amizade não encontra palavras, aquelas, as certas – se as há... – ando com muitas às voltas, na cabeça, na boca, nos dedos, ligo e desligo o telemóvel, escrevo, hesito no enviar, apago, ligo, desligo, ligo, desligo, vezes sem conta. Não tenho, não há, palavras nem imagens. Não há palavras em preto que borre o agora, em branco que tape o ontem, não há palavras a cores que se façam presença sempre agora e amainem a dor. Não há. Não há para quando a vida muda assim.

sábado, abril 11, 2009

segunda-feira, abril 06, 2009

Vou almoçar com o punhado de amigos que as distâncias e o trabalho não conseguiram engolir desde a Faculdade. Todas as férias de Natal, Páscoa, Verão, o almoço do costume, no sítio do costume, meeting-point à porta da Faculdade, para não se esquecer nunca, à hora do costume também.

Estás mais magra, cansada, tão gira, que contas, então e o, sempre conseguiste, não ias, quando vais, é verdade que, lembram-se do, e o, então esse, e a, já tinha ouvido qualquer coisa, não fazia ideia, nunca me teria ocorrido, não sabias, não, soube agora, sim, disse-me.

Mais ou menos a meio do elenco de novidades, algures entre o lembram-se do, da, que era não sei quê não sei de onde, nunca me lembro – é escusado: com os anos tenho apagado ficheiros e ficheiros de imagens de pessoas da Faculdade com que nunca me dei, por precisar urgentemente de espaço para o que me é realmente importante –, sopro para o lado, às vezes só respiro, mas profundamente, ainda assim só respiro, para não ferir susceptibilidades... A Helena percebe-me. E ri-se quando acaba de desviar o olhar para responder às lembranças e aos reparos e às novidades de toda a gente. A Helena é maravilhosa. Tanto conversa dessas coisas, como das outras, as mais do meu género. O Edu percebe e dá-me um riso pequenino, solidário. Volta ao prato, come. Volto ao meu, como também. (É quando penso no quanto podemos ser amigos, todos, e no entanto, crescermos em direcções separadas, alguns. E não deixarmos de ser amigos por isso. E no entanto.)

Depois de porem as novidades em dia, lembram-se dos calados, o Edu e eu. Interrogatório individual do tipo Gestapo. (É quando penso na utilidade da banalidade, do tempo, da crise, da quadra, das férias, da banca, da corrupção, da bola, da utilidade que é ter-se outros de que falar, quando se quer fugir.)

No fim, satisfeitos os apetites, beijinho, beijinho, até à próxima, vamos, os restantes, tomar café ao centro. Se a Helena não vem, o Edu e eu à frente, à procura de sol e sossego. Atravessamos para o outro lado da rua, o que tem passeios, cruzamos subidas e descidas apertadas, chegamos à esplanada do costume, sentamo-nos, o Edu acende um cigarro. Que contas? (É quando começo a descansar realmente na cadeira e na tarde.) Vi-te no outro dia, li, no jornal, estava lá na Escola e como começo a ler pelo fim, foi logo: eu conheço esta menina!... Pois, mas só porque não mandaste o teu, Edu. Viste o mail sobre esse concurso precisamente, o mail que te mandei há dias? Sabes como é, não tenho tempo... Chama-lhe tempo, Edu, isso, chama-lhe tempo... Se a Helena vem, ela connosco, nós os três à frente, nós dois a atravessarmos as ruas, os passeios, as palavras, nós os dois a subir e a descer muito nas conversas, para fintarmos as preocupações emocionais que damos à Helena. A Helena é uma boa amiga, a minha melhor, mas acha que a felicidade é uma palavra erradamente enunciada no singular. Coisas...

Um dia fui a correr para a Madeira porque, quando não é preciso, o tempo existe e esvai-se assustadoramente de uma ampulheta que o coração faz pender sobre a nossa cabeça. Nesse Verão difícil, cresci muito, – acho que morri, tinha morrido cá antes, muito antes de ir, quase – impossível perder o coração duas vezes! – morria outra vez lá depois, mas sei que morri pois só morrendo se renasce, se pode renascer, crescer assim. Num fim de tarde depois da tempestade de lá liguei-lhe e fomos tomar café, eu e o Edu, mais amigo dos amigos, que meu, mais confidente de uma ou outra amiga, que meu, uma série de coisas que sempre me passaram ao lado, tal como ele, se a minha melhor amiga Helena não o tivesse em tão alta conta e não me tivesse encomendado o tal cafézinho porque caramba! ele está lá na tua terra, bem longe daqui, não lhe deve ser fácil, vá lá. O Edu. Sem saber, ou sabendo – é homem de muito mundo! – deu-me uma prelecção sobre a Lucidez, que foi das maiores lições de vida da minha vida. É o único destes meus amigos de Faculdade que sabe que eu escrevo, por exemplo. E isso, o que isso implicou, isso, é segredo trancado no cofre do peito que a Helena teima em abrir ao sol.

Nada de que se vá falar hoje na esplanada. Chove. E a Helena não vem.

sábado, abril 04, 2009

sexta-feira, abril 03, 2009

É portuguesa.

Tem havido uma série de trocas e baldrocas ultimamente na Biblioteca, coisas que só o Novo Código do Trabalho, ou ainda o antigo piscando o olho ao novo, pode explicar. A verdade é que gente houve que se foi embora, gente houve que chegou de novo, gente houve que transitou de ilustres e doutos serviços nas catacumbas para outros, igualmente ilustres, doutos, mas porventura menos sossegados, cá em cima; gente houve que pigarreou, esperneou, birrou, a ver se assim conseguia arrancar compaixão às cúpulas e travar a mudança; gente houve, alguma dessa mesma, por acaso, que até teve sorte por haver gente, outra, que toda a vida, todo o santo dia, lutou por um lugar ao sol, desassossegado, mas de sol, e de gente, das salas de leitura.

Desengane-se quem agora, depois de soltar um humpf! de desprezo, está a dizer de si para si olha-me esta!, deve trabalhar muito, deve, a saber tudo de toda a gente, lá no sítio para onde vai, imagine-se!, trabalhar. Pois. Até talvez seja assim, mas só um pouco. Ao resto que perfaz o todo, tenho acesso privilegiado, coisa que só muitos pequenos-almoços meus e cafézinhos e copinhos de água do privilegiador explicam.

Uma das novas pessoas é a esposa de um dos funcionários de sempre. O que é bom, repare a Joana, sempre entra mais dinheiro lá em casa... – explicação do privilegiador. E eu acho bonito. E acho bem. Que o privilegiador não pense, não me fale pelo menos, em factores cês de conhecimentos e cunhas, em pedidos, em amigos, em mãos que se lavam umas à outras, nada disso. Bonito. Bem. Depois lembro-me, injusta, má, o funcionário em questão não é português e é dos melhores funcionários da Biblioteca – por isso, das duas uma, escolha aquela com que mais se identifica, é que se gosta tanto dele: aposto no sorriso, sorri tanto sempre, mesmo quando é de manhã e a generalidade do povo está a dormir para os cumprimentos e a boa educação, mesmo quando é o fim do dia e a generalidade do povo, de tanto estar sentada, tem dores de tudo, dores terríveis, daquelas que prendem os até amanhãs na garganta..., mas ele não, ele sorri quando chove, sorri não chove, mas faz frio, sorri quando estamos a atrasá-lo a meio da escada, hesitando para onde voar de maneira a o atrapalhar menos com a pilha enoooorme de livros, e ele sempre a sorrir, não sorri babão ou parvinho, sorri como se não soubesse ser, existir, de outra forma e isso é um regalo para os olhos, para os meus pelos menos; é isso e a simpatia – é muito amável, diz tudo com sotaque e um sorriso, mas daí qualquer palavra, qualquer conversa, qualquer pessoa com aquele sotaque se torna amável, desconfio, e o sorriso pode ser réplica, ainda não averiguei; então, e... ela é parecida com ele?, pergunto ao privilegiador, antecipando um sotaque com sorriso no feminino.

Não., é portuguesa; Bem, isso parece-me explicar muita coisa, quase tudo, e, boa, boa!, evita o choque quando a vir, mais alguma coisa?; é loira.

(É aqui que procuro o mais fundo dos olhos do privilegiador para sorrir. Queria muito dizer-lhe que não trocaria os nossos pequenos-almoços por quase coisa nenhuma neste mundo, que as coisas que ele me diz são absolutamente inqualificáveis, de uma maneira nova, boa, queria muito rir, só me apetece desatar às gargalhadas, são do melhor que já alguma vez ouvi na vida, mas depois penso na maiêutica, no método e na dialéctica e contenho-me.)

É portuguesa, baixinha e de um gordinho mais americano que português, ainda assim esqueço-me às vezes de que restam ainda gerações, a dela e a do privilegiador, por exemplo, em que ‘baixinha e gordinha’ são sinónimos de ‘portuguesa’, ai a dialéctica! do privilegiador..., imbatível!, é loira, artificial, tem olhos verdes, naturais, é mais velha que o marido uma, senão duas, mãos cheias de anos e, sem se dar conta – parece-me, dirige-se aos colegas, fala, alto, assustadoramente alto, nuns décibeis que saem tão tão tãaao daquela tão grande caixa toráxica, que me pergunto, sinceramente, se não terá algum problema de audição sério. Quando se vai embora da sala onde estou e nos observamos ainda que de relance, reconheço-lhe no olhar a mesma bonomia alegre, a que tal que encontro nos bons-dias sorridentes do marido todas as manhãs. Acto reflexo, relembro os EUA e uma questão joanina antiga – penso em critérios, em padrões, na beleza para o português, penso na eligibilidade daquela beleza para um português, pergunto-me se haveria um que fosse, um, da mesma geração, simpatia, estatura e estrutura do marido dela que, português, se . enfim... Deixo a reflexão a meio, as hipóteses a que fecho os olhos e a resposta que procuro, tudo, para um outro dia.

Joana!, Sim, Esqueci-me de lhe dizer uma coisa esta manhã, Sim?, É a que fala alto, a que fala muuiiiiiiiiiiito alto.

quinta-feira, abril 02, 2009

2 de Abril - Dia Internacional do Livro Infantil 2009


Para assinalar este dia, o IBBY (International Board on Books for Young People) divulga anualmente uma mensagem de incentivo à leitura dirigida às crianças de todo o mundo. Este ano, coube ao ilustrador egipcío Hani D. El-Masri a elaboração da mensagem.

Eu sou o mundo

Eu sou o mundo e o mundo sou eu,
porque, com o meu livro,
posso ser tudo o que quiser.
Palavras e imagens, verso e prosa
levam-me a lugares a um tempo próximos e distantes.

Na terra dos sultões e do ouro,
há mil histórias a descobrir.
Tapetes voadores, lâmpadas mágicas,
génios, vampiros e Sindbades
contam os seus segredos a Xerazade.

Com cada palavra de cada página
viajo pelo tempo e pelo espaço
e, nas asas da fantasia,
o meu espírito atravessa terra e mar.

Quanto mais leio mais compreendo
que com o meu livro
estarei sempre
na melhor das companhias.

Hani D. El-Masri *
Tradução: José António Gomes

Conselho: Aproveitar a criança que se é, foi, será sempre, ou não se será nunca, aproveitar as que nos enchem os dias, aquelas nossas ou as emprestadas, aproveitar o dia, ou a semana, ou a Páscoa, para adquirir os dois primeiros livros para crianças deste senhor, aqui.

quarta-feira, abril 01, 2009

A menina é muito nova

Comprei um coração, há tempos, no Chiado.

É enorme. A minha mãe diz que me enganei, que daquele tamanho lhe parece ser um coração para por à cabeceira de um berço. Enoooorme. As minhas irmãs hesitam entre ‘pisa-papéis com argola, para desconversar’, e ‘penduricalho para chaveiro’. Enoooorme. Eu acho, continuo a achar, que é um pendente, pingente em linguagem técnica. Foi por ser isso, e estranhamente grande, confesso, que o comprei.

Comprei. Agora que o repito na escrita, o verbo ficou estranho, como se na verdade 'comprar' o vestisse mal, como se apertasse no peito, pregas esticadas, costuras quase abertas, sobre o coração, mas caísse engelhado, feio, soa mal, comprar...

Mas foi isso, foi assim. Esteve à minha espera um ano, talvez mais, já não sei, o tal coração. Nem mudou de sítio na montra. É bom, o ficar quieto. É mais fácil, quando há um (re)encontro certo para acontecer.

Incrédula, olhei-o uma última vez antes de entrar, depois foi não pensar, entrar e pedir ao senhor para ver, de perto, na mão – quando era miúda passava o tempo a importunar toda a gente com coisas que queria ter na mão: o peixinho dourado do aquário, oh filha, não pode ser, se sai dali, morre; morre? é tão bonito, eu não o aperto; os peixes do lago, oh filha, não pode ser, morrem, já disse; mas...; as flores da frente da casa, oh filha, não pode ser, fora do vaso, mirram, secam; mirram? eu ponho-as à sombra...; as flores do jardim, oh filha, não pode ser, já disse, secam!; mas...; a água da fonte, queres? vá, agora bebe; mas... eu não quero beber, só quero...; as laranjas das laranjeiras à esquerda do canapé, oh filha, não pode ser, agora não pode ser, ainda não é tempo; agora é que cheiram, tão bem!..., quando for tempo, já não cheiram... – perguntei o preço, barato para aquele peso em prata, vou levá-lo; mas, menina, não quer ver mais pequenos, olhe, temos ali uns; não é preciso, esse parece-me bem – sorrio; mas, menina, este, este ninguém o quer, sabe, já o temos ali há, é um bocadinho..., olhe, é demasiado grande, menina; não sei de onde saiu, mas apanhou-me mais de surpresa a mim do que ao senhor, sei, não há coração demasiado grande – voltei a sorrir, sorrio sempre para pontuar as coisas que digo sem saber bem de onde vêm –, parou toda a diligência, olhou-me muito sério, sorriu e disse: a menina é muito nova ... embrulho?

Há dias fui a Lisboa e passei, como quase sempre, pelo Chiado. Lembra-me sempre, muito, muitos lugares onde já estive, pessoas que conheci, caminhos por onde não fui. Na descida para a Fnac, quase me esquecia, até tive de atravessar a rua, não resisti, tinha que espreitar a montra conhecida. Um ano depois.

Corações demasiado grandes em todo o lado. Seis. Seis, agora, seis corações enooormes a dominar a montra: quatro nos quatro pontos cardeais e dois ao centro. Seis. Iguais ao meu. Eu contente, eu a imaginar corações enoooormes, do tipo demasiado grande, a dominarem o mundo, eu a olhar de repente lá para dentro e a deparar-me com a observação atenta do senhor, o tal da compreensão simpática, o mesmo que agora me despertava do contentamento feel like running and dancing for joy de ver uma montra cheia deles, com a menina é muito nova no sorriso. Ainda. E uma vez mais.