terça-feira, abril 14, 2009

Não há palavras a cores

Um dia fui para os EUA e a minha vida mudou.

Um dia, um desses muitos que passei em Houston, um dia, num dos primeiros meses de estadia, que já seriam os quartos ou quintos meses de estadia, mas primeiros on my own, um dia, apercebi-me de que o espaço daquele apartamento, tão pequeno, crescia todos os dias, muito, tanto!, sempre. Crescia pela distância, crescia pelas ausências, crescia pelo silêncio, crescia pelo cansaço, crescia pelo trabalho, crescia pelas saudades. Conseguia crescer mais do que o meu desalento a olhar o tecto branco desde o sofá ao final do dia todos os dias.

Um dia, não sei como, não sei porquê, pus-me a escrever, esqueci-me do tecto, do espaço, das horas... no sofá. Pus-me a escrever, o pensamento lá longe, na minha língua, uma história que surgiu não sei de onde, com enredo e personagens para miúdos e uma moral para todos, especialmente os mais graúdos, uma espécie de conto, a modos que infantil, uma coisa absolutamente diferente de tudo o que já tinha feito, fiz, especial por ser a primeira escrita, extraordinária por uma série de razões que a modéstia cala já e que se ligam ao Ricardo.

Precisei, precisava, de um ilustrador, não conhecia nenhum, tarefa difícil quando não se conhece muita gente que, tarefa difícil quando os nossos amigos são professores, ou músicos, ou geógrafos, ou desportistas, ou médicos, ou filósofos, tarefa difícil quando se está onde se estava, pelas razões que se estava, tarefa difícil! Um pouco a medo, muito às cegas, um pouco em desespero de causa, muito em desespero de causa, escrevi no campo Para: o e-mail que a Té me tinha enviado, tenta lá, ele faz umas caricaturas fenomenais dos nossos profes cá da Faculdade, sabes quem é o meu afilhado, é aquele amigo da Primária...

O amigo da Primária. O Ricardo tinha sido, oito anos antes, o melhor amigo do meu irmão na Primária. O Ricardo era, nesse ano, tinha sido, dois anos antes – já não lembro... – o caloiro-afilhado da minha irmã na Faculdade. O Ricardo era o irmão daquele que, não sendo o melhor amigo, era o colega de carteira da minha irmã mais nova na Primária, também.

Não conhecia o Ricardo. Nunca o tinha visto na vida. Nunca o tinha visto. Mesmo. Isto apesar de toda a gente lá de casa achar que não, que ele me tinha sido apontado na Missa do Galo não sei de que ano e na Sexta-Feira Santa de um outro e numa Missa de um Domingo qualquer do Tempo Comum de um Verão ainda mais comum, de tão banais e curtos que sempre foram os meus verões desde que vim para a Faculdade. Conhecia a mãe dele, conhecia a tia dele, amigas da minha mãe, não o conhecia a ele, nem ao irmão, nem aos amigos e colegas de escola dos meus irmãos mais novos por eles distarem de mim precisamente quatro e seis anos: Quando o Ricardo e o meu irmão entraram para a Primária, eu estava a entrar para o Segundo Ciclo, uma outra escola mais longe, uma outra vida tão minha. Quando o irmão do Ricardo e a minha irmã mais nova entraram para a Primária, eu estava a entrar para o Terceiro Ciclo, nova mudança de escola, distâncias ainda maiores.

À americana: descompliquei. Mandei-lhe um mail. Pequenino. Pediu o texto. Enviei-lho. Demorou, – estavam em época de exames e diz que a Anatomia é uma rapariga a modos que absoluta e mimada – mas quando chegou, a resposta vinha com anexos, imagens, imagens não :esboços, não, imagens, imagens sim, e lindas!, a preto e branco, está beeeem, mas logo à noite ou amanhã mando-te as imagens a cores, aí ainda vai ser dia, aí ainda vai ser hoje! E eu sorri como se sorri quando se está perto, mesmo estando do outro lado do mundo. A parceria funcionou: ganhámos umas dores de cabeça, um certo desalento no início, do nada uma surpresa, duas surpresas depois uns prémios... e ficámos contentes e prometemos repetir e passámos a ver-nos, passei a vê-lo sem necessidade de mo apontarem em quase todo o lado na Madeira, na missa, no shopping, no autocarro, na rua – o Funchal nas férias das aulas consegue ser um sítio pouco pacato, mas muuuuuito pequeno – passámos aos cumprimentos e às conversas de amigo, queimámos naturalmente muitas etapas de conhecimento, coisas que nunca nos fizeram falta.

O Ricardo hoje é médico, mas antes de o ser, é, sempre foi, filho. Hoje, um filho-médico que perdeu o pai para um ataque súbito sem origem e sem nome e para essa ironia, para esse absurdo, para essa fatalidade, a minha amizade não encontra palavras, aquelas, as certas – se as há... – ando com muitas às voltas, na cabeça, na boca, nos dedos, ligo e desligo o telemóvel, escrevo, hesito no enviar, apago, ligo, desligo, ligo, desligo, vezes sem conta. Não tenho, não há, palavras nem imagens. Não há palavras em preto que borre o agora, em branco que tape o ontem, não há palavras a cores que se façam presença sempre agora e amainem a dor. Não há. Não há para quando a vida muda assim.

12 comentários:

Oásis disse...

:(((
Nem palavras, nem cores. Mas acho que devemos dizer algo. Não sei o quê.
Talvez: "Calculo que não seja fácil e tive de te ligar para dar um abraço de força", talvez, mas nunca me ocorre nada para dizer porque as palavras parecem-me sempre a mais nestas situações.

V. disse...

só pelo nome, já gosto dele. é mesmo nome de irmão-perfeito: ricardo. tenho a certeza que também soube ser um filho-perfeito. porque a força de um nome assim nos enche o peito de alegria e coisas boas. sim - acredito mesmo nisto (!!) - mas quando a vida muda assim, tens razão, não há palavras.

e este texto agora faz-me todo o sentido: um irmão meu - que antes de ser amigo foi vizinho e depois de ser amigo ficou irmão - perdeu o pai muito recentemente (a semana passada). ainda não soube dizer-lhe nada que tivesse valor, essas tais palavras certas de que falas... só soube abraçá-lo, chorar com ele e rir das histórias que nos juntaram desde a infância. e depois ficamos em silêncio. esta semana ele teve de voltar a um país de raparigas loiras e está longe, muito longe, que aqui sempre nos habituámos a tê-lo perto de nós. e está provavelmente num apartamento que também cresce pelas ausências e pelo silêncio e pela saudade. essas coisas todas...

e eu gostava de escrever-lhe também, mas... a minha amizade não encontra palavras...

(...)

um beijinho*

(desculpa-me a divagação e o comentário tão tão longo. é que este texto tocou-me mesmo. e um abraço também para o teu amigo. não o conheço, mas aqui fica.)

Joana disse...

Marisa,

Já disse (o tal algo). :))))))))

Vanessa,

Os teus comentários espelham-te tão bem... são maravilhosos! :)))))))

Jinhos a ambas. E obrigada.

miradouro das cruzes disse...

Amiga Joana,
Passamos todos por esses momentos dolorosos! Mas por vezes as poucas palavras dizem tudo. Por vezes falamos demasiado e nada dizemos! Mas os pequenos gestos, marcam-nos para sempre...

Joana disse...

Loo Rock,

Pois é. Importam os gestos, mais que as palavras. Sempre. Em tudo. (E ainda bem...)

Jinhos, Carlos.

intruso disse...

(por vezes não há mesmo palavras ou imagens, nao há.)


[sensibilidade à flor da escrita]


um beijo

Joana disse...

Intruso,

Pois não, não há.
Mas vindo de ti... que és Ilustrador à séria (com maiúscula e tudo, vês?)... outra coisa não seria de esperar ;) : sensibilidade e empatia, como sempre, João.

Outro*.

Maria Rita disse...

Estava eu toda envolvida na história do Ricardo, da tua amizade com o Ricardo, dos teus projectos com o Ricardo, quando chego ao último parágrafo e percebo que afinal este é um texto triste. E o que acho que é importante, mais do que as palavras ou os gestos, é tu saberes que ele sabe que estás lá, que sentes um bocadinho da dor dele sem no entanto te alargares muito em mensagens de frases bonitas ou de lágrimas que inundam tudo.

E eu sei que Ele deve estar a sentir o que lhe queres dizer, mesmo que apenas lhe tenhas enviado um abraço apertadinho e aconchegante.

Um beijinho Joana*

100 remos disse...

Efectivamente, não há palavras. Mas quem perde alguém, sabe que não as há.Elas nem são esperadas. Talvez mais tarde.
Por agora, basta um abraço.
Beijinhos.

Joana disse...

Frida,

É um texto um bocadinho triste, mas só um bocadinho, só pontualmente, como a vida de resto. :D E é-o principalmente por não poder estar na Madeira agora e assim sendo os nossos abraços serem mais etéreos e eu correr o risco de ele não os sentir tão apertados como eu desejaria... Enfim nada que o nosso chá da próxima semana não aconchegue! ;)

100remos,

Por agora. :)))))))))))))

Jinhos, lindas!

miradouro das cruzes disse...

Amiga JJ,
Lembrei-me agora, de lhe pedir que publicasse o seu conto acompanhados das respectivas ilustrações. Será possível?
Bj,
Carlos

ana salomé disse...

o teu olhar traduz todas as palavras impossíveis. tenho a certeza de que quando se virem, ajudará a curar, um bocadinho. essa falta é que nunca pode ser suprida.

a tua sensibilidade comove-me sempre, menina...*

beijinho grande