sexta-feira, abril 03, 2009

É portuguesa.

Tem havido uma série de trocas e baldrocas ultimamente na Biblioteca, coisas que só o Novo Código do Trabalho, ou ainda o antigo piscando o olho ao novo, pode explicar. A verdade é que gente houve que se foi embora, gente houve que chegou de novo, gente houve que transitou de ilustres e doutos serviços nas catacumbas para outros, igualmente ilustres, doutos, mas porventura menos sossegados, cá em cima; gente houve que pigarreou, esperneou, birrou, a ver se assim conseguia arrancar compaixão às cúpulas e travar a mudança; gente houve, alguma dessa mesma, por acaso, que até teve sorte por haver gente, outra, que toda a vida, todo o santo dia, lutou por um lugar ao sol, desassossegado, mas de sol, e de gente, das salas de leitura.

Desengane-se quem agora, depois de soltar um humpf! de desprezo, está a dizer de si para si olha-me esta!, deve trabalhar muito, deve, a saber tudo de toda a gente, lá no sítio para onde vai, imagine-se!, trabalhar. Pois. Até talvez seja assim, mas só um pouco. Ao resto que perfaz o todo, tenho acesso privilegiado, coisa que só muitos pequenos-almoços meus e cafézinhos e copinhos de água do privilegiador explicam.

Uma das novas pessoas é a esposa de um dos funcionários de sempre. O que é bom, repare a Joana, sempre entra mais dinheiro lá em casa... – explicação do privilegiador. E eu acho bonito. E acho bem. Que o privilegiador não pense, não me fale pelo menos, em factores cês de conhecimentos e cunhas, em pedidos, em amigos, em mãos que se lavam umas à outras, nada disso. Bonito. Bem. Depois lembro-me, injusta, má, o funcionário em questão não é português e é dos melhores funcionários da Biblioteca – por isso, das duas uma, escolha aquela com que mais se identifica, é que se gosta tanto dele: aposto no sorriso, sorri tanto sempre, mesmo quando é de manhã e a generalidade do povo está a dormir para os cumprimentos e a boa educação, mesmo quando é o fim do dia e a generalidade do povo, de tanto estar sentada, tem dores de tudo, dores terríveis, daquelas que prendem os até amanhãs na garganta..., mas ele não, ele sorri quando chove, sorri não chove, mas faz frio, sorri quando estamos a atrasá-lo a meio da escada, hesitando para onde voar de maneira a o atrapalhar menos com a pilha enoooorme de livros, e ele sempre a sorrir, não sorri babão ou parvinho, sorri como se não soubesse ser, existir, de outra forma e isso é um regalo para os olhos, para os meus pelos menos; é isso e a simpatia – é muito amável, diz tudo com sotaque e um sorriso, mas daí qualquer palavra, qualquer conversa, qualquer pessoa com aquele sotaque se torna amável, desconfio, e o sorriso pode ser réplica, ainda não averiguei; então, e... ela é parecida com ele?, pergunto ao privilegiador, antecipando um sotaque com sorriso no feminino.

Não., é portuguesa; Bem, isso parece-me explicar muita coisa, quase tudo, e, boa, boa!, evita o choque quando a vir, mais alguma coisa?; é loira.

(É aqui que procuro o mais fundo dos olhos do privilegiador para sorrir. Queria muito dizer-lhe que não trocaria os nossos pequenos-almoços por quase coisa nenhuma neste mundo, que as coisas que ele me diz são absolutamente inqualificáveis, de uma maneira nova, boa, queria muito rir, só me apetece desatar às gargalhadas, são do melhor que já alguma vez ouvi na vida, mas depois penso na maiêutica, no método e na dialéctica e contenho-me.)

É portuguesa, baixinha e de um gordinho mais americano que português, ainda assim esqueço-me às vezes de que restam ainda gerações, a dela e a do privilegiador, por exemplo, em que ‘baixinha e gordinha’ são sinónimos de ‘portuguesa’, ai a dialéctica! do privilegiador..., imbatível!, é loira, artificial, tem olhos verdes, naturais, é mais velha que o marido uma, senão duas, mãos cheias de anos e, sem se dar conta – parece-me, dirige-se aos colegas, fala, alto, assustadoramente alto, nuns décibeis que saem tão tão tãaao daquela tão grande caixa toráxica, que me pergunto, sinceramente, se não terá algum problema de audição sério. Quando se vai embora da sala onde estou e nos observamos ainda que de relance, reconheço-lhe no olhar a mesma bonomia alegre, a que tal que encontro nos bons-dias sorridentes do marido todas as manhãs. Acto reflexo, relembro os EUA e uma questão joanina antiga – penso em critérios, em padrões, na beleza para o português, penso na eligibilidade daquela beleza para um português, pergunto-me se haveria um que fosse, um, da mesma geração, simpatia, estatura e estrutura do marido dela que, português, se . enfim... Deixo a reflexão a meio, as hipóteses a que fecho os olhos e a resposta que procuro, tudo, para um outro dia.

Joana!, Sim, Esqueci-me de lhe dizer uma coisa esta manhã, Sim?, É a que fala alto, a que fala muuiiiiiiiiiiito alto.

2 comentários:

miradouro das cruzes disse...

Amiga Joana,
Desculpe mas quando leio os seus artigos vem à minha mente a velha canção:

Gimme hope, Jo'anna
Hope, Jo'anna
Gimme hope, Jo'anna
'Fore the morning come
Gimme hope, Jo'anna
Hope, Jo'anna
Hope before the morning come!

Leio ávidamente o olhar do seu mundo, quiçá procure referências, na sua escrita tento ler os pensamentos de quem escreve, colocar-me do outro lado da barricada. Olhar e não ver nada!Olhar e ver tudo... Teria medo de entrar na sua biblioteca, e ser olhado e não ver nada, percorrer os livros das estantes e sonhar acordado.
(Obrigada pelos seus comentários)
Boa Páscoa para si e familiares!

Joana disse...

Loo Rock,

Nada a agradecer, Carlos.
Boa Páscoa! (Espero que, ao contrário de mim, na nossa ilha, em família...)

Jinhos.