quarta-feira, abril 01, 2009

A menina é muito nova

Comprei um coração, há tempos, no Chiado.

É enorme. A minha mãe diz que me enganei, que daquele tamanho lhe parece ser um coração para por à cabeceira de um berço. Enoooorme. As minhas irmãs hesitam entre ‘pisa-papéis com argola, para desconversar’, e ‘penduricalho para chaveiro’. Enoooorme. Eu acho, continuo a achar, que é um pendente, pingente em linguagem técnica. Foi por ser isso, e estranhamente grande, confesso, que o comprei.

Comprei. Agora que o repito na escrita, o verbo ficou estranho, como se na verdade 'comprar' o vestisse mal, como se apertasse no peito, pregas esticadas, costuras quase abertas, sobre o coração, mas caísse engelhado, feio, soa mal, comprar...

Mas foi isso, foi assim. Esteve à minha espera um ano, talvez mais, já não sei, o tal coração. Nem mudou de sítio na montra. É bom, o ficar quieto. É mais fácil, quando há um (re)encontro certo para acontecer.

Incrédula, olhei-o uma última vez antes de entrar, depois foi não pensar, entrar e pedir ao senhor para ver, de perto, na mão – quando era miúda passava o tempo a importunar toda a gente com coisas que queria ter na mão: o peixinho dourado do aquário, oh filha, não pode ser, se sai dali, morre; morre? é tão bonito, eu não o aperto; os peixes do lago, oh filha, não pode ser, morrem, já disse; mas...; as flores da frente da casa, oh filha, não pode ser, fora do vaso, mirram, secam; mirram? eu ponho-as à sombra...; as flores do jardim, oh filha, não pode ser, já disse, secam!; mas...; a água da fonte, queres? vá, agora bebe; mas... eu não quero beber, só quero...; as laranjas das laranjeiras à esquerda do canapé, oh filha, não pode ser, agora não pode ser, ainda não é tempo; agora é que cheiram, tão bem!..., quando for tempo, já não cheiram... – perguntei o preço, barato para aquele peso em prata, vou levá-lo; mas, menina, não quer ver mais pequenos, olhe, temos ali uns; não é preciso, esse parece-me bem – sorrio; mas, menina, este, este ninguém o quer, sabe, já o temos ali há, é um bocadinho..., olhe, é demasiado grande, menina; não sei de onde saiu, mas apanhou-me mais de surpresa a mim do que ao senhor, sei, não há coração demasiado grande – voltei a sorrir, sorrio sempre para pontuar as coisas que digo sem saber bem de onde vêm –, parou toda a diligência, olhou-me muito sério, sorriu e disse: a menina é muito nova ... embrulho?

Há dias fui a Lisboa e passei, como quase sempre, pelo Chiado. Lembra-me sempre, muito, muitos lugares onde já estive, pessoas que conheci, caminhos por onde não fui. Na descida para a Fnac, quase me esquecia, até tive de atravessar a rua, não resisti, tinha que espreitar a montra conhecida. Um ano depois.

Corações demasiado grandes em todo o lado. Seis. Seis, agora, seis corações enooormes a dominar a montra: quatro nos quatro pontos cardeais e dois ao centro. Seis. Iguais ao meu. Eu contente, eu a imaginar corações enoooormes, do tipo demasiado grande, a dominarem o mundo, eu a olhar de repente lá para dentro e a deparar-me com a observação atenta do senhor, o tal da compreensão simpática, o mesmo que agora me despertava do contentamento feel like running and dancing for joy de ver uma montra cheia deles, com a menina é muito nova no sorriso. Ainda. E uma vez mais.

5 comentários:

V. disse...

ui... corações demasiado grandes espalhados nos pontos cardeais! menina, o que eu me ri com isso!! :D

beijinho*

miradouro das cruzes disse...

O coração não será demasiado grande... possivelmente teremos outra noção de tamanho! Queremos um amor igual ao tamanho do coração o que na grande maioria das vezes ficamos desiludidos. O nosso coração é sempre XXL e as desilusões idem!

Maria Rita disse...

Atrevo-me a dizer que o que acabei de ler foi do mais bonito que li teu. :))) Está tão profundo, tão simples, tão grande (-do tamanho dos corações). E aquela visão do mundo cheio de corações gigantes fez-me sonhar; sonhar muito.

Obrigada por estes momentos deliciosos! ;))
Um beijinho*

tchi disse...

No coração do Chiado...

Joana disse...

Vanessa,

Pois, tem piada - realmente... as coisas que me passam pela cabeça! ;)

Loo Rock,

Queremos é que *saibam ver* o nosso coração, não medir, não pesar, nem sequer sentir, saber ver, somente... :))

Frida,

És tão bonita, miúda! :)))))))) TU é que me fazes sonhar - e ter saudades do futuro - a cada comentário.

Tchi,

Siiiiiiiiiiiiim! :))))))))))))))))
Há lá coisa melhor? :P

Jinhos a todos.

Agora que releio o post, lembrei-me disto:

A rapariga de Providence

Um nome arde tanto
de repente todos os caminhos parecem de regresso
a vida por si mesma não se pode escutar demasiado
a vida é uma questão de tempo
um sopro ainda mais frágil

a rapariga desce à pequena praça,
compra uma flor para ter na mão
uma forma intemporal de conservar
a perfeição ou a incerteza

(in "A noite abre meus olhos/poesia reunida", Assírio & Alvim)

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