quarta-feira, maio 06, 2009

As pessoas fazem os lugares


O soninho do mais justo 'lavadeiro de pratos' do universo.

Costumo ir para a Biblioteca de manhã, quase sempre passo lá o dia, muitos dias – quase todos..., mas é de manhã, cedo, que me dirijo para o trabalho porque o dia começa, tal como a minha vontade de todos os dias fazer o meu com um sorriso maior, é quando sou mais produtiva. Os americanos dizem que sou uma morning bird.

A Ana Catarina, coisa de génios e outros seres extraordinários, seria uma night owl ali para os lados do tio Sam. Encontramo-nos sempre quando o meu rendimento começa a descer vertiginosamente, seja por me ter subido a digestão, às vezes o sono, à cabeça, seja porque na parte da tarde a Biblioteca é sempre mais ruidosa, do movimento, dos adolescentes, dos exames que estão aí à porta, do sol que faz lá fora sempre, dos amigos que riem demasiado e alto, mais, muito mais, que da parte da manhã. Encontramo-nos sempre porque ela vem lá acima, ao meu cantinho de mesa inteira encostada a uma quarta parte da janela mais solarenga, dar-me um beijinho. Não imaginas o que é vir cá acima e ver este teu cantinho sem ti... Oh, então Ana... E quando está cá outra pessoa?!, tãaaaaaaao estranho!... Só sabe ser assim: maravilhosa, e desarmante, absolutamente desarmante, a minha querida Ana Catarina.


No entanto, gostava de pensar que aos olhos dos outros, alguns outros, pertenço assim, desta forma simples mas inequívoca, a todos os lugares onde vivi. Gostava que as pessoas com quem o meu caminho se cruzou em França, nos EUA, na Bélgica, me sentissem a falta como a Ana Catarina nos dias em que opto por ir trabalhar para o gabinete na Faculdade ou naqueles em que pura e simplesmente me deixo ficar por casa, e trabalho nesta secretária tão grande, a um braço de distância de todas as fotografias, de todos os amigos, de todos os países, do tempo em mim.


Um dia escrevi Braga é uma velhinha que pede esmola debaixo de um arco ao fim da tarde. Encontro-a muitas vezes, sei exactamente a que horas, sei qual o arco, sei que se passar por lá, ao fim do dia, ela vai estar, está sempre, mão pronta, discurso estendido, ali. Às vezes evito ir por ali, às vezes, quando não é perto demais, tarde demais. Ela, eu, nós... fazemos a cidade, as pessoas fazem os lugares, para o bem e para o mal, as pessoas fazem os lugares muito mais do que o contrário.

Paris sou eu e a Claire às voltas com os nocturnos de Chopin no piano do foyer. Paris sou eu e o espanto que não consegui disfarçar quando descobri que a Yseult só comia feijão verde ao almoço e ao jantar. Paris sou eu e as aulas de Langue d’Oc regadas a chá em frente à Sorbonne. Paris sou eu a ler a biografia do Rousseau no autocarro.

Leuven sou eu e a Fatumeh a falarmos de religião com cuidado para não estragar as papoilas e as espigas de trigo que apanhámos antes do autocarro. Leuven sou eu e o Bert, demasiada festa, e os meus bocejos e as minhas olheiras, o meu cansaço e a chacota dele, na primeira aula da manhã. Leuven sou eu a jogar futebol com quatro anos de gente, o filho do Bert, antes de lhe ouvir a mais completa prelecção sobre a arte de lavar as mãos.

Houston sou eu quando chego ao gabinete e, primeira coisa da manhã:os bons-dias num bilhetinho em cima da secretária. Houston é o colo do Dan e a maneira como se ajoelha para rezar aos Domingos na missa. Houston é a quarta-feira à noite, student discount night, no Mission Burritos, o melhor jantar da semana; Houston é o Pascal, que nos lavava sempre a loiça após os grandes almoços de Domingo, Houston é o Pascal, podre de bêbado na minha festa de despedida, a explicar: Jo, you have to draw the line farther, I was like that too, but you know, sometimes in life you just have to. Houston é a sexta–feira em que os gents da Física só vêm à Friday Movie night do nosso Departamento se as ladies, nós, formos à Pi(e)-Day party deles e... aquela flor no meu cabelo.


Acabo de ouvir péssimas notícias acerca da progressão da gripe aviária no Texas. Há algo dentro que reage quando estas coisas acontecem aos lugares que foram nossos.
Houston is Jo when she comes in, just-to-say-bye-to-you-guys, carrying this huge plate of rice pudding she calls ‘sweet rice’ with the same old smile and starts hugging everybody, so what happens if I don't let you go, darn!, Jo, would you mind?, we’re trying not to cry here: stop smiling! Há algo nosso, muito nosso, muito vivo, de sangue, veias, coração a bater, nos lugares que a vida permitiu que fossem nossos, no matter how you draw the line.

14 comentários:

Anónimo disse...

E porque é que Lisboa não aparece aí,eu como a velhinha de Braga, sempre àquela hora em que me diz que vai chegar e já sabe que me vem encontrar ? Ou há mais Lisboas sem mim?...
Presunção hein ?

Joana disse...

Querida Maria de Lourdes,

Tem razão, Lisboa devia aparecer por aqui. :))))))))))))))))

E não há Lisboa sem si.

(Até porque a procuro tanto quanto fujo da velhinha de Braga, coisas nossas...)


Muitos beijinhos!

V. disse...

tens toda a razão.

sabes, agora imaginei-te de gps a percorrer um mapa enorme mas depois lembrei-me que afinal de contas até nem é preciso orientação quando nos rencontramos com os nossos lugares. :)

beijinho*

Joana disse...

Vanessa,

Exactly. Não precisa de gps quem tem um coração, ou amigos-do-peito :P ... vai dar quase ao mesmo... ;) :)))))))))))))))))


Jinhos.

Oásis disse...

Já disseste tudo... Agora só tenho de perguntar se aquele aparelho branco, que aparece na foto, é uma máquina de costura? :)

Jinhos.

Ouriço-Cacheiro disse...

Antes queria agradecer-te a paciência de me leres... sempre. Obrigada.
Retribuo sempre embora por vezes sem comentários (por serem. talvez, demasiado longos ou divagatórios ou por se traduzirem num sorriso sincero).
Ps: Gostei do "lavadadeiro" de pratos, tem graça no seu sono.

Joana disse...

Marisa,

Eu e esta minha mania de dizer, escrever, tudo... :P

Resposta à pergunta: É pois! (Mas não é minha, nem a máquina, nem a bicla, nem a desarrumação, nem a casa - tudo da Linda, mas um conforto de casa... :)))))))))))))

Ouriço,

Bem, assim sendo, também tenho de te agradecer as gargalhadas sinceras e consequente o aumento da esperança de vida e a figura delineada, oh para a vénia dos meus abdominais ante a tua inteligência, humor e boa escrita... ;)

Jinhos a ambas.

Joana disse...

P.S. Sintonia relativamente ao 'lavadeiro', por que será, aiiiii!... tem graça em tudo, até no dormir... :P

kelly disse...

:)
abraço e semana de sol!

V. disse...

lol! por acaso está uma foto muito bem apanhada, está! :p *

Maria Rita disse...

Aii, eu gostei tanto, tanto! :))
Sabes que eu te invejo um bocadinho (-sempre no bom sentido, claro) por teres vivido em tantos sitios, leia-se países ou sitios geograficamente distintos, e tenhas tanto para contar. Acho que adorei o texto mesmo por isso. Por me ver daqui a uns tempos (-ou não :P) a falar dos meus lugares pelo Mundo, dos lugares onde alguém é capaz de se lembrar de mim por isto ou por aquilo. E é tão bom de imaginar só de ler ;)

Um beijinho Joana*

Joana disse...

Frida,

Um comentário destes... só tu! :P Tenho como certo que mais ano menos anos te lerei em termos muito melhores do que os que ando para aqui a escrevinhar. Há lugares no Mundo que precisam de ti, este - aqui - é muito melhor desde as tuas visitas. :))))

Beijinhos.

intruso disse...

:)

Joana disse...

Intruso,

Para que saibas: I totally know what that smile means... e :) de volta!

Jinhos.