domingo, outubro 24, 2010

A oração do humilde atravessa as nuvens*

Prezo o silêncio mais do que quase tudo actualmente. Prezo-o como um espaço de que preciso como água, como abrigo, com ardor, para ganhar forças e prosseguir. Vários compromissos e outras tantas razões me têm, nos últimos tempos, afastado da minha rotina dominical. Acabo por ir de encontro a ela a meio da tarde, mais longe de casa, ou no final do dia, perto de casa. E nunca é igual. Ao meio-dia de Domingo é que o silêncio é silêncio.

Costumava ser: hoje voltei à rotina que andava há que tempos a tentar retomar e o silêncio empequeneceu-se. Á minha frente, o senhor do costume. O senhor pesado a chegar, como sempre, um bocadinho mais tarde, pé ante pé, um passo a seguir ao outro, cada passo com esforço, muito esforço e diligência no manuseamento das canadianas para a firmeza dos passos. É uma imagem dolorosa, confesso, mas a que me habituei. Pergunto-me sempre se não há mascarada na habitualidade de o ver chegar assim, semana após semana, um obscurecimento do olhar, uma quase-indiferença, uma crueldade que me retine dentro como falta de humanidade -, eu que luto diariamente pela pureza do olhar...

O senhor chegou, sentou-se no banco à minha frente quase vazio, acomodou as canadianas, seguiu cada rito levantando-se, como sempre, quando pôde. A meio do banco, uma senhora muito voluntariosa correu para ele a cada vez que o senhor se levantava. Adeus silêncio, adeus concentração. Quase no final, genuflectindo, ouço-a baixinho: "Saiba que o importante é ter um coração desperto, que isto começa a ser demasiado sacrifício para si." Adeus silêncio, adeus conforto da Palavra. Desde esse momento até ao final, o senhor nunca mais se levantou. Desde esse momento até ao final, nunca mais sosseguei. Antes de se ir embora, o senhor olhou, pequenino, a companheira de banco empenhada em cumprir com mestria o responsório, os cânticos na parte do coro, o sobe e desce do rito. E eu senti-lhe a humilhação.

O silêncio é um espaço que se busca. Interiormente. Exteriormente. Às vezes ajudar o outro não é içá-lo a cada levantar, não é ampará-lo a cada sentar; é dar-lhe o espaço que ele procura. Compreender o outro, que é etimologicamente inclui-lo, é acolhê-lo, aceitá-lo na sua totalidade de homem. Prezar o silêncio, preservá-lo, acaba por ser, às vezes, uma questão de dignidade - de todas, a forma mais básica de humanidade.

* Livro de Ben-Sirá

2 comentários:

Ouriço-Cacheiro disse...

Silêncio, o quanto te prezo. Chiu.........

Joana disse...

Ouriço,


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Jinhos.