terça-feira, outubro 12, 2010

Trabalhar cansa

Descia a rua, todas as ruas até chegar à Biblioteca, a contar as crianças pelo caminho – os filhos dos outros pelas mãos deles e dos pais deles, dos avós, como as migalhas de um conto longínquo de que se socorriam duas crianças para não perderem o seu norte, no meu caso o sul da manhã. Acho que há uma altura na nossa vida em que invejamos os filhos dos outros, como há uma altura em que invejamos os namorados, a figura, a popularidade, o dinheiro, as casas e os pais dos outros. Muitas alturas quando não se quer chã a vida.

A diferença entre um e outro momento – cada um dos outros momentos a que deliberadamente chamei alturas – é a idade, altura da vida, em que nos nascem e o que, naturalmente, pomos, ou nos é possível pôr, de nós, nessa demanda. De resto, entre a cupidez da adolescência e os projectos da idade adulta acaba por não haver muitas diferenças. Em todas as situações, é o tempo presente, a situação, que dá substância e importância, ardência, ao objecto do nosso desejo. E no entanto, todo o objecto de desejo depende de nós e não depende de nós.

Não sei se temos claro e consciente o alcance disto. Eu sei que não tinha até há muito pouco tempo. Não nos é possível fazer qualquer coisa a que nos determinemos. Qualquer coisa é muita coisa. E alguma da muita coisa não nos está pura e simplesmente reservada. Mas o reverso também é falso. Equilibrar-se neste arame é para poucos; requer muita fortaleza, quatro mãos e dois corações a bater como um. Algumas vezes menos que isso, outras mais. Há coisas nossas de antes dos tempos; há coisas nossas, façamos por elas; há coisas nossas, mesmo nesse sentido não fazendo nada.

A fortaleza, que não é substantivo concreto, é amplamente desconhecida da gente. Os poucos que a terão retido, nalgum fragmento remoto de uma infância longínqua de sábados longos a começarem com a catequese, equiparam-na à força. A força é uma presença de vitalidade física; a fortaleza, a correspondente espiritual –uma característica muito rara, difícil, exigente. A força nem sempre constrói, a fortaleza fá-lo sempre – e apazigua.

Entretive-me esta manhã cedo, ao acordar, com o telemóvel. Rodeamo-nos de maquinetas que, por nos facilitarem a vida, começam a fazer parte dela ao mesmo tempo que a contêm. E não pude deixar de pensar na incrível fortaleza da fragilidade. Mostrarmo-nos aos outros na nossa fragilidade é a maior prova de fortaleza que é esperança e confiança, que é amor e entrega – a da nossa vida à vida do outro, tudo o que se é nas mãos do outro, para cuidar.

Ontem à noite, muito a meio da noite, fui buscar o Trabalhar Cansa. Desconfio que lhe devo a atenção às migalhinhas no meu caminho esta manhã. O resto, devo-o ao telemóvel.

4 comentários:

{anita} disse...

"Mostrarmo-nos aos outros na nossa fragilidade é a maior prova de fortaleza que é esperança e confiança, que é amor e entrega."
é isso mesmo, parece-me...*

Joana disse...

:))))))))))))))



Jinhos.

Vanessa disse...

fez-me bem ler isto. :)

Joana disse...

Vanessa,



E a mim escrevê-lo, depois de pensá-lo... ;)




Jinhos.