quarta-feira, maio 04, 2011

De coisas que lembram outras coisas - 3

Não devemos deixar enganar-nos pelo facto de nos diferentes capítulos do Livro das Horas se tratar de um só e único Deus (não sem contradições), que Rainer for buscar aos Russos; de modo especial uma atitude de confiança piedosa na protecção divina coexiste com uma outra em que ao contrário o homem parece criar, dar origem a Deus e ser quem deve colocar Deus sob a sua protecção. Não há aqui nenhuma presunção a intervir no seu ferbor; este é pelo contrário tão grande que todos os seus sentimentos, desde o estremecer da humildade à maior das ternuras, se juntam na mesma piedade e se exprimem com o máximo de intensidade neste poema de uma doçura incomparável:

- Tu caíste do ninho
tu pequenino pássado de garras amarelas
e grandes olhos, e inspiras-me pena, tu.
(A minha mão é na verdade demasiado [grande para ti.)
Com um dedo recolho uma gota da fonte
e escuto para ver se tu, cheio de sede, [a recolhes;
e sinto o teu coração e o meu palpitarem
juntos, os dois, e de angústia.

E logo a seguir:

Nós te edificamos com as nossas mãos [que tremem
e te erguemos átomo sobre átomo.
Mas quem poderá terminar-te,
A ti Catedral.

Nada disto por enquanto é contradição interior; nada limita este fervor piedoso, não há nele poesia que não possa convergir neste local de fervor; "Deus" nasceu na sua poesia, sob o impulso dos sentimentos mais humanos, confiantes e sem medo, deixando que deles se aproximasse o próprio Deus, reconhecido como sendo a sua ordem harmoniosa e impossível de captar.

Com efeito, é na piedade e na oração que se elabora tudo o que, até ao limite das representações afectivas conscientes, em nós palpita; e graças a elas torna-se concentração muito profunda, recolhimento; e isto liga a um centro desconhecido todos os êxtases (mesmo que venham de um assunto muito diferente, como sexo ou posição social). Porque o que é, mesmo no crente, o fundamento do nome de Deus? O contacto do que fica no limite do que nos é apenas acessível a partir da consciência, mas que, no entanto, escapa já às nossas motivações conscientes - e que já não nos aparece como sendo "nós", se bem que "nós" aí nos desenvolvamos e que por isso mesmo sucumbamos à tentação de o nomear, de o objectivar, no mais recôndito do nosso próprio ser.

Mas a "oração" - como realização da devoção sentida - pressupõe por ela própria a existência em alto grau de uma angústia interior, um júbilo interior, uma vulnerabilidade ou uma glorificação. Quando a este nível ela se torna poesia, criação artística e involuntária, transbordante de força na sua expressão, desde então passa-se no mais profundo do ser qualquer coisa de paradoxal: a causa e o efeito invertem-se, quer dizer que a formulação, que é secundária, não coincide já com a experiência vivida, mas transforma o alívio e a liberdade que representa - pelo menos numa pequena parte - numa aspiração e num fim autónomos.


Lou Andréas-Salomé
A Minha Vida
Livros do Brasil
1991

2 comentários:

ana disse...

Sou fã incondicional de rainer Maria Rilke. O poema que escolheu é um dos que gosto mais!
Bjs. :))

Joana disse...

Ana,


Eu também, eu também. :))))))))))



Jinhos.