domingo, maio 15, 2011

No último dia da Feira do Livro de Lisboa

Imagem daqui
Jorge de Sena (1919 - 1978)

Ode aos livros que não posso comprar

Hoje, fiz uma lista de livros,
e não tenho dinheiro para os poder comprar.

É ridículo chorar por falta de dinheiro
para comprar livros,
quando a tantos ele falta para não morrerem de fome.

mas também e certo que eu vivo ainda pior
do que a minha vida difícil,para comprar alguns livros
- sem eles, também eu morreria de fome,
porque o excesso de dificuldades na vida,
a conta, afinal certa, de traições e portas
.................................[que se fecham,
os lamentos que ouço, os jornais que leio,
tudo isso eu tenho de ligar a mim profundamente,
através de quanto sentiram, ou sós,
............................ [ou mal-acompanhados,
alguns outros que, se lhes falasse,
destruiriam sem piedade, às vezes só com o rosto,
quanta humanidade eu vou pacientemente juntando,
para que se não perca nas curvas da vida,
onde é tão fácil perdê-la de vista, se a curva
......................................[é mais rápida.
Não posso nem sei esquecer-me de que se morre
................................................[de fome,
nem de que, em breve, se morrerá de outra fome maior,
do tamanho das esperanças que ofereço ao apagar-me,
ao atribuir-me um sentido, uma ausência de mim,
capaz de permitir a unidade que uma presença destrói.

Por isso, preciso de comprar alguns livros,
uns que ninguém lê, outros que eu próprio mal lerei,
para, quando se me fechar uma porta, abrir um deles,
folheá-lo pensativo, arrumá-lo como inútil,
e sair de casa, contando os tostões que me restam,
a ver se chegam para o carro eléctrico,
até outra porta.

Jorge de Sena
Quarenta Anos de Solidão
Moraes Editores 1978

4 comentários:

josé luís disse...

universal
;)

Vanessa disse...

:) pois, percebo.

beijinho*

ana disse...

JJ,
Este poema é muito belo. Quantas vezes isto não acontece?
Revejo-me neste poema, tenho uma pilha de livros para ler e mesmo assim, contando o dinheiro, quero sair e procurar noutra porta...
Bjs. :)

Ouriço-Cacheiro disse...

"para quando se fachar uma porta abrir um deles"
Grande, grande, grandioso Jorge