segunda-feira, maio 30, 2011

O tempo de Gallimard

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A Gallimard está a comemorar o seu centenário com uma iniciativa original. A editora francesa, fundada por Gaston Gallimard em 1911, pôs-se a rebuscar os arquivos e seleccionou algumas dezenas de fichas de leitura redigidas, ao longo deste último século, pelos seus consultores literários. Estes papéis, recomendado um manuscrito para edição ou, pelo contrário, destinando-o ao caixote do lixo, integram a exposição "Gallimard, 1911-2011: Um Século de Edição", que estará na Biblioteca Nacional de França, em Paris, até 3 de Julho. O que a Gallimard pedia aos seus leitores era uma descrição breve do livro, acompanhada de uma pontuação: 1 para obras a publicar, 2 para casos a ver, 3 para manuscritos que deveriam ser recusados. Mas o que dá um sabor particular a estas revelações não é apenas ficarmos a saber o que alguém pensou de um Proust ou de uma Duras em princípio de carreira: é a circunstância de esse "alguém" se chamar Albert Camus ou André Gide, Raymond Queneau ou Jean Paulhan. A Gallimard escolhia os seus consultores a dedo, e muitas destas revelações impressionam pela capacidade de surpreender um talento ainda em gestação, antecipando a sentença da posteridade. Mas mesmo estes "super-leitores" não estavam livres de se estampar ao comprido. "As frases são retorcidas e ele usa uma página para dizer o que poderia ser dito em três linhas. Imagine-se um discípulo de Charles du Bos improvisando-se como romancista". É assim que Gide lê o primeiro volume de "Em Busca do Tempo Perdido", do desconhecido Marcel Proust. Remete-o para o limbo, avaliando-o com um 2. Um gesto generoso, tendo em conta que termina a sua nota de leitura com esta apreciação: "Terrívelmente aborrecido, inútil e respeitável". Conclusão: a Gallimard perde o autor para José Corti, que será, para toda a vida, o editor de Proust. Jean Paulhan não trata melhor o romance de estreia de Nathalie Sarraute, "Tropismes". Depois de sugerir que a autora é uma discípula óbvia de Virginia Woolf e de lamentar que os seus verbos prescindam de um sujeito, recomenda: "Se Mme. S. escrever mais tarde um romance (receio bem que este primeiro esforço a possa ter esgotado), podemos pedir-lhe que no-lo mostre". O mesmo Paulhan, director da "Nouvelle Revue Française", que está na origem da Gallimard, dirá de "Qui Je Fus", de Henri Michaux: "Não é detestável, ainda que ocasionalmente obscuro". Mas, vá lá, recomenda-o para publicação. Já o poeta René Char teve menos sorte com Camus, que, a respeito de "Seuls Demeurent", que a Gallimard viria mesmo a publicar em 1945, escreve: "Sou um mau juiz. Esta estética irrita-me sempre porque vejo nela um talento sem frutos". Mesmo os juízos essencialmente certeiros são às vezes expressos em termos que os tornam mais ridículos do que se falhassem o alvo. "Um bonito livro de mulher", diz Queneau sobre "África Minha", de Karen Blixen. Já o próprio Camus não pode queixar-se da apreciação que Paulhan faz de "O Estrangeiro": "A publicar sem hesitações". Mas é menos certo que se revisse nesta descrição do seu livro: "Começa como Sartre e acaba como Ponson du Terrail". Ramon Fernandez, um colaborador da "Nouvelle Revue Française" que iria tornar-se um especialista de Proust, escreve, em 1936, sobre "E Tudo o Vento Levou", de Margaret Mitchell: "Não me parece oportuno publicar um romance histórico sobre a guerra civil americana, tanto mais que o livro é enorme". Mas Fernandez não era, apesar de tudo, um André Gide, e Gallimard não lhe deu ouvidos. Mandou traduzir o livro, que, em poucos anos, vendeu 385 mil exemplares.


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