quinta-feira, outubro 28, 2010

Outubro quase Novembro

Porto, Jardim Romântico, 27 de Outubro de 2010 Fotografia: A. G.

quarta-feira, outubro 27, 2010

Unabridged

Imagem daqui
A sua vida em fotografias aqui

O primeiro diário que comprei não foi para escrever, foi para ler, e não foi um, foram os dela. Sylvia Plath nasceu há 78 anos: a sua vida, tal como os Diários, unabridged.

domingo, outubro 24, 2010

A oração do humilde atravessa as nuvens*

Prezo o silêncio mais do que quase tudo actualmente. Prezo-o como um espaço de que preciso como água, como abrigo, com ardor, para ganhar forças e prosseguir. Vários compromissos e outras tantas razões me têm, nos últimos tempos, afastado da minha rotina dominical. Acabo por ir de encontro a ela a meio da tarde, mais longe de casa, ou no final do dia, perto de casa. E nunca é igual. Ao meio-dia de Domingo é que o silêncio é silêncio.

Costumava ser: hoje voltei à rotina que andava há que tempos a tentar retomar e o silêncio empequeneceu-se. Á minha frente, o senhor do costume. O senhor pesado a chegar, como sempre, um bocadinho mais tarde, pé ante pé, um passo a seguir ao outro, cada passo com esforço, muito esforço e diligência no manuseamento das canadianas para a firmeza dos passos. É uma imagem dolorosa, confesso, mas a que me habituei. Pergunto-me sempre se não há mascarada na habitualidade de o ver chegar assim, semana após semana, um obscurecimento do olhar, uma quase-indiferença, uma crueldade que me retine dentro como falta de humanidade -, eu que luto diariamente pela pureza do olhar...

O senhor chegou, sentou-se no banco à minha frente quase vazio, acomodou as canadianas, seguiu cada rito levantando-se, como sempre, quando pôde. A meio do banco, uma senhora muito voluntariosa correu para ele a cada vez que o senhor se levantava. Adeus silêncio, adeus concentração. Quase no final, genuflectindo, ouço-a baixinho: "Saiba que o importante é ter um coração desperto, que isto começa a ser demasiado sacrifício para si." Adeus silêncio, adeus conforto da Palavra. Desde esse momento até ao final, o senhor nunca mais se levantou. Desde esse momento até ao final, nunca mais sosseguei. Antes de se ir embora, o senhor olhou, pequenino, a companheira de banco empenhada em cumprir com mestria o responsório, os cânticos na parte do coro, o sobe e desce do rito. E eu senti-lhe a humilhação.

O silêncio é um espaço que se busca. Interiormente. Exteriormente. Às vezes ajudar o outro não é içá-lo a cada levantar, não é ampará-lo a cada sentar; é dar-lhe o espaço que ele procura. Compreender o outro, que é etimologicamente inclui-lo, é acolhê-lo, aceitá-lo na sua totalidade de homem. Prezar o silêncio, preservá-lo, acaba por ser, às vezes, uma questão de dignidade - de todas, a forma mais básica de humanidade.

* Livro de Ben-Sirá

sábado, outubro 23, 2010

HOJE

Eu vou lá estar. Venham também.

quarta-feira, outubro 20, 2010

segunda-feira, outubro 18, 2010

De certos prolegómenos


Às vezes pergunto-me se não sou duas. Se não ando num arame em permanente luta comigo, com a outra de mim que também sou eu, à procura de uma coerência que me apazigue e conforte, um bálsamo. Por exemplo: serei das minhas amigas a mais feminina e a menos feminista. E isto parece-me tão óbvio quanto natural, coerente, compreensível... Não ando confusa, confunde-me o mundo.

Não gosto de, a meia manhã, ler isto. Desagrada-me profundamente a maneira como é apresentada a pertinência da obra. Não sei o que é "a causa das mulheres", possivelmente porque não concedo perceber uma série de coisas relacionadas. Desconcerta-me este militantismo fora de época. Não vou falar da escolaridade das mulheres, que é maior, das posições de chefia e dos cargos públicos que detêm, do lugar que ocupam na sociedade sem se demitirem da família, porque não se trata disso, nem dessas mulheres. As autoras pretendem e proclamam um Maio de 68 para as artes, para a escrita no feminino.

Toda a boa escrita é, em algum momento, de alguma forma, "escrita discriminada". Transformar este facto numa questão de género parece-me, além de manobra publicitária, fraqueza: o não conseguir resistir ao impulso de reclamar, constantemente e com juros, não só uma valorização - a que o progresso da sociedade e das mentalidades já foi de encontro -, mas também uma sacralização maior no âmbito das artes. No meu entender, trata-se de uma postura infeliz e incompreensível - o conhecimento que temos destas escritoras no presente não deixa lugar para este tipo de reclamação - politizante, politizada, e polemizante, pelo menos. Servirá naturalmente os intentos de quem a tomou e aqueles de quem a seguir, muito embora para mim permaneça sobretudo, e paradoxalmente, como redutora de uma condição que também é a minha, que me interesso por estas coisas.

Desvalorizaremos hoje Sophia, Agustina, Florbela Espanca? Desconhecê-las-emos? Preteri-las-emos em favor de escritores homens? Não me parece. A História e progresso do nosso tempo e da nossa sociedade nisso são claros: qualquer aluno que termine hoje a escolaridade obrigatória o comprova, qualquer pessoa interessada em leituras e livros o desmente. Ocupam um escaninho no campo da Literatura? Também não. Ocupam o seu próprio espaço, aquele que os seus génios fizeram surgir.

A mulher das artes, a mulher da escrita, é, antes de mais, uma de carne, sangue e osso, casa e filhos, e isto tanto quanto é distinta - uma mulher visionária, mais ou menos atormentada, culta. A bem da arte, e da Literatura enquanto tal, entenda-se, estude-se, divulgue-se a autoria mais como formato, que o é e riquíssimo, e menos como epifenómeno social. A mulher agradece.

sexta-feira, outubro 15, 2010

Collaboration is the stuff of growth

Da necessidade de sublinhar um sublinhado

Hoje fazem anos este senhor e este. Acompanharam-me a adolescência e a juventude, e, naturalmente, sem saberem, ajudaram-me a crescer e a ser parte do que sou hoje - um hoje de algum tempo a esta parte: deixamos de ter algo para se ser, realmente ser, a partir dos vinte e cinco, parece-me. Coisas para outra reflexão.

Não faço a menor ideia de quem são os ídolos das pessoas que têm hoje entre quinze e dezoito anos, não sei se dez, quinze anos depois da idade actual se vão levantar da cama a pensar no peso das efemérides da geografia pessoal que é sobretudo afecto; se antes de se sentarem à secretária para começar o dia procurarão matar saudades desses tempos remotos, buscando na estante a edição velhinha, anotadíssima, da obra que propiciou aquele primeiro encontro; não sei perturbam, se inquietam, se questionam, os ídolos actuais, os mais jovens para lhes transmitir alguma coisa viva e transformadora do que cada jovem quer ser neste mundo em constante mutação e permanência no essencial.

Hoje - hesito entre uma conjunção explicativa e uma adversativa - o meu sublinhado maior vai para aqui.

quinta-feira, outubro 14, 2010

Da morte do crioulo de Cochim

Pidgins e Crioulos era a matéria do final do ano na Faculdade. Se calhar porque os dias cresciam e o sol de Maio já avançava promessas de Verão, sempre me foi fácil falar do Português no mundo. Começava pela gradação que existe entre pidgin, crioulo e língua. Pidgin é toda a linguagem básica que serve a comunicação entre dois povos que não partilham, naturalmente, a mesma língua. Crioulo é a língua que se nativiza após descobrimento, colonização, invasão, aquela que, originada num pidgin, num pidgin e noutra língua, ou em duas línguas distintas, herda o léxico do descobridor, colonizador, invasor, e a gramática singular da(s) língua(s) nativa(s).


Crioulo etimologicamente vem de ‘criar’, ‘educar’, ‘ajudar a crescer’, e, não obstante o paternalismo que se possa ver na origem da palavra, os quase vinte Crioulos de Base Portuguesa espalham-se pelo globo e são presença de Portugal no mundo. Portugal como História, Portugal como conceito, marca, Portugal como cultura, está em regiões tão distintas como a Guiné Equatorial, Cabo Verde, Korlai, Perth, Antilhas holandesas, Suriname e Sri-Lanka.


Recebo por mail esta notícia. É mais corrente do que se possa pensar, nascerem e morrerem línguas. Da morte mais ou menos anunciada de uma língua à sensação cada vez mais forte de que vivemos um presente que desolha a História, que inclusive se preocupa com preservar dela os fragmentos que mais se coadunarem com a maioria, nas suas convicções e ideologias, é que é algo novo, um nexo que é um sinal, um anúncio de finais dos tempos, do começo de outra coisa qualquer, indicialmente retrocessa, de âmbito global, para a qual não estamos, em definitivo, preparados.

Deixou de haver Portugal em Cochim.

Do que vai para além da comoção

Imagem daqui

"Julgo poder ser verdadeiro o facto de a sorte ser árbitro de metade das nossas acções, mas que, mesmo assim, ela permite-nos governar a outra metade ou parte dela."

O Príncipe, Maquiavel

quarta-feira, outubro 13, 2010

Hand language

Rota do Chá, 10/10/10

A Vanessa, a fotografia, e a conversa animada das minhas mãos.

terça-feira, outubro 12, 2010

Trabalhar cansa

Descia a rua, todas as ruas até chegar à Biblioteca, a contar as crianças pelo caminho – os filhos dos outros pelas mãos deles e dos pais deles, dos avós, como as migalhas de um conto longínquo de que se socorriam duas crianças para não perderem o seu norte, no meu caso o sul da manhã. Acho que há uma altura na nossa vida em que invejamos os filhos dos outros, como há uma altura em que invejamos os namorados, a figura, a popularidade, o dinheiro, as casas e os pais dos outros. Muitas alturas quando não se quer chã a vida.

A diferença entre um e outro momento – cada um dos outros momentos a que deliberadamente chamei alturas – é a idade, altura da vida, em que nos nascem e o que, naturalmente, pomos, ou nos é possível pôr, de nós, nessa demanda. De resto, entre a cupidez da adolescência e os projectos da idade adulta acaba por não haver muitas diferenças. Em todas as situações, é o tempo presente, a situação, que dá substância e importância, ardência, ao objecto do nosso desejo. E no entanto, todo o objecto de desejo depende de nós e não depende de nós.

Não sei se temos claro e consciente o alcance disto. Eu sei que não tinha até há muito pouco tempo. Não nos é possível fazer qualquer coisa a que nos determinemos. Qualquer coisa é muita coisa. E alguma da muita coisa não nos está pura e simplesmente reservada. Mas o reverso também é falso. Equilibrar-se neste arame é para poucos; requer muita fortaleza, quatro mãos e dois corações a bater como um. Algumas vezes menos que isso, outras mais. Há coisas nossas de antes dos tempos; há coisas nossas, façamos por elas; há coisas nossas, mesmo nesse sentido não fazendo nada.

A fortaleza, que não é substantivo concreto, é amplamente desconhecida da gente. Os poucos que a terão retido, nalgum fragmento remoto de uma infância longínqua de sábados longos a começarem com a catequese, equiparam-na à força. A força é uma presença de vitalidade física; a fortaleza, a correspondente espiritual –uma característica muito rara, difícil, exigente. A força nem sempre constrói, a fortaleza fá-lo sempre – e apazigua.

Entretive-me esta manhã cedo, ao acordar, com o telemóvel. Rodeamo-nos de maquinetas que, por nos facilitarem a vida, começam a fazer parte dela ao mesmo tempo que a contêm. E não pude deixar de pensar na incrível fortaleza da fragilidade. Mostrarmo-nos aos outros na nossa fragilidade é a maior prova de fortaleza que é esperança e confiança, que é amor e entrega – a da nossa vida à vida do outro, tudo o que se é nas mãos do outro, para cuidar.

Ontem à noite, muito a meio da noite, fui buscar o Trabalhar Cansa. Desconfio que lhe devo a atenção às migalhinhas no meu caminho esta manhã. O resto, devo-o ao telemóvel.

segunda-feira, outubro 11, 2010

De Um Céu Que É Um Abrigo

Reparti pelos dois serões do fim-de-semana o visionamento de The Sheltering Sky, um filme de Bernardo Bertolucci, com uma fotografia magnífica. Brevemente, trata-se da história de um casal de artistas que empreende, juntamente com um amigo, uma viagem pelo deserto. O início e o final da narrativa, moralizadores, estão a cargo de um senhor de olho vivo e muita idade que está sentado a um canto do bar da cidade que assiste à chegada dos protagonistas e à sua despedida possível.

Escudo-me da crítica cinéfila por não crer ter conhecimentos para tal e achar que escrever sobre o filme aqui e agora é o bastante. É boa a obra de arte com vida dentro. Qualquer obra de arte que tenha vida dentro questiona naturalmente a vida daqueles que a experienciam. No caso, a facilidade com que desolhamos a irrepetibilidade do presente, de vivências, momentos e condições que, por todas as razões, desabituámo-nos de ver como únicos. Vai um bocadinho mais além do carpe diem, que anda hoje tão longe de Horácio, tão nas bocas de um mundo precário e confuso. Não é o aproveitar o dia porque amanhã não se sabe, é o aproveitar o dia porque amanhã começa hoje.

É claro que isto vai contra a noção instituída do tempo como um continuum, cuja repartição se deve apenas à regulação da vida em sociedade; é igualmente claro que isto vai contra a psicologia contemporânea do amparo, em que tudo tem solução, nada é culpa nossa, e as felicidades e os bens-estar sucedem-se como autocarros. Nem tudo tem solução. Às vezes, a culpa é nossa (às vezes não, de todo). A felicidade e o bem-estar são substantivos abstractos, não se pluralizam.

Utilize-se sabiamente o tempo, empregue-se ardor na nossa entrega à vida, conduzamo-nos nela com sinceridade, administre-se bem a paixão, preservem-se as memórias como tesouros, cuide-se dos nossos como de nós próprios, demo-nos valor, dê-se valor ao outro, ao que temos. Atente-se no sol que nasce (e morre) todos os dias de uma manhã distinta e irrepetível. Nem o céu que nos abriga é sempre o mesmo.

quinta-feira, outubro 07, 2010

Cada momento

The equestrian, Marc Chagall 1931

Milagres

Ora, quem acha que um milagre é alguma coisa de especial?
Por mim, de nada sei que não sejam milagres:
ou ande eu pelas ruas de Manhattan,
ou erga a vista sobre os telhados
na direcção do céu,
ou pise com os pés descalços
bem na franja das águas pela praia,
ou fale durante o dia com uma pessoa a quem amo,
ou vá de noite para a cama com uma pessoa a quem
/amo,
ou à mesa tome assento para jantar com os outros,
ou olhe os desconhecidos na carruagem
de frente para mim,
ou siga as abelhas atarefadas
junto à colmeia antes do meio-dia de verão
ou animais pastando na campina
ou passarinhos ou a maravilha dos insectos no ar,
ou a maravilha de um pôr-de-sol
ou das estrelas cintilando tão quietas e brilhantes,
ou o estranho contorno delicado e leve
da lua nova na primavera,
essas e outras coisas, uma e todas
— para mim são milagres,
umas ligadas às outras
ainda que cada uma bem distinta
e no seu próprio lugar.

Cada momento de luz ou de treva
é para mim um milagre,
milagre cada polegada cúbica de espaço,
cada metro quadrado da superfície da terra
por milagre se estende, cada pé
do interior está apinhado de milagres.

O mar é para mim um milagre sem fim:
os peixes nadando, as pedras,
o movimento das ondas,
os navios que vão com homens dentro
— existirão milagres mais estranhos?

Walt Whitman, Folhas de Erva
Relógio d'Água, 2003

segunda-feira, outubro 04, 2010

Umbilicalidades



Quando fazemos anos, também estão de parabéns os nossos pais. E o contrário?
Hoje é Dia da Minha Mãe. Eu sei que não seria eu sem ela.

quinta-feira, setembro 30, 2010

A manhã esta manhã

Imagem daqui

"It was the best of times, it was the worst of times, it was the age of wisdom, it was the age of foolishness, it was the epoch of belief, it was the epoch of incredulity (...) it was the spring of hope, it was the winter of despair (...) - in short, the period was so far like the present period, that some of its noisiest authorities insisted on its being received, for good or for evil, in the superlative degree of comparison only."

Charles Dickens, A Tale of Two Cities

sábado, setembro 25, 2010

quinta-feira, setembro 23, 2010

O Dicionário tem dentro de si o Universo completo.

Quando não me sinto velha, sinto-me distante de muita coisa. Como a Alice que não pode voltar atrás porque já não é a mesma. Começar a manhã a perceber que um dicionário vai estar na ordem do dia e nas bocas do mundo por uns bons tempos e pelas razões mais típicas deste país pequeno é coisa para me por a pensar na vida, pesando e sopesando opções.

Trabalho com dicionários amiúde. Um bom dicionário contém todas as palavras de uma língua. Por um lado, as palavras vivas, que impregnam a oralidade, que dominam a escrita, que surgem por imperativos tecnológicos, políticos, que servem o propósito da comunicação, etc.; por outro lado, as palavras que caíram em desuso mercê de mudanças estruturais, as que constituem testemunho documental e memória da evolução da nossa sociedade e da nossa mentalidade. Tenho uma opinião muito própria acerca dos Dicionários de Língua Portuguesa - faço notar o plural, pluralizei em consciência -; já fui professora, já fui aluna, quero ser mãe. Acredito que os palavrões possam ser um pesadelo para os pais. Acredito que os palavrões possam constituir, na mente de alguns professores, uma acha mais à indisciplina na sala de aula.

Na Primária, os meus pais compraram-me o dicionário que vinha no final da lista dos manuais - o Dicionário da minha mãe era um tomo, definitivamente não-transportável. Que me lembre, nunca abri o dicionário que os meus pais me compraram para a 3a. classe fora do âmbito escolar: nas aulas, quando assim era pedido em determinado exercício; em casa, quando o TPC o exigia. Era a melhor aluna e tinha uma predilecção especial pela área da Língua Portuguesa. Era também uma criança menos extrovertida e dinâmica que a generalidade dos meus colegas, dada aos meus pensamentos, reflexões e curiosidades pessoais - acho que foi só na pré-adolescência, numas férias de Verão, que descobri o valor lúdico do tomo da minha mãe. (Foi quando anunciei que iria decorar dez palavras do dicionário por dia.) Já minha irmã Teresa era o meu reverso: tocava às campainhas vizinhas e deixava-me a braços com a ira dos pais dos meus coleguinhas, subia as prateleiras dos arrumos, fazia da parede do quarto um quadro para desenhar, desaparecia para debaixo da mesa para comer doces à vontade e em sossego..., e, por isso, estou desde esta manhã ansiosa que chegue o final do dia para lhe ligar a saber se alguma vez andou à cata de palavrões no dicionário que, na sua 3a. classe, recebeu de mim.

Mas muito antes disso, por pura maldade, à minha irmã Teresa ensinaram no Infantário, ensinou a ajudante da Educadora, uma série de palavrões, interjeições, aforismos e quase diálogos, dignos de rivalizar com as bancadas por detrás da baliza do Estádio aqui a meia hora de casa. Escusado será dizer que os meus pais entraram em pânico, que os meus avós recusaram a ajuda no transporte de e para o infantário - a minha avó oferecendo-se para ficar com toda a gente, que tinha tempo e ninguém melhor que os avós -, escusado será dizer que se averiguaram responsabilidades, mas a Teresa acabou por ficar mesmo em casa, tal como ficaram os meus dois outros irmãos mais novos. E isso, se foi a melhor solução por um lado - efectivamente, afastada do local de "aprendizagem", acabou por se esquecer do "aprendizado", por outro lado, terá tido uma infância mais pacata do que a sua inteligência e surpreendente desenvoltura mereceriam.

Já dei aulas a turmas mais ou menos boas, mais ou menos más e terríveis. A turma mais terrível com que tive o prazer de trabalhar, orgulhava-se, disseram-me, de ter atirado para a Biblioteca uma professora absolutamente esgotada, a colega que fui substituir e que considero uma profissional a todos os níveis excelente. A verdade é que isso foi há algum tempo, hoje faço investigação e se o Ensino me continua a interessar é tão somente pela impressão de pouco futuro que me parece que legamos progressivamente, e mais ou menos conscientemente, aos vindouros. Em relação ao medo dos vulgarismos, do que vou lendo, das impressões que continuo a trocar com colegas, continuo firme na convicção de que a indisciplina tem uma única raiz: a falta de motivação. Ora, a falta de motivação radica numa série de factores (sócio-económicos, psíquicos, afectivos), porém, nenhum deles é remotamente próximo das entradas constantes num dicionário.

Fazer-se barulho porque consta do dicionário recomendado para o ensino básico, meia-dúzia de palavrões, a que alunos, pais e educadores estão expostos, abrindo uma janela, ligando a televisão ou no interior de um transporte público - na verdade, não é preciso ir a um estádio de futebol - parece-me dos absurdos mais deprimentes da portugalidade.