Ossos longos, ossos chatos, ossos curtos, ossos irregulares.
O osso é uma estrutura exclusiva dos animais vertebrados - a única que lhe sustenta o corpo e apoia os músculos para o movimento.
É osso o que protege cada órgão vital do nosso corpo: o crânio protege o cérebro, as costelas, o coração.
SUB-STANTE.
Quando vou no comboio faz-me sempre falta um livro. Ainda esta manhã, quando me mentalizava para sair do quentinho da cama, dizia para mim própria que não me podia esquecer do livro que está na sala, o ideal para a viagem.
Porque o trajecto é muito longo, a paisagem, a mesma de há anos, o cansaço está mas o sono foge... Saí à pressa. Esqueci-me. Como sempre.
Sem opção, porque ler artigos científicos é o meu trabalho - tem hora marcada, região demarcada e implica seriedade, brio e profissionalismo - olho pela janela e penso na vida. Na minha, nas que tocam a minha, nas que a minha toca, em tudo e em nada.
Vi assim muito ao longe, por detrás do cansaço quase sono - como eu queria que fosse sono! - o Pascal. Estranho - pensei - querem ver que agora sempre que ando de comboio me vem o Pascal à memória? Ontem tinha sido a mesma coisa. Estranha.
O Pascal foi namorado de uma das minhas colegas de departamento. Na realidade, enquanto estive nos EUA, eram namorados, agora é que já não. Vá-se lá saber porquê. Bem, eu sei porquê mas não digo porque este blog ainda não está assim tão vanguardista e há choques que prefiro ter apenas eu e portanto guardá-los dos outros. Ou guardar os outros de baques idênticos. Whatever. De qualquer dos modos, o Pascal é dos seres humanos mais maravilhosos que conheço - daquelas pessoas quaaaaaaaaaase perfeitas, não fosse a falta de (algum) discernimento que sempre caracteriza as boas pessoas - então deixei-o bem lá no meio da bruma porque o sono veio mesmo e acabei por cochilar um bocadinho. Quem disse que os comboios são desconfortáveis? Haja soninho!
Minutos depois o frio da janela na minha bochecha provocou o inevitável: acordei. Volto a olhar para fora, volto a pensar na vida. Trivialidades. Voltou a vir a névoa e o sono. O Manuel, eu, os nossos amigos, o Manuel que se levanta, sério, eu que me levanto, preocupada, o Manuel que me agarra na mão com muita força, com a força de que ele precisa, possivelmente, para falar. Acordo. "Bolas, sonhei com isto a noite passada, outra vez não!" Pois... a noite passada, também!
Chego ao gabinete. Verificação do e-mail português, trabalho, trabalho, trabalho, os vossos comments; verificação do outro e-mail, primeira mensagem na Caixa de Entrada: Pascal. Ai, se acertar no Euromilhões fosse tão fácil! Queria informações sobre a Madeira, tem quinze dias de férias depois de ir visitar os avós à Suíça - esqueci-me: o Pascal é suíço de nascença, mas americano de criação: aos três anos de idade foi para a Califórnia - e quer passá-los num sítio bonito, diferente e... acho muito bem. Lá lhe dei as informações de que necessitava e lá ficou ele todo contente. Já me tinha esquecido do quanto ele é alegre e descomplicado e trabalhador (eram cinco da manhã lá e ele a responder-me aos mails, já não dormia há vinte horas... Físicos!)
Apressei-me depois a mandar um e-mail ao Manu. (O Manu também é de Física, mas não trabalha assim. (É português!) Não. Não trabalha assim porque estuda outras coisas, através de um método diferente - não há método pior que o experimental! Coisas que se aprendem com eles...) Mas, definitivamente, deve passar-se alguma coisa com o Manuel. (E eu já devia ter desconfiado, porque as confidências amorosas do meu sempre apaixonado amigo Manu de algum tempo a esta parte pura e simplesmente deixaram de existir). A ver vamos.
Qual é a probabilidade de o mesmo voltar a acontecer a uma pessoa? Ou melhor, qual é a probabilidade de eu ir novamente no mesmo comboio que o Sr. A-menina-tirou-direito-na-UM-seria-possível-vê-la-novamente e ele vir com a mesma conversa e-x-a-c-t-a-m-e-n-t-e?
Depois de não ter conseguido sair da cama a tempo de apanhar o comboio que prentendia. Depois de ter apanhado uma molha monumental (com os efeitos usuais - mas nunca queridos - de encaracolamento irreverente do meu cabelo) por ter que ir ao multibanco que no metro o pagamento por cartão não funcionava. Depois de ter esperado uma eternidade pelo dito metro que hoje apenas os serviços mínimos foram garantidos. Com mais cerca de uma hora de viagem pela frente que o comboio não era dos rápidos. Não há direito.
Chegar à Faculdade e dar com o nariz na porta da biblioteca, fechada antes da hora. Chegar ao gabinete e dar com o meu Orientador ao computador na sua hora de almoço que é a minha hora de trabalho ao computador.
Um dos consolos do dia: Ir almoçar ao vegetariano. Deliciar-me com a melhor feijoada (de soja) do universo.
Chegar à Faculdade, ir ao computador (finalmente!), assistir às Provas de Doutoramento, afinal o motivo por que vim à Faculdade hoje.
Segundo consolo do dia: Brilhante, brilhante, brilhante. Tenho muito orgulho em conhecer a M.J., não foi minha professora, mas podia ter sido. Além do que há sempre entre doutorandos uma solidariedade que se constrói nem sei bem como. Emocionei-me e isso foi antes de, nas palavras dela, me passar "o ramo de noiva". Sou a próxima.
Mas, para finalizar em beleza, e em abono da verdade, falta o durante as provas. Bem o antes: dirijo-me para o elevador, encontro um senhor à porta do mesmo, deixa-me entrar primeiro - o que eu gosto deste geração que deixa as meninas entrar em primeiro lugar! - depois vem um professor desta casa a correr, cheio de salamaleques para com o senhor. Percebi. Era um dos arguentes, vinha do país vizinho e como é uma autoridade internacional há que se desfazer em delicadezas. Muito simpático, muito simples, não me desfiz - não sou disso - mas lá fui falando com ambos. O pior veio depois. No durante. Passou o tempo todo a olhar para mim. (?!) Se bem percebo destas coisas, a argumentação dele já estava toda feita e estudada pelo que não tem necessariamente de ouvir a exposição da candidata, mas podia, ao menos, disfarçar melhor a figura de corpo presente. Além do que havia sempre a possibilidade de estar a babar para alguém sentido atrás de mim, havia gente nessa fila, que eu bem os ouvia a conversar. Enfim... A cereja (podre) em cima do bolo: no depois, com o meu Orientador de um lado e o meu mentor do outro, a culpa foi do meu Orientador que achou de lançar "O seu comentário sobre a não divisão entre Literatura e da Linguística é muito interessante, muito pertinente..." Eu, interiormente, Hã?Depende do plano, depende do plano em que se estiver, certo? Ele para o meu Orientador: "Pués si, claro, és como las mujeres, se te digo - e aponta para mim - tiene unas roupas bonitas, tiene un pello bonito, tiene uns ojos bonitos, tiene unas manos bonitas... eso és l'exterior. Ahora que devo decir és, todo eso és verdad pero hay algo en el interior mucho más bonito que le dá eso todo." Amarelei. Esta seria a parte em que, se estivesse à espera, daria um berro - interiormente, claro. O Orientador concordou, o mentor também. Eu não disse nada, nem sei se me esforcei por sorrir. Devo tê-lo feito.Logo a seguir o Orientador achou por bem falar-lhe do *meu* trabalho que ele achou muito interessante e com tantas semelhanças com o dele que não podia deixar de dar-me o seu cartão, para a seguir rematar. "Ya lo dise esta mañana e te lo digo ahora, en Portugal las mujeres más bonitas vienen à L'Universidad Católica de Braga. Estuvo en Universidade do Minho e no és asi, solo aqui, solo aqui." Riram-se todos, mas agora o meu Orientador amarelou. Tinha-se feito luz finalmente!
Conclusão: Não sou adepta nem do método, nem da conduta, mas... Devia ter feito greve. Hoje.
P.S. Desculpem o meu castelhano que é péssimo, mas como o senhor é de lá, cada falinha tinha o seu (malogrado) salero.
Os pormenores são importantes. Eu adoro pormenores. Especialmente nas pessoas: o que disse, como disse, quando disse, a quem disse, o que calou, o que deixou escapar, o que deixou transparecer, enfim... gosto de observar e estas coisas todas que acabo de enunciar, além de me entreterem, saciam-me. Gosto de perceber as pessoas. Possivelmente para me perceber melhor a mim. Também.
As pessoas são importantes. Eu adoro pessoas. Gosto de as observar, de tentar adivinhar o que estão a pensar na hora, onde vivem, com quem vivem, como são, como pensam, o que fazem. Gosto de observar. Ver, acho que até nem vejo muito, mas observo e isso é quase-ver.
De algum tempo a esta parte - acontece-me mais vezes do que desejaria e isso aborrece-me - não consigo ver certas pessoas quando estão exactamente diante os meus olhos. São pessoas que admiro bastante. Pessoas de quem gosto muito, demasiado - penso, por vezes. Algumas são mais ou menos famosas, outras fazem parte do meu círculo de amigos, outras conheço de vista e tenho a certeza de que não fazem a mais pequena ideia da minha estima, outros nem sequer sonham a minha existência. Mas eu sei que eles existem e porque existem e são realmente assim, gosto deles. Não fosse a minha irmã cotovelar-me a cada vez: Então não viste o...? Então, olha ali a... não vais ter com ela? A última vez foi em Espinho. Estávamos a descer uma das artérias principais, ao mesmo tempo que o Alvim subia, segundo a minha irmã parecia perdido, queria pedir uma indicação qualquer, sim porque eu não o vi e ele esteve alegadamente à minha frente. Pediu a outras pessoas, dali mesmo, portanto muito melhores conhecedores da zona do que muggins me.
Não sei porque é que isto me acontece. Não sou distraída. Normalmente. Quando era miúda, o caso era outro: só olhava em frente e para cima - ainda hoje deve haver resquícios disso na minha postura porque dizem-me que tenho pinta de convencida - mas nessa altura era pior, não havia a aura das manias, mas cada joelho e/ou bochecha esfolados à vez, um nariz em muito mau estado, mil galos na testa a cada passo. Depois cresci - apesar de andar sempre com o olhar, não o nariz, muito no ar - e os postes e as paredes deixaram de vir contra mim, e as ruas passaram a ter descidas menos abruptas e súbitas. Passou.
Ganhei esta distracção cinésica (será?) há pouco mais de um par de anos e recentemente temo que tenha evoluído para algo cinésico-emocional: antes eram apenas algumas pessoas, quase todas banais, depois passaram a ser quase todas as que estimo e recentemente ouvi, sem escutar realmente, algo que me disseram ou deixaram escapar. Já não sei. Não, sei: disseram, disseram mesmo. Com todas as letrinhas.
- Pois, possivelmente, mas é muito bonita!...
- Sim, é. Mas, sabes, foi precisamente esse o nosso problema. Prometi para nunca mais. Além do que a beleza, Joana, ... a beleza não é o mais importante.
... a beleza, Joana, ... a beleza não é o mais importante. A justaposição do meu nome, daquele nome que é só meu, bem ao lado da beleza, ao lado, não dentro, ao lado, contíguo à beleza, caiu-me mal. Como se o meu nome, eu, fosse o parente pobre, o triste que ficou para o fim e não foi escolhido, aquele que chegou quando todos já se tinham ido embora, quando já não havia festa. Caiu-me mal. Não consegui sorrir-lhe, nem responder ao que me tinha perguntado. Não ouvi. Caiu-me mal. Mas não tão mal como deveria ter caído, ele começou a falar de outras coisas logo de seguida e foi como com o Alvim, quando acordei do meu misterioso torpor, já o foco de interesse se tinha eclipsado.
No entanto, para a posteridade, fica registado que foi a primeira e única vez que me chamaram feia. Ou elogiaram o meu bom carácter. (Tal como no anúncio: "a tua generosidade, o teu bom coração... És a minha melhor amiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiga!!!) Conforme. Pelos vistos, homens há que acham que uma afirmação do género não é gravosa, nem insultuosa, nem nada. Eu acho do mais vilipendiante possível. Até porque desde que me conheço estou habituada a ouvir os adjectivos bonita, linda, inteligente, teimosa, exigente, refilona, chata, determinada, trabalhadora, complicada, incansável, convencida!... ligados à minha pessoa, não necessariamente por esta ordem, mas com acentuada frequência estes, outros também, mas estes sobretudo.
A beleza é fundamental. A beleza, da mais plástica à mais mística é aquele sentimento que faz com que encaremos o outro como a água para a nossa sede, portanto é a pedra angular de qualquer relacionamento. E o dito relacionamento, nessa altura ainda em fase embrionária, o tal que acabou por fracassar por outras razões, precisava dela como Dédalo da água. Não funcionou e eu devia ter percebido ali. Naquele momento, naquele café, naquela resposta, naquela justaposição horrorosa. Pormenores.
Primeiro foi na Madeira. Há duas semanas atrás. Os meus pais tinham chegado no Domingo à noite. Na segunda, livre (de tarefas domésticas, i.e. regar plantinhas e alimentar cãezinhos) como um passarinho, acordei a horas indecentes, almocei à hora certa, levei a minha mãe ao emprego - deixei o meu pai a recuperar do voo tardio, perdão: a fazer a sexta que para ele o tempo ainda era de férias, e não sucumbi ao ímpeto consumista. A culpa é da quase contiguidade geográfica entre o colégio onde a minha mãe trabalha e o Madeirashopping. A culpa também é do acaso e do calor e dos gonzos do portão e da minha má sorte que, todos juntos, me forçaram à reclusão nos últimos três dias de solitude (uma solitude boa, muito boa por sinal). O portão dilatou, os gonzos também, o portão descaiu, os gonzos não, a língueta emperrou, o resto (do lado de fora) parece, para meu mais completo desassossego, que também, mas se calhar não. Valeu-me nesse dia fatídico o conhecimento geográfico da minha mãe que desde o Porto me orientou de uma viela escusa bem ao pé de casa até a mesma.
Justificada a ida ao shopping, prossigo, périplo pelos sítios do costume, poucos, um só, agora que há Fnac na Madeira. Fnac. José Luis Peixoto, como de costume. Banquinho do costume. Cemitério de Pianos, lindo, lindo, lindo, quase quase no fim - por isso é que acordei - quatro, quatro da tarde? Quatro da tarde. A tarde já no fim. Perdida? (Bem... cinema?) Ganha? (Cinema: The Painted Veil - última semana, de certeza) Ganha. Definitivamente muito, muito ganha.
Bilhete vendido pelo "fuinha" do sítio, segundo os meus irmãos, que na minha opinião, muito pessoal, trata-se de um rapaz adorável: sorridente, simpatiquíssimo, sobretudo muito profissional, que me coloca sempre no mesmo lugar, na mesma fila, desde a primeira vez. Todas pessoas que trabalham em qualquer serviço de atendimento ao público deviam ser assim. Com toda a gente, com toda a gente, não é só com a menina Joana CGJ!... - costumam dizer os meus irmãos. (Então, queriam saber o meu nome todo?!) Com toda a gente. - digo eu, também.
Lá dentro, uma meia dúzia de pessoas. De meia idade. E eu. Um homem apenas. De meia idade. Com uma senhora. Subo até meio, mais de meio. Noto a faixa etária dominante, reparo no homem, na mulher que está com ele, familiar, olha muito para mim também, mas não esboça qualquer reacção, olho para o outro lado duas mulheres, de meia idade também, o mesmo olhar fixo em mim por parte de uma delas, fixo, mas sem reacção, enigmático, entro na fila, sento-me penso nas duas, fecho os olhos, vejo-as, conheço, não conheço, quem são. O filme começa, um filme maravilhoso, de uma cenografia extasiante, uma selecção musical deliciosa e um desempenho por parte dos actores (Naomi Watts, Edward Norton) que faz jus à obra. O Véu Pintado é um dos livros outrora menos conhecidos de William Sommerset Maugham, agora do domínio público (nos EUA, pelo menos) graças ao filme. A meio do filme, não me lembro ao certo em que parte, fez-se luz, eureka!!!, foram minhas professoras!!!
Foram minhas professoras. As duas. No Secundário. A primeira que o meu olhar encontrou, a Dra. Inês Clode, de Português, era conhecida, entre nós, pela frequência com que, quando analisávamos Os Maias, no 12º ano, dizer com sinceridade, a cada passagem(!) Isto é delicioso! Ah, isto é delicioso! Era mesmo. Ainda é. Delicioso. Adorava-me. Joana, se não vai para Letras, o país fica mais pobre. Ouça bem o que lhe digo. A outra, a Professora Lígia, de Francês e TTF (técnicas de tradução de Francês), era, entre nós, a vite-vite - a alcunha saiu primeiro da gavetinha do inconsciente que o nome próprio, admito. Joana, a Joana escreve-me ao coração. Ora leia outra vez, não, não leia, senão não temos tempo!.... A senhora fazia tudo muito rápido: a entrada na sala, o cumprimento, o sumário, a exposição da matéria, a audição de música francesa, os esquemas no quadro, o apagar o quadro, o abotoar o botão da blusa, o puxar o fecho da saia, o voltar a apagar o quadro. Era de uma vivacidade francamente invejável!
Esqueci por momentos o filme por causa desta mesma situação. Três mulheres, três professoras. Duas de meia idade, uma jovem. Um filme. Uma história de Amor. Um livro. O Maugham. Porque é que eu estava ali? Por ser mulher? Por ser professora? Por gostar de ler? Estaria ali por elas? Há cerca de dez anos que não as via, mas teria o trabalho delas sido tão eficiente ao ponto de me ter colocado ali. Que bom seria! Por outro lado, conheço a obra do Maugham (quase toda!) há muito pouco tempo, há meses, por recomendação de um amigo muito querido, mas recente também.
Voltei ao filme. Lindo, lindo, lindo e catártico. Triste, no final portanto, como é típico no Maugham. No fim, quando ia a correr para as apanhar no corredor, fico sempre até acabar a música porque ainda estou a pensar em tudo do filme e já é hábito, toca-me o telemóvel e dada a urgência da situação o cumprimento teve que ficar para uma próxima oportunidade. Breve, espero.
Depois foi ontem. No comboio para Braga.
Quando dei por mim, acordei da paisagem e voltei-me para o interior do comboio, reparei que à minha frente, dois ou três bancos, iam dois homens, um dos quais eu conhecia. Tinha a certeza, desta vez. Só não sabia de onde. Olhei, olhei, olhei, pensei, de lado era igualzinho... ao Hélder César! O Hélder César foi o meu professor de Português do décimo primeiro - esqueci-me dele no meu post pascal dedicado aos Hélders, mea culpa - até hoje é tratado entre nós sem título porque foi o nosso professor mais jovem, teria uns trinta, trinta e cinco anos, mais não. Fez as delícias das parvalhonas da turma, granjeou ódios de todos os outros, à excepção da minha pessoa. Percebo que fizesse as delícias das meninas porque era jovem e muito conversador, percebo a animosidade - mas não o ódio - dos rapazes porque, talvez da muita conversa: de facto, o professor dizia montes de disparates, absolutamente inqualificáveis Olhe, a menina vai ser padeira, a menina cozinheira - não se vê logo!, o Zé, bispo, a Joana, doutora, e o resto uns tristes, um bando de tristes! - percebo a animosidade - mas não o ódio - da Lena, cuja mãe já o conhecia de outras paragens e homófoba como era, passou esse preconceito à filha. Não percebo, até hoje, muito bem, a minha apatia algo em- ou sim -pática, nem sei bem qual o prefixo, com o senhor. Eles também não. Até hoje. Sabem lá Latim! Eu tive dezasseste a Latim na Faculdade, na Faculdade!, agora essas baboseiras! Verdade, verdadinha, foi o professor mais esforçado e trabalhador, ou que pelo menos deu mostras disso, que eu tive até ao fim da minha escolaridade. Ele era gravações do Sermão aos Peixes a cargo do Ary Dos Santos, ele era ficha informativa acerca do contexto histórico (barroco, Pe. António Vieira, Brasil, Portugal), ele era acetato com o cenário do Auto da índia, ele era ficha de trabalho com os adjectivos que auqlificariam cada personagem, com as partes do sermão, Então e o excerto correspondente?, ele era ficha de avaliação formativa, ficha de avaliação sumativa, ele era questões inteligentes, ele era exigente, ele preparava as aulas como ninguém e os alunos como poucos. Eu gostava dele por isso. Ele era inexcedível. E eu quase. Oh Joana, 19,4 - quase rebentava a escala! Pudera. Com aulas assim! Pensava, mas não dizia, que nunca fui de falar muito e a verborreia das outras já o tinha cansado há muito. Elas perceberam. E como tinham sabido pela Lena de supostos pormenores da vida íntima do professor, prepararam-lhe uma cilada. Os outros foram coniventes: fecharam os olhos. Eu não. Fiz o mais natural. Salvei-o. Por uma unha negra. Com um meneio simples de cabeça. Roubaram-me, perdi, o caderno de História por isso. Como recompensa da boa acção. Não me fez falta. Mantive a excelência. Encontrei-o um Natal no Funchal, anos mais tarde, já andaria na Faculdade, estava com um amigo, Olá professor!, retribuiu-me com o OláJoana! mais reconhecido que tive até hoje. (E as fichinhas informativas e de trabalho serviram-me de modelo no estágio. Sim que eu guardo essas coisas...)
Cada vez me convenço mais de que sou professora porque tive bons professores - boas pessoas, bons profissionais. Oxalá um dia os meus alunos, mesmo que não me cumprimentem, pensem algo semelhante de mim.
(Porque é que agora, de súbito, me aparece um antigo professor a cada esquina?)
Porque é que quando se vai comprar um bilhete de ida e volta para Bruxelas, e se faz um brilharete com os voos, as datas e as horas, decididíssimas mercê de horas de surf na net, melhor: no flytap, a senhora do balcão, perdão: a hospedeira de terra, desfaz-se em gentilezas e salamaleques?
Terá alguma coisa a ver com a terrinha das couves?
Dizia-se ontem em mais do que um serviço noticioso. Crime de fama. Crime de fama. Crime defama. Para mim Crime chega, é suficientemente mau.
Do início: O Tiago - o menino da foto - tem quase dezoito anos e há uns dois que faz parte do elenco dos Morangos com Açúcar. E sim, vejo os Morangos com Açúcar enquanto descacasco uma batata ou faço a salada, bem, sempre que sou eu a fazer o jantar. Porque sim, porque não há nada melhorzinho a dar. Não suporto a Floribella, acho o programa Ecclesia muito parado e o Preço Certo um formato esgotadíssimo - apesar de o Gordo ter piada, verdade seja dita. É claro que os Morangos estão a perder a pouca qualidade que tinham de dia para dia, mas ainda assim... não há miúdo que não mande o seu bitaite à lá morangos e que não espante, vulgo abra muito os olhos, ao ouvir bitaite docente de volta à la Morangos também. Ah!... A stôra também vê!...
Ora o Tiago, neste fim-de-semana, numa discoteca qualquer de Lisboa chamada Loft, depois de ter levado na boa - isso é que tem piada: levouna boa - um encontrão, coisa frequente e portanto normal nestes sítios, foi agredido, várias vezes, com um copo partido para os devidos efeitos no rosto e nas costas, perfazendo este acto horrendo um sem número de cortes, remendados, literalmente, com suturas várias, setenta e dois pontos para ser mais exacta. (Nestas alturas é que a minha mãe põe aquela expressão - que não é sorriso, nunca podia ser, porque o filho dos outros podia ser sempre o nosso - e diz: Eu não vos digo sempre, esses sítios... Por acaso nunca fui a esses sítios, mas os meus irmãos vão, não frequentemente, mas vão, e estão com os amigos e divertem-se, e eu acho bem, muito bem até.
Não conheço o Tiago pessoalmente, mas temos amigos em comum. Já falámos algumas vezes dele, de como tudo começou, do quanto é fácil dar-se com ele, do quanto o miúdo é um FIXE - palavra textual da minha amiga. Parece-me portanto, sempre me pareceu, que o miúdo não é um daqueles a quem a fama subiu à cabeça. Daí também, o absurdo do crime, daí, de alguém ter o tupete de ter feito a cara do miúdo em farrapos só porque sim; daí, de se ter deixado este indivíduo sair do local do crime sorrateiramente e impune; daí, de tanta coisa e de nada, que estas coisas não são previsíveis e, dizem-me, raras até.
Lembra os mais recentes episódios de ataques com cães selvagens ou selváticos ou lá como se queiram designar esses bichos. Lembra também uma crónica do Zé Diogo Quintela que li no Público por essas alturas em que ele defendia uma tese muito interessante, i.e., que o problema não seria a existência mais ou menos doméstica de determinadas raças, pittbulls e rotweilers etc, mas o tratamento que os donos dariam aos seus animais de, vá lá, estimação. Apesar de a crónica ser fraquita - mas nem por sombras pior que o Diz que é uma espécie de Magazine de ontem: Gatinhos, aliquando Homerus dormitat. É pena... - concordo com o Zé Diogo. Os animais são reflexo dos donos, do tempo que estes investem a cuidar deles, nas festinhas, nos jogos, nos passeios, no cuidado com que seleccionam a sua alimentação, na higiene, no companheirismo, no carinho... Digo eu, que peixinhos de aquário é que é, eu que detesto baba de cão, e arranhões, e pulinhos, e vestidos rasgados e mãos lambuzadas e tal, mas que me derreto com a excitação e o reconhecimento com que me recebem sempre e a cada vez os dois cães lá de casa, por muitos meses que se passem desde a última.
Por isso também, chamar cão, comparar sequer levemente a um canídeo, pittbull ou rotweiler, o energúmeno que agrediu o Tiago é uma ofensa para o melhor amigo do homem. Porque só ao indivíduo é imputável a responsabilidade do seu acto. Porque não existem cães cobardes, que eu saiba só mordem e desaparecem - logo a seguir - as serpentes. Porque falta ao cão o que sobeja a este senhor: razão, frieza, calculismo.
Crime de fama. Talvez. Por mim chamava-lhe inveja, despeito, e loucura. E nem isso justifica a atrocidade de que se fala. Também não gostei que me tivessem saído pelo écran fora dois metros de pernas chamados Sabrina - a menina do Festival da Canção - a cantar - benzinho até! - o My heart will go on, sem qualquer tipo de piada ou transformação à la Gato porque as pernas chegariam(!) para Portugal passar à fase seguinte, ontem à noite, quando ainda estava à espera de me rir com o Diz que é uma Espécie de Magazine. Não vou agora por isso partir as pernas à menina, ou melhor esfiapar-lhe as goelitas, porque é um avião e canta. Ou então matar os Gatos, aliava-me à extrema direita e começava ameaças que fazia isto e aquilo, que gato que é gato tem nove vidas, mas eles não e tal... E depois fugia, metia-me no primeiro buraquinho feito ema, ou pior, feito toupeira, porque a ema não esconde a totalidade do corpo.
O amigo conhece a última canção do J.T.? (What goes around, comes around. É a Divina Providência, a Lei do Eterno Retorno, Karma, o que lhe quiser chamar...)
E face a isto tudo a conquista do título pelo meu clube teve um sabor amargo, de modo que arranjar vontadinha para ir até ao Dragão festejar foi absolutamente impossível. Há dias assim.
Eu creio que sim, mas percebo - na perfeição - quem defenda que não.
O post foi hermético, por falta de tempo, por falta de disponibilidade interior para explicar, por falta de vontade também.
Inicialmente tinha escrito "pequenos deuses" para melhor se perceber que era a pessoas que me referia, depois, porém, achei que a minúscula era suficientemente explicíta e foi dessa forma que premi o Publish.
Os meus deuses são basicamente todos aqueles que endeusei, coloquei naquele pedestal da estima, do respeito, da reverência e da consideração, francamente sobre-humanos.
... deuses desses, por muito agnóstico que se seja, teremos todos: aquele amigo, aquele familiar, aquele professor, aquele conhecido ou desconhecido, tanto faz. Pessoas que nos cativam, surpreendem, ensinam, orientam, fazem feliz! Pessoas como nós, mas ao mesmo tempo diferentes, pessoas mais pessoas, mais humanas e mais sobre-humanas - simultaneamente.
É profundamente infantil acreditar-se na perene perfeição dessas pessoas, mas eu sou assim: acredito. Acredito muito. Muito, muito, muito. E quando algo vil, como a idade ou a doença, deterioram-nos a eles e à imagem que deles tenho (ou construí), me demonstrando o exacto oposto, é difícil, é doloroso. O ter que abstrair-me das palavras ditas, provavelmente proferidas apenas e não sentidas; o ter que atribuir a raiva à doença, os impropérios à condição; o ter que fazer ouvidos de mercador ao mesmo tempo que se procuro as palavras mais acertadas, mais racionais, ao mesmo tempo que tento acolher e compreender sem o demsontrar, sem o comprometer.
Ai, acho que quero morrer jovem, pelo menos mentalmente, antes que uma praga horrorosa obstaculize as minhas sinapses e me faça... como o meu deus.
Ontem foi o Dia da Mãe e não estive com a minha. Não é dramático - já aconteceu muitas vezes - e como sempre liguei-lhe e falámos e foi assim, breve, longínquo, saudoso, feliz e triste.
Os meus pais estão no Porto e eu na Madeira. A minha irmã e o meu irmão, os do meio, são finalistas e esta é a semana deles. Foi a minha prenda. Os cães não podem alterar a sua rotina e manda o bem-estar do planeta, que é nosso (são: o bem-estar e o planeta)que as plantinhas continuem a fazer a fotossíntese.
Prenda minha, prenda cara. Custou-me. Muitíssimo. Custou-me muito riscar da agenda, a semana passada, o meu festival de Tunas predilecto, o meu Porto-Nacional no Dragão, o concerto do David Fonseca e o À Manhã do José Luis Peixoto. Custou-me muito, muito, muito, é como se se pedisse secretamente que nenhuma caneta do mundo funcione, que os relógios andem para trás, que tudo seja um engano, um sonho mau e o acordar esteja para muito breve. Não foi, não estava.
Vim mesmo, calhava tudo na mesma semana, tinha que optar, e como os pais são os pais, vim. Cheguei sexta-feira à noite, porque na quinta, como queria a minha mãe, tive que me deslocar a trabalho e porque, partindo eles no sábado ao final da tarde, ia muito a tempo de me familiarizar com a rotina daqueles que estarão, nos próximos quinze dias, ao meu cuidado.
O bom das coisas que nos custam é recompensarem-nos sempre incomensuravelmente. Ontem, por exemplo, quando regava as plantas e me entretia a contar quantas espécies diferentes de flores e cactos e trepadeiras e arbustos e plantas temos (vinte e seis!), descobri uma flor que comprei no Mercadinho da minha Terceira Classe para oferecer à minha avó, a grande impulsionadora do nosso jardim, bem, na realidade do nosso quintal. Pasmei. Emocionei-me. Foi há cerca de vinte anos. E lá está ela, viçosa como no dia em que chegou à nossa casa, e - obra da minha avó - disposta e distribuída por vários vasos. Linda! Tal como a avó de mão verde que guardo na memória.
Não se pode estar na minha casa. A semana toda foi uma azáfama, um sufoco, uma histeria... mas hoje, hoje está pior. Hoje temos/há isso tudo elevado a infinito.
Hoje é o baile de finalistas da minha irmã. Daquela que eu considero a mais equilibrada, mais inteligente, melhor pessoa porque mais completa das três. Será tudo isso, mas não em tempo de baile de finalistas. Foi a comida que durante esta semana foi sempre demasiada - Sim, porque a Liz Hurley não comia nada depois das quatro da tarde para poder caber no vestido do casamento! -, foi a água que durante esta semana nunca foi bastante - andou sempre com uma garrafa de dois litros e meio atrás, foi aquela borbulha que apareceu e que instalou o caos e o drama - Estás a ver, só a mim! -, é o pessoal que já marcou o cabeleireiro há séculos e ela só esta semana teve tempo para isso, é a extensão que tem que ser da cor do vestido, são os brincos, é o anel, é o terror de se o penteado que imaginou não for exequível, não sabe o que fazer... é... é... é...
-Estás a exagerar, oh então, já pareces eu! (Coisa rara, quase inédita, parece mesmo eu!) Mas olha que nem eu entrei em tamanha agitação com o meu baile.
-Pois não, se calhar é porque não foste ao teu, remember?
-Ah pois é, não fui. (Resposta acompanhada do sorriso mais amarelo do universo antes de me calar e vir para cá).
E porque não fui? Bem, por uma série de razões: era a melhor aluna do curso - o que quer dizer que toda a gente me olhava como "A" ave rara lá do sítio, perdão curso e não se quer esse tipo de "anormalidades" nestes eventos; depois nessa altura não tinha com quem ir - leia-se não tinha acompanhante; as minhas amigas não iam (e tinham acompanhantes); impunha-se que perdesse imenso tempo útil com superfialidades que não colhiam, pelo menos nessa altura.
Mas apesar disso tudo, agora, cinco anos depois, até entendo a minha irmã e chego a deliciar-me com a agitação, dá-me mesmo um certo gozo vê-la desdobrar-se em múltiplas tarefas e contactos para que tudo saia na perfeição.
(Cá entre nós, vai sair mesmo e ela vai... deslumbrante!)
A Isabel faz anos hoje: mais um que eu, sete dias exactos depois do meu.
Conheci a Isabel no meu primeiro ano da Faculdade, no Lar. Era uma miúda discreta, cheia de problemas pessoais, mas amorosa, e surpreendentemente boa gente. Demo-nos imediatamente bem. Estávamos ambas longe de casa e a enfrentar uma realidade avassaladora e difícil numa idade não menis fácil. Isto apesar de ela viver no concelho de Braga e portanto ir a casa aos fins de semana e de frequentar a Universidade estatal que não era a minha.
Lwmbro-me de ter chegado a passar fins de semana a casa dela nesses primeiros anos e de me ter sentido quase em casa - coisa difícil! - como nós elas também eram quatro, como a nossa a mãe dela também passava a ferro ao sábado à tarde, como o nosso o pai dela também ia às compras depois da missa... era engraçado! E depois o exteriorizar uma os pensamentos da outra, ou por outra, admito, o adivinhar ela sempre os rapazes em quem eu estava interessada, porque... "Porque só podia, é tão a tua cara!" "É nada." "É, é...". Era.
Depois eram os trabalhos das pedagógicas dela, porque os cursos de ciências também têm pedagógicas, que eu corrigia, as convocatórias para a turma dela que eu redigia, a companhia que ela me fazia nos meus serões de estudo silencioso, individual - às dez da noite acaba o barulho no Lar, a companhia que me fazia nas minhas saídas, as brincadeiras ao almoço, as graçolas ao jantar, o silêncio ensonado ao pequeno almoço... Entretanto, o pai dela faleceu, de uma morte estupidamente súbita, toda a família se ressentiu muitíssimo disso e lhe apontou o dedo. Era a culpada. Se não tivesse namoriscado não sei com quem às escondidas, se não tivesse sido descoberta, se ele não fosse assim, se ela não fosse assim, se ela não tivesse mencionado o nome dele nessa noite ao jantar, se..., se..., o coração do pai não teria falhado a meio da noite. Consolei-a como pude, não o suficiente. Mas éramos amigas e é isso que se espera dos amigos nas horas más: consolo. E apoio, em todas as horas.
Éramos inseparáveis e fosse pela rotina tão diversa de cada uma, fosse pelas áreas de interesse e/ou de estudo, não me tinha apercebido bem disso. Mas só até ao meu terceiro ano.
Esse foi o ano em que a minha amiga Isabel despareceu, obliterou-se. Nessa altura também, a minha até então colega de quarto saiu do Lar e coube-me em sorte uma caloira. "Vá lá Joana, ninguém melhor que tu para a receber e facilitares a integração dela, já passaste por isso..." As intenções da Directora era boas, as minhas também. E foi assim, naturalmente e na paz, que recebi a Ana Sofia no Lar, no meu quarto, no meu grupo de amigas...
Apesar de me acontecer algumas vezes, ainda não percebi por que razão, quando alguém me quer contradizer, não o faz abertamente, directamente. Enfim... Foi isso. De início era o despertador que a incomodava, soube-o por toda a gente excepto a própria, depois, depois era o meu madrugar - deveria pedir-lhe desculpa por ir às aulas?! - depois era o espaço que a minha roupa ocupava, depois era porque não lhe dei a escolher a cama - bem, por acaso já lá estava há três anos! - depois, era eu. No fundo desde o início era eu o problema: eu era arrogante, convencida, cheia de mim, supostamente melhor que todos, o modelo, o exemplo, a querida da Directora, a querida das outras... - bem, mea culpa, também não tinha dado por isso.
Não sei bem como é que ela fez, mas de um momento para o outro era a melhor amiga da minha melhor amiga - a Isabel, que já não me fazia companhia ao serão - estava cansada, nem nas saídas - tinha outros compromissos, nem às refeições - "... desencontrámo-nos, foi isso, não exageres Joana!"
Custou-me, mas fiz o que costumava fazer até então com os meus próximos, lutei, lutei muito para esclarecer os embróglios diários surgidos sei bem de onde, para clarificar situações, justificar episódios, enfim... para conservar uma amizade já demasiado fragilizada pelo tempo e sobretudo pelas pessoas. De nada valeu, obviamente. A Isabel era demasiado boazinha, acreditava em tudo o que lhe diziam e foi assim que de melhor amiga passei a arqui-inimiga da minha melhor amiga. Se calhar é por isso que desde então, sou apologista da liberdade, dou-a em pleno à totalidade das minhas relações, não digo, não faço, não pergunto, não controlo, não pressiono, não espero, não luto também.
Entretanto, fiz o que achei que devia fazer: andei com a vida para a frente, ou fugi para trás - como se queira entender, fui para Paris ao abrigo do Erasmus, exactamente no ano seguinte a esta Primavera de cortar à faca como foi desde então designada no Lar. Regressei no segundo semestre, de cabeça fria, dava-lhes os bons dias apenas, mas sempre, e nunca mos retribuíam, no ano seguinte a Ana Sofia e a Isabel saíram do Lar - foram morar juntas e nunca mais soube delas, excepto uma ou duas vezes, anos mais tarde, em que as encontrei numa ou outra saída e em que voltei a cumprimentá-las, recebendo o mesmo tipo de resposta, silente.
Encontrei há tempos a irmã mais nova da Isabel na Faculdade da minha irmã, correu para abraçar-me, a Martinha, e conversámos e rimos normalmente, como se eu ainda fosse a amiga madeirense da Isabel que naquele primeiro fim de semana a ouviu falar dos vestígios do vulcanismo existentes na Madeira - a Martinha é - sempre foi! - um géniozinho. A minha irmã dispôs-se a ajudá-la no que fosse preciso (sebentas, apontamentos, exames), afinal estão ambas no mesmo curso e eu mandei beijinhos à família toda.
Faz anos hoje, a Isabel, mais um que eu, sete dias exactos após o meu.