quinta-feira, maio 24, 2007

Aluno és, professor serás...

Primeiro foi na Madeira. Há duas semanas atrás.
Os meus pais tinham chegado no Domingo à noite. Na segunda, livre (de tarefas domésticas, i.e. regar plantinhas e alimentar cãezinhos) como um passarinho, acordei a horas indecentes, almocei à hora certa, levei a minha mãe ao emprego - deixei o meu pai a recuperar do voo tardio, perdão: a fazer a sexta que para ele o tempo ainda era de férias, e não sucumbi ao ímpeto consumista. A culpa é da quase contiguidade geográfica entre o colégio onde a minha mãe trabalha e o Madeirashopping. A culpa também é do acaso e do calor e dos gonzos do portão e da minha má sorte que, todos juntos, me forçaram à reclusão nos últimos três dias de solitude (uma solitude boa, muito boa por sinal). O portão dilatou, os gonzos também, o portão descaiu, os gonzos não, a língueta emperrou, o resto (do lado de fora) parece, para meu mais completo desassossego, que também, mas se calhar não. Valeu-me nesse dia fatídico o conhecimento geográfico da minha mãe que desde o Porto me orientou de uma viela escusa bem ao pé de casa até a mesma.
Justificada a ida ao shopping, prossigo, périplo pelos sítios do costume, poucos, um só, agora que há Fnac na Madeira. Fnac. José Luis Peixoto, como de costume. Banquinho do costume. Cemitério de Pianos, lindo, lindo, lindo, quase quase no fim - por isso é que acordei - quatro, quatro da tarde? Quatro da tarde. A tarde já no fim. Perdida? (Bem... cinema?) Ganha? (Cinema: The Painted Veil - última semana, de certeza) Ganha. Definitivamente muito, muito ganha.
Bilhete vendido pelo "fuinha" do sítio, segundo os meus irmãos, que na minha opinião, muito pessoal, trata-se de um rapaz adorável: sorridente, simpatiquíssimo, sobretudo muito profissional, que me coloca sempre no mesmo lugar, na mesma fila, desde a primeira vez. Todas pessoas que trabalham em qualquer serviço de atendimento ao público deviam ser assim. Com toda a gente, com toda a gente, não é só com a menina Joana CGJ!... - costumam dizer os meus irmãos. (Então, queriam saber o meu nome todo?!) Com toda a gente. - digo eu, também.
Lá dentro, uma meia dúzia de pessoas. De meia idade. E eu. Um homem apenas. De meia idade. Com uma senhora. Subo até meio, mais de meio. Noto a faixa etária dominante, reparo no homem, na mulher que está com ele, familiar, olha muito para mim também, mas não esboça qualquer reacção, olho para o outro lado duas mulheres, de meia idade também, o mesmo olhar fixo em mim por parte de uma delas, fixo, mas sem reacção, enigmático, entro na fila, sento-me penso nas duas, fecho os olhos, vejo-as, conheço, não conheço, quem são. O filme começa, um filme maravilhoso, de uma cenografia extasiante, uma selecção musical deliciosa e um desempenho por parte dos actores (Naomi Watts, Edward Norton) que faz jus à obra. O Véu Pintado é um dos livros outrora menos conhecidos de William Sommerset Maugham, agora do domínio público (nos EUA, pelo menos) graças ao filme. A meio do filme, não me lembro ao certo em que parte, fez-se luz, eureka!!!, foram minhas professoras!!!
Foram minhas professoras. As duas. No Secundário. A primeira que o meu olhar encontrou, a Dra. Inês Clode, de Português, era conhecida, entre nós, pela frequência com que, quando analisávamos Os Maias, no 12º ano, dizer com sinceridade, a cada passagem(!) Isto é delicioso! Ah, isto é delicioso! Era mesmo. Ainda é. Delicioso. Adorava-me. Joana, se não vai para Letras, o país fica mais pobre. Ouça bem o que lhe digo. A outra, a Professora Lígia, de Francês e TTF (técnicas de tradução de Francês), era, entre nós, a vite-vite - a alcunha saiu primeiro da gavetinha do inconsciente que o nome próprio, admito. Joana, a Joana escreve-me ao coração. Ora leia outra vez, não, não leia, senão não temos tempo!.... A senhora fazia tudo muito rápido: a entrada na sala, o cumprimento, o sumário, a exposição da matéria, a audição de música francesa, os esquemas no quadro, o apagar o quadro, o abotoar o botão da blusa, o puxar o fecho da saia, o voltar a apagar o quadro. Era de uma vivacidade francamente invejável!
Esqueci por momentos o filme por causa desta mesma situação. Três mulheres, três professoras. Duas de meia idade, uma jovem. Um filme. Uma história de Amor. Um livro. O Maugham. Porque é que eu estava ali? Por ser mulher? Por ser professora? Por gostar de ler? Estaria ali por elas? Há cerca de dez anos que não as via, mas teria o trabalho delas sido tão eficiente ao ponto de me ter colocado ali. Que bom seria! Por outro lado, conheço a obra do Maugham (quase toda!) há muito pouco tempo, há meses, por recomendação de um amigo muito querido, mas recente também.
Voltei ao filme. Lindo, lindo, lindo e catártico. Triste, no final portanto, como é típico no Maugham. No fim, quando ia a correr para as apanhar no corredor, fico sempre até acabar a música porque ainda estou a pensar em tudo do filme e já é hábito, toca-me o telemóvel e dada a urgência da situação o cumprimento teve que ficar para uma próxima oportunidade. Breve, espero.
Depois foi ontem. No comboio para Braga.
Quando dei por mim, acordei da paisagem e voltei-me para o interior do comboio, reparei que à minha frente, dois ou três bancos, iam dois homens, um dos quais eu conhecia. Tinha a certeza, desta vez. Só não sabia de onde. Olhei, olhei, olhei, pensei, de lado era igualzinho... ao Hélder César! O Hélder César foi o meu professor de Português do décimo primeiro - esqueci-me dele no meu post pascal dedicado aos Hélders, mea culpa - até hoje é tratado entre nós sem título porque foi o nosso professor mais jovem, teria uns trinta, trinta e cinco anos, mais não. Fez as delícias das parvalhonas da turma, granjeou ódios de todos os outros, à excepção da minha pessoa. Percebo que fizesse as delícias das meninas porque era jovem e muito conversador, percebo a animosidade - mas não o ódio - dos rapazes porque, talvez da muita conversa: de facto, o professor dizia montes de disparates, absolutamente inqualificáveis Olhe, a menina vai ser padeira, a menina cozinheira - não se vê logo!, o Zé, bispo, a Joana, doutora, e o resto uns tristes, um bando de tristes! - percebo a animosidade - mas não o ódio - da Lena, cuja mãe já o conhecia de outras paragens e homófoba como era, passou esse preconceito à filha. Não percebo, até hoje, muito bem, a minha apatia algo em- ou sim -pática, nem sei bem qual o prefixo, com o senhor. Eles também não. Até hoje. Sabem lá Latim! Eu tive dezasseste a Latim na Faculdade, na Faculdade!, agora essas baboseiras! Verdade, verdadinha, foi o professor mais esforçado e trabalhador, ou que pelo menos deu mostras disso, que eu tive até ao fim da minha escolaridade. Ele era gravações do Sermão aos Peixes a cargo do Ary Dos Santos, ele era ficha informativa acerca do contexto histórico (barroco, Pe. António Vieira, Brasil, Portugal), ele era acetato com o cenário do Auto da índia, ele era ficha de trabalho com os adjectivos que auqlificariam cada personagem, com as partes do sermão, Então e o excerto correspondente?, ele era ficha de avaliação formativa, ficha de avaliação sumativa, ele era questões inteligentes, ele era exigente, ele preparava as aulas como ninguém e os alunos como poucos. Eu gostava dele por isso. Ele era inexcedível. E eu quase. Oh Joana, 19,4 - quase rebentava a escala! Pudera. Com aulas assim! Pensava, mas não dizia, que nunca fui de falar muito e a verborreia das outras já o tinha cansado há muito. Elas perceberam. E como tinham sabido pela Lena de supostos pormenores da vida íntima do professor, prepararam-lhe uma cilada. Os outros foram coniventes: fecharam os olhos. Eu não. Fiz o mais natural. Salvei-o. Por uma unha negra. Com um meneio simples de cabeça. Roubaram-me, perdi, o caderno de História por isso. Como recompensa da boa acção. Não me fez falta. Mantive a excelência. Encontrei-o um Natal no Funchal, anos mais tarde, já andaria na Faculdade, estava com um amigo, Olá professor!, retribuiu-me com o Olá Joana! mais reconhecido que tive até hoje. (E as fichinhas informativas e de trabalho serviram-me de modelo no estágio. Sim que eu guardo essas coisas...)
Cada vez me convenço mais de que sou professora porque tive bons professores - boas pessoas, bons profissionais. Oxalá um dia os meus alunos, mesmo que não me cumprimentem, pensem algo semelhante de mim.



(Porque é que agora, de súbito, me aparece um antigo professor a cada esquina?)

5 comentários:

100 remos disse...

Adorei este texto. Efectivamente há professores que nos marcam e nos iluminam. É o que tento fazer todos os dias.Dar um pouco da luz que me foi concedida.
Dar-lhes um pouco do meu apetite pelo saber, pelo sentir, pelo questionar. E ainda hoje saboreio o Eça que me foi servido por uma das professoras que me marcaram.

Rosario Andrade disse...

Ola!
Curiosamente nao me lembro dos nomes dos meus professores. Sempre fui muito má com nomes, e muito distraida. Lembro-me dos rostos mas nao dos nomes...
O texto está fabuloso!

Bjicos

Joana disse...

Os professores são essenciais, não à formação do carácter, que essa já devia vir de casa, mas à formação na(s) humanidade(s) no saber, no conhecimento, na cultura. Os nomes pouco interessam (se soubessem o tempo que andei às voltas para me lembrar desses três (nomes)...!)

Quanto ao resto, são tão simpáticas... ai, ai, assim ainda acredito! Eheheheheh!

Jinhos.

Anabela disse...

Aparece-te um antigo professor a cada esquina...

Bom, das duas, três.

Ou também tu já estarás antiga,

Ou andas a ver fantasmas,

Ou andas a escolher a dedo as esquinas.

lolol

Joana disse...

Anabela,

Estou antiga (e por isso ou talvez por culpa própria - ehehehe - a minha sanidade mental já não é o que era). :)

"esquinas" - o que é isso? :P

Jinhos.