segunda-feira, abril 14, 2008

Lá fora os dias eram de Verão, férias, Agosto em pleno, roupas de cores garridas, gelados e gargalhadas fáceis. Lá dentro não. O ar condicionado forçava o uso de casaco e kispos, que ninguém suporta dezasseis graus de vestidinho, as pessoas muito concentradas nos livros, o silêncio sepulcral, a persistência constante, a determinação inabalável, a entrega, sobre-humana, total. Em nenhum lugar do mundo se estuda tão bem como na Biblioteca de uma (qualquer, suponho) Faculdade de Medicina. A minha irmã estudava para uma melhoria e partilhava a sua enorme secretária comigo. Ao contrário dela, eu estudo non-stop, especialmente de manhã, não necessitando de qualquer tipo de pausa, impressionantemente... nem para respirar desabafa com toda a gente, a minha irmã. Foi numa das pausas dela que aconteceu. Eu estava a milhas embrenhada nos labirínticos diagramas que a gramática cognitiva utiliza para descrever a causalidade, quando sobressaltam duas mãos muito frescas que me tapam os olhos com extremo cuidado e que vêm acompanhadas de um "Há quanto tempo!" muito afável.
Tinha um problema. Mais ou menos sério, dependendo do meu interlocutor, mas ainda assim um problema. Não era a minha primeira vez por ali, no entanto, conhecia apenas duas ou três pessoas, os colegas e amigos da minha irmã que calhou encontrarmos nos corredores das vezes, poucas, que lá tinha ido, aquela voz (e aquelas mãos) definitivamente não conhecia. Os dois segundos ou três que isto durou passaram, naturalmente, e eu não sei que cara fiz quando ele retirou as mãos, mas ele diz, ainda agora, que passou a maior vergonha da vida dele. Ficou tão constrangido, sem tecto, sem palavras, sem chão, e eu ri-me - percebi logo o que tinha acontecido – e, por isso, tratei de lhe dizer o mais imediatamente que me foi possível que a Teresa estaria de volta daí a nada. Atrapalhou-se nas desculpas, que somos iguais, mas não, nem por isso, que o cabelo é igual - não é, mas está bem, “a cor, a cor pode bem ser igual, a genética deve explicar isso, não?” E pronto, acalmou, sorriu, desculpou-se pela enésima vez, despediu-se e voltou ao estudo. Logo, logo a Teresa regressou dos confins do corredor e da pausa, esta, para mim, muito maior que todas as outras, logo, logo também ele veio, “porque tinha que explicar, se não, a tua irmã fica a pensar que aqui na Faculdade somos todos tarados, e ainda pede uma providência cautelar que impeça de me aproximar num perímetro de 150 metros, como nos EUA, ou tu, Teresa, nunca mais a trazes cá...” E rimo-nos e fomos todos almoçar.
Continuei a ir para lá nos dias seguintes, ele não. Depois, meses depois, exames e melhorias feitos, encontrei-o novamente e apesar de o “Olá!” dele ter sido nitidamente forçado, a conversa que se seguiu foi afável. Como é que eu posso explicar que apesar de muito tímido, de ter uma série de problemas pessoais, familiares e académicos verdadeiramente incompreensíveis, e das circunstâncias em que nos conhecemos não terem sido propriamente propícias a uma convivência descomplexada, ele seja muito naturalmente afável? Possivelmente por isso me convidou para o seu aniversário, mais de meio ano depois, e eu não quis ir, porque não éramos propriamente amigos e porque onde se juntam dois ou mais médicos (ou alunos de Medicina, a diferença, no caso, é muito pouca!) só se fala de Medicina, e os porques não me valeram de nada porque a minha irmã tinha outro compromisso mas uma prenda para ele que era imperioso que alguém, eu, lhe desse, que ela ia lá ter no fim, se lhe fosse possível, quase de certeza que não era, que isto, que aquilo... Fui. E, coisa rara, atrasei-me, e ao chegar tapei-lhe os olhos e ele obviamente soube que era eu, não pelo gesto, mas porque já lá estava toda a gente, excepção feita à minha pessoa. Foi a minha vez de passar pelo constrangimento. “Ficamos quites, então!” Ficámos. E amigos também. (Desde então sem constrangimentos.) Ele, nem sei bem como, leva-me aos locais mais espantosos: aos restaurantes mais simpáticos, às mais deliciosas pastelarias, aos sítios mais bonitos que, só graças a ele, conheço. Tem o dom de pôr em tudo o que diz e faz o mesmo cuidado com que me tapou os olhos daquela primeira vez. O Filipe faz anos hoje. Vinte e sete.

1 comentário:

Ouriço-Cacheiro disse...

Há pessoas assim... nossas.