sábado, janeiro 24, 2009

Fui vigiar um exame a uma pessoa com a tua cara

Fui vigiar um exame a uma pessoa com a tua cara. Ontem. Fui vigiar um exame ao primeiro ano de uma cadeira do meu Orientador. Ontem. Ontem, quando a minha manhã começou seis horas depois do habitual de todas as manhãs. Ontem, quando eu tinha o tarde a que me deitei estampado no fundo dos olhos. Ontem. Ontem, fui vigiar um exame a quarenta e uma pessoas: quarenta e uma caras; dois bonés que permaneceram na cabeça as duas horas e meia; uns boxers do Nemo a saltar de uma cintura desaparecida, um par de phones que não queria sair dos ouvidos respectivos; oitenta e dois olhos a quererem ser mais para a esquerda e para a direita, para trás e para a frente, antes de eu distribuir os enunciados e a ditadura joanina - com um sorriso; uma cara, a tua, ontem.

Fui vigiar um exame a uma pessoa com a tua cara. Ontem. Nunca teria reparado na tua cara ali, se quem a tem não me tivesse agradecido o enunciado. Ou a ditadura com sorriso. Quarenta e uma pessoas, dois bonés, uns boxers do Nemo, um par de phones, um obrigado. Um obrigado com a tua cara.

Fui vigiar um exame a uma pessoa com a tua cara. Ontem. O outro colega vigilante sempre no estrado. Fui para onde gosto de os olhar: o fundo da sala. Já tive aulas naquela sala. Já dei aulas naquela sala. De todas as salas, qualquer sala, o fundo para os olhar. Muito quieta, toda olhos, fiquei à espera. No fundo da sala. Toda olhos à espera. Da altura dos suspiros, da hora daquele soprar para o lado que faz esvoaçar as franjas, do trocar de pernas indeciso, do remexerem-se nas cadeiras, de..., nada. Nada. Nada. Nada. Das duas uma: ou tenho muito jeito para as ditaduras, agora têm medo de respirar, ou esta gente não é feita da mesma massa que - pensei, enquanto deambulava por entre Puccas e a tua cara. A tua cara. Em partes: não os olhos, não a boca, não de todo o nariz, as sobracelhas talvez, as sobrancelhas, não, mas a tua cara, a tua cara numa outra cara. Baixa as duas horas e meia, obscurecida de luz pelo nervoso miudinho todo o tempo, a tua cara ali numa outra, aquele rosto anguloso, clássico, a tua cara, que não se deixou repousar no meu olhar senão no obrigado e no adeus. A tua cara, ali.

Fui vigiar um exame a uma pessoa com a tua cara. Ontem. E pus-me a pensar no tempo. No deles, no nosso, no meu. Alguma vez, outrora, agora. Pus-me a pensar no tempo. Em como cria espaços, quanta Pucca, meu Deus!, falhas, dois bonés, uns boxers, um par de phones, em como gera o vazio. Em como enfraquece o entendimento. Mea culpa. Em como o sentimos passar: rápido, se estamos velhos; devagar, se, aqueles quarenta e um, novos. Fui vigiar um exame a uma pessoa com a tua cara. Ontem. E não consigo deixar de pensar por que me apareceste ali, ao fim de tanto tempo, Luís.

6 comentários:

Oásis disse...

AHAHAHAHAHAHAH!

Ainda me estou a rir só de imaginar os boxers do Nemo!

Jinhos.

Joana disse...

Marisa,

Azuis escuros em fundo, milhentos Nemos all over the place!

(fofinhos até, confesso, mas... no meu tempo... cof, cof, no meu tempo...)

:P

Jinhos.

Rosario Andrade disse...

... e não te saiu uma gargalhada daquelas?... ehehehe!

(a Jazzy já esta boa!!!!!...genes portugueses! :-)

Beijicos

Ouriço-Cacheiro disse...

há caras que nos reaparecem assim, após muito tempo, sem querer...
Adorei, aliás como sempre...

intruso disse...

:)


os 'obrigados' (e outras palavras que tais) por vezes ganham a forma de uma cara do passado
(uma espécie de eco visual,
uma coincidência inesperada)


[do Nemo?!?
risos]


beijo

K. disse...

Acontecem coisas estranhas, de vez em quando. Essas caras normalmente voltam a mim em sonhos, em situaçoes entre o bizarro absurdo e o comovente desesperado. Sonhos em que essas caras voltam, tantas vezes iguais, sem sinais da passagem do tempo. Caras que foram, em momentos que só eu sei, a ilusao da juventude eterna, da amizade incondicional, do amor. E voltam, nao sei porquê. E emocionam-me, e dao-me medo ou pena, porque sao caras que já nao sao como me aparecem, ou já nao existem, e no entanto sim existem e existirao enquanto eu as sonhe e as recorde. E de tudo o que a vida varre da memória, dos milhoes de segundos que se vao evaporando na roda infernal do tempo, desejo nunca esquecer essas caras. Todas elas, e cada uma, foram o rosto da alegria.