quarta-feira, janeiro 21, 2009

Sem palavras

Houve um tempo em que ele vinha.

Nesse tempo, remexia as estantes, os livros, os livros das estantes; nas estantes compunha, descompunha, repunha. Muito, sempre. Sempre até se cansar, ou até achar que bastava. Sempre até achar, querer olhar, janela fora. Postava-se à minha frente para olhar a rua da minha janela. Muito direito, esticadinho, ver-ti-cal, tirava-me a luz do dia, dava-me outra, para olhar janela fora. Olhava muito, sempre. Sempre até se cansar, ou achar que bastava, e pôr, compor, descompor, repor os livros da exposição. Não dizia palavra, dizia tanto, não dizia palavra, nunca. Olhava. Só.

Nos dias em que calhava não estar por perto, e eram muitos às vezes, por dá cá aquele livro, por... quê?, na-da, por nada, vinha cá acima olhar sala fora, olhar: -me, a sala, os livros, as estantes, a janela, a exposição... Olhar só. Do cimo das escadas, olhava como se deve olhar sempre. Só. Sem mais. Vinha cá acima para olhar sem mais. Dali, dele, nunca, nenhuma palavra. Todo olhar.

As palavras estragam os laços. As palavras estragam os laços que começam nos olhos. As palavras ditas desfazem os laços. Desfazem. Descobrem. Destroem. Desatam. Os laços.

Devíamos ser mudos. E surdos. Todos, à nascença. Devíamos ser olhos e mãos. Só. Devíamos dar palavras de comer aos peixes. Todas as palavras. Sempre. Até não haver o que dizer. Até não haver mais o que dizer. Até só restarem palavras de mãos e palavras de olhar. Olhar, sobretudo. Olhar. Só.

Agora, neste tempo que não há, mas é, é ela que vem. Agora é o tempo em que ela vem. Remexe as estantes, os livros, os livros das estantes; nas estantes põe, compõe, descompõe, repõe. Cirandea muito, sempre. Exactamente como ele. Todos os lugares, cada paragem. Toda olhar. Mas não como ele. Olhar só. Como ele, nunca. Até vem à minha janela, até ajeita a exposição. Até se posta à minha frente, cega para a rua: posta-se à minha frente para me olhar. Até me sorri. Para me olhar por fora. Até é o sol que não faz, a chuva e o frio lá fora, a janela que eu posso abrir, se quiser – está tão abafado, não acha? Para me olhar de viés. Até é a última requisição – não é para si, não? ... como se chama?. Para me olhar por dentro. Até. Neste tempo que não há, mas é, ela é um chorrilho de palavras rasgadas de um sorriso em forma de olhar que não o é, um olhar terrível, de... selva.

A vida leva-nos por caminhos estranhos. A minha, por agora, para longe deste tempo. Sem palavras.

4 comentários:

Anónimo disse...

Adorei Joana! É isso mesmo, as palavras estragam os laços. falamos de mais. comentamos demais. mesmo de forma ingénua, não é preciso. basta os olhos as mãos os livros e o coração!
Passeio várias vezes no teu blog e acho q escreves muito bem. Continuares a "organizar" a tua escrita no blog e a "espreitares" os outros, por que não? é apenas uma fatia do teu tempo. tu vives bem o tempo e as diferentes "fatias"!
Gostei mto do nosso almocinho vegetariano no dia a seguir de vires da Madeira!
Beijinho

Joana disse...

Vania,

Eu também gostei muito do nosso almocinho vegetariano, do nosso jantarinho portuense, de tudo, da tua clarividência a tantos níveis, de ti!

Temos que repetir! :))))))))))))))
Vou ver o que se pode fazer a 31. ;)
Essa mão, que tal?


Jinhos.

Oásis disse...

JJ:

Chegou o tempo de criar um cantinho Zen ;)

Criaturas que querem dizer coisas más com o olhar impedem o chi de circular...

Jinhos gandes, gandes!!!

K. disse...

Sim, a vida leva-nos por caminhos estranhos. Mas uma jornada de mil milhas começa com um simples passo. Só entendemos as coisas passo a passo, e o único tempo que nao se nos escapa é o do momento presente. Eu sei que o vives. Beijo.