terça-feira, outubro 13, 2009

I Garibaldi dopo Garibaldi

Quando há um terramoto, um tsunami ou uma catástrofe afim no Pacífico, a minha mãe diz sempre mas porque é que as pessoas vão para lá viver?, e eu digo as pessoas não vão para lá viver, as pessoas vivem lá, porque nasceram lá, porque os pais já lá viviam, porque é a terra delas, porque não querem, não concebem sequer, sair, conhecer, ver diferente. Digo eu, que sou a pessoa mais 'sem-terra' que conheço... Digo sempre as minhas casas, quando me perguntam, respondo naturalmente o meu país, a minha terra - até digo a minha terra, realmente! - mas não no sentido de lhe pertencer, nunca no sentido de lhe pertencer, mas mais no sentido em que as minhas raízes estão lá, quem importa está lá, no obscuro sentido de a ter inscrita em mim, de a possuir como predisposição de existência, como se possui um braço ou uma fome, uma condição de antes de tudo, uma natureza, uma coisa sem perguntas nem diligências, uma ontologia.

Nos EUA é mais fácil ser da Madeira do que de Portugal. Toda a gente sabe onde fica a Madeira, conhecem o vinho, coisas que vêm desde o Dia da Independência - pelo menos!..., sabem de quem já a visitou em cruzeiro, de quem lá passou a lua-de-mel, a conversa flui, Madeira, a marca, de boa saúde e recomendável para o fluir da comunicação. Estabelecer um nexo entre a Madeira e Portugal, falar de Portugal, é uma aventura - no sul da Europa o mundo conhecido é a Península Ibérica, um sinónimo, the pompous name for Spain, right? Pois... Nem por isso.

Mas o desconhecimento não me ofende, nunca me ofende, ofenderá a minha mãe, o meu pai, algumas pessoas que conheço, todas as pessoas que têm uma terra uma terra no coração; eu, que tenho tantas, relativizo, faço por relativizar. Sou a rapariga vitruviana, o senhor da Vinci não há maneira de passar de moda - o Homem sempre no centro parece-me garante de uma sociedade mais igual, mesmo na diferença, porventura sobretudo nas diferenças, e portanto mais justa. Sou a rapariga das sinergias, sê-lo-ei sempre, do cosmopolitismo, da meritocracia, da heretogeneidade na homogeneidade, coisas maiores, mais sãs, que o que conheço, de tanto passar os dias a olhar, da minha janela que dá para a rua. (Tenho uma vizinha assim, à janela, desde há trinta anos pelo menos.)

Janelas. Um dia abro uma porta antiga e escrevo um livro sobre janelas. Nada há de mais importante na vida do que a janela que se abre. A vida da janela, a vida pela janela. Sempre que chego é de avião e ao início da noite. Sempre que penso nisso sobressaltam-me imagens vivas, mas sempre iguais, dessas chegadas. Chego, muito colada ao assento, muito costas pregadas às costas da cadeira, muito solícita, muito solidária - solitária em ambas as bem-aventuranças -, que aos meus companheiros de viagem nunca calham janelas, e eles que são novos e curiosos, forasteiros, eles que esticam olhos e pescoços até à escoliose pela nesga de janela que lhes facilito. Eles, pasmos - todas as interjeições da língua a suarem a janela; eu, cansada, com sono, a ilha iluminada a entrar-me no olhar velho, eu a pensar se esta é uma das vezes em que tenho os pais à espera, ou se é o costume - espero pelos meus pais -, a ilha toda brilho, toda luz, muitas luzinhas fixas, certas, a desenharem-lhe o recorte, a preencherem-lhe a superfície, eu a levantar-me, a querer empurrar gente, a querer chegar a casa, eu a empurrar gente com os olhos, a pensar no computador que tenho de tirar de cima, e o que pesa na mala!, não esquecer o casaco e o sorriso à chefe de cabine antes de descer as escadas, eu a descer as escadas e a entregar-me toda, eu a desistir de toda pressa, toda a saudade, todo o cansaço.

Eu a render-me à ilha. À humidade, ao calor, à indolência, e a outra coisa qualquer, poderosa e subjugante, que não sei nomear, só sinto - cola-se ao corpo... -, que é ser aqui, estar aqui, viver aqui. E estranho as coisas, as pessoas - a maneira como funcionam as pessoas, o que intentam para para as coisas. Volto a andar de autocarro, os olhos do motorista em mim, na estrada, em mim, eu a pensar no metro do Porto e nos comboios para Lisboa, transportes públicos sem motoristas à vista, eu a tocar à campainha, plim-plim, o motorista a querer não ouvir, o motorista a conseguir não ouvir, a prosseguir, a deixar-me na paragem seguinte; vou às compras, sabendo bem o que quero, sabendo bem onde encontrar o que quero, facilitanto a procura, as referências todas, agilizando em condições normais a compra, a menina fica baralhada, a menina paralisada, a menina a ir lá dentro perguntar como procurar com referências, normalmente as pessoas não vão ao catálogo, a menina a perguntar à colega, a menina a demorar, eu a soprar para o lado; ando de teleférico, sento-me ao lado de um adolescente que, sem avisos, pretende um banco só para si, não me querendo encolher, olho-o nos olhos ao sentar-me, olho a perna quase cruzada a ocupar 50% do meu assento, tento ajeitar-me, repito o olhar várias vezes, simplesmente não quer saber. Volto a ver cada chegada - a ilha, perfeita, toda brilho no meio de um negro de mar sem fim, começo a ter medo ao pensar no quanto se vive por cá a perfeição única deste mundo de brilhos sobre um azul imenso - quanto mais pequena a janela, mais ilusória a óptica.

Aqui é assim. Acontecimentos naturais, se forem inesperados, se forem extraordinários, galvanizam-se - um maremoto de reacções, a crescer, a crescer, a crescer, em proporções absolutamente desajustadas da realidade, um tsunami a não querer desmaiar na areia do quotidiano pacífico da ilha. Eu a perguntar à minha mãe então porque vive aqui?, a minha mãe a dizer que esta é a sua terra, que já os seus pais, que os tsunamis daqui são os tsunamis daqui, nada a ver, que a falha do Pacífico sul fica no Pacífico sul. Eu a rir-me até não poder mais por me doer tudo. Gosto de terramotos e tsunamis tanto quanto gosto de tempestades e trovões. A redenção e aquela certeza confirmada, rara, de nos sobressaltarmos, de nos sabermos vivos num raio de luz.

E foi assim que andei na net à procura de heróis, de um herói que não jogasse futebol, nem tivesse uma estrela no passeio da fama, nem mergulhasse em discos de platina. A net atirou-me para o colo uma série deles, antigos, fiquei com o Aquiles e o Viriato, figuras arquetípicas,até eu perceber que o que queria era conhecer o rosto do Garibaldi. Um herói à séria, um de veias e coração e sangue, um de mar e de luta. As pessoas que conhecem poucas pessoas acham que cada um tem cara de ser da sua terra. Como se houvesse um fenótipo de Lisboa, um da Madeira, um do Minho, outro do Algarve... As pessoas que conhecem poucas pessoas, conhecem muito pouco da vida e do mundo. As pessoas, as sãs pelo menos, têm cara daquilo que são, dos lugares de alegria e dor por que vão passando mais, muito mais, do que do sítio que as viu nascer um dia.

A sorte, que hoje nos traiu, sorrirá para nós amanhã. Estou saindo de Roma. Aqueles que quiserem continuar a guerra contra o estrangeiro, venham comigo. Não ofereço pagamento, quartel ou comida. Ofereço somente fome, sede, marchas forçadas, batalhas e morte. Os que amam este país com seu coração, e não com seus lábios apenas, sigam-me. - Giuseppe Garibaldi.

E no entanto, volto, voltarei sempre, enquanto houver por que voltar, pelo menos.

7 comentários:

comboio turbulento disse...

Meu Deus, que intensidade crescente tem este texto!Que arrebatamento!Estás a escrever cada vez melhor. É uma escrita de alguém que tem a escrita como amiga favorita, de muitos momentos.

Sabes, eu que já morei em todo o lado nunca consigo ver/falar de outras terras sem pensar/falar da minha. Tal como o Tê, para mim "é sempre a 1ª vez sempre que regresso a casa" e ainda não descobri que particularidades tão belas tem o raio da minha cidade cinzenta e triste, que me faz gostar tanto dela. Mas o amor é isto, descobrirmos o "não sei quê" nos lugares, nas tarefas, nos projectos, nas pessoas.

beijinhos

Maria Rita disse...

Sempre tão sábia e tão bonita aí dentro. :)

E esta escolha de Garibaldi para teu herói foi muito acertada! ;)

Bacini*

Joana disse...

Comboio,

Meu Deus, que comentário incomentável de bonito.

...

Frida,

Outra incomentabilidade.


Ai os amigos! Não vos mereço, essa é que é essa.

Jinhos a ambos, do tipo baci(ni) para a menina! :D

Doppelganger. disse...

Este texto deixou-me sem respiração, não há palavras. A tua escrita, a tua sabedoria, as tuas viagens refletem-se em cada articulação de frase, em que sentimento de artista, sim, porque este texto eleva-te à condição de artista acima da escritora, cada frase é uma melodia de Mozart encadeada. :)

Sublime!

Beijinhos*

Joana disse...

Pedro,

Que lindo!
(Artista, eu? :S )

Estou.

Sem palavras. :))))))


Jinhos.

Vanessa disse...

pois. acho que foi tudo dito nos comentários acima. saio de fininho depois deste terramoto de palavras.

até para a semana, menina* :)

Joana disse...

Vanessa,

Até jáááááááááááá! :D




Jinhos.