Eu já sabia que ia ser assim. A água do rio nunca é a mesma, os dias também não. Eu já sabia, mas como ontem deu tempo, e saí de casa mais ou menos à mesma hora, como ontem deu tempo, e nem fiz muito por isso, só corri, corri, corri, a rua toda a encolher, os minutos a alargarem, alargarem, aquele tempinho suficiente para eu carregar o título, descer as escadas, apanhar o metro, sentar e encostar as costas à certeza boa daquele anjo e de estar viva, achei que hoje também.
Mas hoje não. Hoje o anjo meteu férias que estes são dias de bruxices e, para mais, não foi o trânsito na casa-de-banho a atrasar-me; hoje foi a minha preguiça a vencer o sono que nem tinha, o calorzinho da cama a cortejar minhas prioridades, as minhas responsabilidades, eu a tentar equilibrar tudo, só mais um bocadinho, só mais um bocadinho, eu acrobata, eu malabarista, eu, aquele torpor, eu quase quase a cair para nenhuma rede, eu a levantar-me e a fazer tudo muito rápido.
Eu a chegar ao semáforo, a virar para a Costa Cabral, eu a começar a correr, a ver-me correr, correr, correr, como ontem, quando Lena, oh Lena, ouve, não tens um lenço? Primeiro que a Lena, um quilómetro à frente de tudo, ouvisse um lenço?, costas surdas para o marido, costas cegas para o filho, já eu lhes tinha dado o meu pacote - o miúdo estava aflito, o pai em cuidados - deixe estar, tenho outro, fique com ele, só tem três, bom dia! Eu a recomeçar a correr, a pensar calhou bem, a Lena não tinha; a contar os minutos no relógio da Farmácia, faltam quatro, consigo descer as escadas e carregar o título se não estiver ninguém, como ontem, consigo, consigo.
Eu moeda na mão, eu título na mão, eu pressa na mão, eu isso tudo e duas pessoas antes de mim na máquina, olhe, desculpe, sabe como é que se pode, sei - sei que o metro já era, o comboio igual, a Biblioteca longe, o meu trabalho pior, o meu trabalho a esvanecer-se, Braga por um canudo muito canudo -, então para onde quer ir? ok, e de quantos títulos precisa? e viagens?, ora bem, mas já tem um, não é?, então vamos comprar um título - eu professora, eu a pensar há quanto tempo não conjugo verbos na primeira pessoa do plural... - e carregá-lo com duas viagens, dois e quarenta, sim dá troco, tome lá o recibo que isto às vezes..., ok para a sua mulher, muito bem, e agora o seu, o seu é só carregar, é mais fácil e rápido - o meu metro, o das sete, lá em baixo, a chegar e a partir - assim, tome lá o seu recibo também, e agora, menina?, agora é por ali, é só descer as escadas, obrigada menina, de nada, então.
Pelo menos agradeceu. E chamou-me 'menina'. Às vezes as palavras, mesmo as quase vazias, saem dos gestos em boa hora. E acalmam um bocadinho as inevitabilidades que nos teimam em cumprimentar, minha senhora, como tem passado?, algumas manhãs. Lá fiz o meu carregamento nas calmas, e, devagarinho, entregue à sorte do dia, desci as escadas, sabendo que ninguém lá em baixo, sabendo que só eles, o meu sorriso polido, porventura o meu mais vazio, abandonado, e a réplica: não está ninguém, sabe se temos de esperar muito?, dez minutos, ah, tudo bem, sorri daqui a dez minutos passa outro e em menos disso põem-se lá, sorriram. Temos tido sorte com o tempo, não acha?, sim, por acaso, daqui a nada é Novembro e. E chegou o metro e entrei e eles entraram, e sentei e eles sentaram.
Não somos daqui, estivémos cá a visitar, somos de Leiria mas vivemos na Suíça, a minha mulher é colombiana - ela sorri, um sorriso lindo ilumina-nos aos três - casámos na Igreja de Fátima e prometemos que sempre, então vamos lá abaixo ao Santuário..., que bonito!, acho que fazem muito bem, aquilo agora está diferente, houve obras e, ah mas nós, não é coisa para muito tempo, uma avé-maria e um pai-nosso, só. Não resisto, dou-lhe o meu melhor sorriso, aquele que nasce, cresce, e vai para o mundo, antes que eu, o da covinha única do lado direito..., a mulher meneia com a cabeça, sorri igual, mas sem covinha - não há disso na Colômbia, falha resolvida com encolher de ombro pequenino -, entendemo-nos.
Saí em Campanhã, adeus menina, adeus, façam uma óptima viagem, aproveitem o dia!, e apanhei a vida de sempre, o comboio-cafézinho-Biblioteca-Braga - canudos hoje só no cabelo... Eu não percebo muitas vezes, mas o meu anjo. Nunca falha.
7 comentários:
:) afinal ainda chegaste a tempo... *
Muriel,
Chegamos *todos* *sempre* a tempo...
:)))
Jinhos.
Os nossos anjos devem trocar umas ideas...
Bom fds
Ouriça
Ouriço,
Those in favor, raise your hands!
(É para já!...)
Jinhos.
Há gente de Leiria em todo o lado, irra.
Perdem-se umas coisas, ganham-se outras. Sempre assim!:)
Bacini*
Moço,
Pensei o mesmo... Pffffff!
:P
Frida,
E ainda bem. :))) (
No fim, vai-se a ver e até mesmo do que se perdeu se colheu doce fruto - ;)
Jinhos a ambos.
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