sexta-feira, outubro 30, 2009

Inevitabilidades

Eu já sabia que ia ser assim. A água do rio nunca é a mesma, os dias também não. Eu já sabia, mas como ontem deu tempo, e saí de casa mais ou menos à mesma hora, como ontem deu tempo, e nem fiz muito por isso, só corri, corri, corri, a rua toda a encolher, os minutos a alargarem, alargarem, aquele tempinho suficiente para eu carregar o título, descer as escadas, apanhar o metro, sentar e encostar as costas à certeza boa daquele anjo e de estar viva, achei que hoje também.

Mas hoje não. Hoje o anjo meteu férias que estes são dias de bruxices e, para mais, não foi o trânsito na casa-de-banho a atrasar-me; hoje foi a minha preguiça a vencer o sono que nem tinha, o calorzinho da cama a cortejar minhas prioridades, as minhas responsabilidades, eu a tentar equilibrar tudo, só mais um bocadinho, só mais um bocadinho, eu acrobata, eu malabarista, eu, aquele torpor, eu quase quase a cair para nenhuma rede, eu a levantar-me e a fazer tudo muito rápido.

Eu a chegar ao semáforo, a virar para a Costa Cabral, eu a começar a correr, a ver-me correr, correr, correr, como ontem, quando Lena, oh Lena, ouve, não tens um lenço? Primeiro que a Lena, um quilómetro à frente de tudo, ouvisse um lenço?, costas surdas para o marido, costas cegas para o filho, já eu lhes tinha dado o meu pacote - o miúdo estava aflito, o pai em cuidados - deixe estar, tenho outro, fique com ele, só tem três, bom dia! Eu a recomeçar a correr, a pensar calhou bem, a Lena não tinha; a contar os minutos no relógio da Farmácia, faltam quatro, consigo descer as escadas e carregar o título se não estiver ninguém, como ontem, consigo, consigo.

Eu moeda na mão, eu título na mão, eu pressa na mão, eu isso tudo e duas pessoas antes de mim na máquina, olhe, desculpe, sabe como é que se pode, sei - sei que o metro já era, o comboio igual, a Biblioteca longe, o meu trabalho pior, o meu trabalho a esvanecer-se, Braga por um canudo muito canudo -, então para onde quer ir? ok, e de quantos títulos precisa? e viagens?, ora bem, mas já tem um, não é?, então vamos comprar um título - eu professora, eu a pensar há quanto tempo não conjugo verbos na primeira pessoa do plural... - e carregá-lo com duas viagens, dois e quarenta, sim dá troco, tome lá o recibo que isto às vezes..., ok para a sua mulher, muito bem, e agora o seu, o seu é só carregar, é mais fácil e rápido - o meu metro, o das sete, lá em baixo, a chegar e a partir - assim, tome lá o seu recibo também, e agora, menina?, agora é por ali, é só descer as escadas, obrigada menina, de nada, então.

Pelo menos agradeceu. E chamou-me 'menina'. Às vezes as palavras, mesmo as quase vazias, saem dos gestos em boa hora. E acalmam um bocadinho as inevitabilidades que nos teimam em cumprimentar, minha senhora, como tem passado?, algumas manhãs. Lá fiz o meu carregamento nas calmas, e, devagarinho, entregue à sorte do dia, desci as escadas, sabendo que ninguém lá em baixo, sabendo que só eles, o meu sorriso polido, porventura o meu mais vazio, abandonado, e a réplica: não está ninguém, sabe se temos de esperar muito?, dez minutos, ah, tudo bem, sorri daqui a dez minutos passa outro e em menos disso põem-se lá, sorriram. Temos tido sorte com o tempo, não acha?, sim, por acaso, daqui a nada é Novembro e. E chegou o metro e entrei e eles entraram, e sentei e eles sentaram.

Não somos daqui, estivémos cá a visitar, somos de Leiria mas vivemos na Suíça, a minha mulher é colombiana - ela sorri, um sorriso lindo ilumina-nos aos três - casámos na Igreja de Fátima e prometemos que sempre, então vamos lá abaixo ao Santuário..., que bonito!, acho que fazem muito bem, aquilo agora está diferente, houve obras e, ah mas nós, não é coisa para muito tempo, uma avé-maria e um pai-nosso, só. Não resisto, dou-lhe o meu melhor sorriso, aquele que nasce, cresce, e vai para o mundo, antes que eu, o da covinha única do lado direito..., a mulher meneia com a cabeça, sorri igual, mas sem covinha - não há disso na Colômbia, falha resolvida com encolher de ombro pequenino -, entendemo-nos.

Saí em Campanhã, adeus menina, adeus, façam uma óptima viagem, aproveitem o dia!, e apanhei a vida de sempre, o comboio-cafézinho-Biblioteca-Braga - canudos hoje só no cabelo... Eu não percebo muitas vezes, mas o meu anjo. Nunca falha.

7 comentários:

Vanessa disse...

:) afinal ainda chegaste a tempo... *

Joana disse...

Muriel,

Chegamos *todos* *sempre* a tempo...

:)))



Jinhos.

Ouriço-Cacheiro disse...

Os nossos anjos devem trocar umas ideas...
Bom fds

Ouriça

Joana disse...

Ouriço,

Those in favor, raise your hands!

(É para já!...)



Jinhos.

moço disse...

Há gente de Leiria em todo o lado, irra.

Maria Rita disse...

Perdem-se umas coisas, ganham-se outras. Sempre assim!:)

Bacini*

Joana disse...

Moço,

Pensei o mesmo... Pffffff!

:P

Frida,

E ainda bem. :))) (
No fim, vai-se a ver e até mesmo do que se perdeu se colheu doce fruto - ;)

Jinhos a ambos.