sexta-feira, outubro 09, 2009

Lugares.tempos onde a vida se esvai

Ando a enterrar muita gente nestas últimas vezes em que tenho vindo a casa. As pessoas - os professores, as directoras, os tios, as tias, os tios-avós - que tinham quarenta, cinquenta, sessenta anos quando eu tinha dez, morrem-me agora.

Eu nos vinte e oito, quase trinta, eu aqui, tão pequenina como se é sempre quando chega a casa para ficar por uns tempos, não importa a idade - a idade, mede-a a vida -, quando se chega a casa para ficar por uns tempos - dizia - e se é filho, de e de, quase exclusivamente, e está na mesma, tão bonita!, como sempre, claro!, e se é verde, parece a mais novinha das três, acredita, Joaninha?, e se é Joaninha - o diminutivo que se colou ao corpo no seu ponto mais biologicamente activo, e à chegada -, antes de sermos nós próprios e as circunstâncias que criamos todos os dias do ano - e até ao fim.

Eu nos vinte e oito, quase trinta, eu pequenina a segurar a mão do meu pai, nós a olharmos janela fora, um céu quase de chuva sobre nós, o sol todo no Funchal lá ao fundo, eu a dizer ele parece-me bem, ainda não é desta, mais uns dias e tem alta, eu a falar como gente grande - não ouvindo, vendo pouco, percebendo ainda menos - eu a tentar consolar o meu pai pequenino. Eu a levá-lo a passear, nós a pararmos no miradouro, a bela vista bela lá em baixo, nós a continuarmos o passeio, nós a entrarmos no Verão fora de tempo do centro da cidade, nós a comermos gelados, eu a pensar no arraial do Monte de quando tinha quatro anos.

Eu a pensar no arraial do Monte em que me deixei ficar a olhar uma montra de relógios: eu a inclinar-me a querer ver melhor, eu a colar o nariz ao vidro, as duas mãos nas têmporas a apagar os reflexos da tarde, eu a querer ver mais, o meu pai a pegar-me numa mão para arrepiar caminho, eu pela mão do meu pai, o meu pai a puxar-me pela mão, eu a deixar ficar o nariz lá atrás, o nariz a passar pelo crespo da parede, a testa também, o nariz a ficar na parede, a testa também um pouco. Os gelados do depois - um para o nariz, outro para mim - a testa escapou quase ilesa. O passeio do depois pelo arraial, as distracções do passeio.

Conheço lugares, vivo tempos, mais crespos que todas as paredes de crespo onde a infância deixou a pele; lugares por onde a vida se esvai e a esperança cedeu o lugar à espera. Se calhar, crescer é isso. Se calhar, viver não é mais que sobreviver, um céu pesado de negro olhando uma cratera de luz ao fundo, o dia, janela fora.

6 comentários:

Vanessa disse...

nunca sei o que dizer a verdades destas. serei sempre pequenina demais para entender esperanças que cedem lugar à espera... *

ana salomé disse...

(...)*

Maria Rita disse...

Este último parágrafo diz tanta coisa! Estas férias no Funchal fizeram tão bem ao teu blog :)

Beijinhos*

Anónimo disse...

MAS QUANDO É QUE ACABA ESSA HIBERNAÇÃO ? estamos a ficar um bocadinho neuras,ou é só da chuva?
Nem sempre é assim tão bom voltar aos locais da felicidade antiga...
E às vezes as memórias são melhor território do que o revisitado...
Bjs!

Doppelganger. disse...

ACredito que quando voltas a casa, passa-te muito pela cabeça e pelo coração, faças uns rewinds ao teu passado, a tentar lembrar-te do que correu bem e do que correu mal no passado. Mas viver, será sempre mais do que apenas sobreviver, mas nunca podes deixar com que a tua aura de boa disposição e felicidade se abatam, não é de ti.

Beijinhos*

Maria disse...

JJ, que lindo, mesmo mesmo mesmo! Que bem que me sabe ler este teu cantinho, e o diminutivo não lhe faz justiça... Adorei,

um beijinho