terça-feira, outubro 27, 2009

O que levamos daqui afinal


Quando na minha cozinha daqui cheira a bolo de maçã com canela, é porque é Domingo à tarde e alguém fez chá e me apeteceu só por isso - algumas vezes pior, algumas vezes só porque sim... - o bolinho. Quando o despertador toca às sete, às sete e vinte, às oito menos vinte, às oito, e lhe bato para, shiu!, só mais um bocadinho, só mais um, só, é porque é segunda-feira e não vou à Braga, porque segunda-feira é o dia de resolver burocracias de CTTs, CGDs, Seguranças Sociais, Finanças e de cuidar da casa, da roupa, das plantas, e de mim. Quando se ouve passos de passarinho na coxia à minha esquerda, ou então Mamã! e toda uma conversa numa língua passarinho, ou então Papá! e nova conversa na mesma língua, é porque a tarde vai a mais de meio e as mães e os pais que foram buscar os filhos à escola, vêm buscar os livros de que precisam, filhos numa mão, a lista bibliográfica na outra. Se o soalho na Madeira faz deslizar o tapete sobre a cera, é porque é Natal, a minha mãe anda impaciente e desorientada e num corrupio alucinante do serviço que tem que se colocar na máquina, mas não todo, que há peças que não podem ir porque, da toalha que já não presta porque os guardanapos desapareceram-lhe das proximidades, da gaveta que não se abre, das caixas de enfeites que não encontra, do absurdo que é faltar tão pouco tempo e haver tanta coisa para fazer, que vocês, nós pois..., chegam sempre em cima da hora, é sempre a mesma coisa.

Há coisas pequeninas que fazem parte de coisas de tamanho variável que fazem parte do nosso mundo e que lhes dão sentido. Um sentido que vamos assimilando às partes, bocadinhos de sentir de que nos apropriamos, bocadinhos que se vão entranhando em nós até viverem connosco pela memória - até os levarmos dentro para todo o lado. Cheiros, rotinas, companhias, pequenos prazeres... Há quem lhes chame pormenores e diga que fazem toda a diferença.

Uma diferença que é toda - repeti. Pensava nisto porque já não me lembrava nem do toque, nem do quanto toca, de manhã, o telefone nesta sala de cima. Pensava nisto porque já me tinha quase esquecido do quanto é irritante o pigarrear e a antipatia apaixonada desta funcionária. Pensava nisto porque ainda assim é bom voltar à Biblioteca e voltarem connosco as pessoas do costume, os bons-dias do costume e até as coisas estranhas do costume. Pensava nisto esta manhã porque as pessoas de sempre que divisei dispersas ontem por entre uma multidão de miúdos pouco católicos que vinham de todos os lados para se concentrarem não sei porquê junto a uma única porta - a de maior movimento, voltaram a sentar-se hoje nos sítios em que sempre as vi no comboio. E quase sorriram, e quase sorrimos - o de sempre.

Uma diferença que se quer toda, como qualquer coisa que se queira toda, com sentido, uma diferença com sentido, a carecer de memória, uma diferença a carecer de memória, a requerê-la, a chamá-la para dentro - coisas de quando rodo a chave ao fim do dia, de quando vou dormir, de quando me levanto de manhã, de quando a meio da manhã. Coisas a comporem-se para a memória, coisas a crescerem em trança em volta de uma haste transparente, o que levamos daqui afinal.

8 comentários:

Oásis disse...

E é isso que levamos. E eu fiz bolo de pêra com canela do domingo, hihihi :)

Joana disse...

Marisa,

Pois é, exactamente.

De pêra? Nunca experimentei, um Domingo destes... ;)


Jinhos.

Maria Rita disse...

Como a tua escrita é o que é, sempre, sem tirar férias, hoje vou elogiar as orquideas da foto! :)) Tão bonitas! ;)

(Como eu adorava gostar de canela!)

Baci*

Joana disse...

Frida,

Gosto muito de orquídeas. :)))


Oh, continua a ser bom o bolinho sem ela... ;)


Bacini, bella!

Ouriço-Cacheiro disse...

O que levamos daqui afinal.
Lindo.
Bolo de maça com canela abre sempre o apetite, desperta-nos.

Bj deste verão lisboeta sem fim

Ouriça

Joana disse...

Ouriça,

Sempre a mesma! :))))

Recomendo vivamente apetites e despertares! Dão-nos a dimensão da vida que levamos. :D

Jinhos
.
P.S. Por cá também Verão, muito embora aqui à secretária esteja frio...

Ana disse...

tanta coisa que se leva daqui ;)*

Joana disse...

Ana,

:))))



Jinhos.