Só me acontece quando chego a casa, àquela que é dos meus pais sempre e minha duas vezes no ano, às vezes três, houve, há muito tempo, um ano que dez. Só me acontece quando chego a casa e me instalo, tiro a roupa da mala, escondo a mala, e cheiro tudo, remexo tudo, abro todas as portas e as janelas e as gavetas, e afasto móveis, alguns móveis, e vasos de plantas, e cheiro o velho e fecho os olhos para tactear o novo e por fim me sento à varanda, porque terminei o reconhecimento e é bom finalmente estar de volta, e estar assim, em casa, depois de tudo o mais, em sossego, ao fim do dia, a cada fim de dia.
Os franceses dizem 'tomar posse dos lugares', depois das férias, para explicar o regresso à rotina; eu, eu tomo posse dos lugares no primeiro dia de férias, lá, só lá, em casa dos meus pais, para vestir uma rotina nova, a rotina deles... - a do cafézinho de todas as manhãs às 8.45 e no sítio, e mesa, do costume, a do cafézinho com o jornal à espera na mesa da frente, os dois à espera de nos passarem o jornal, os meus bons-dias, sorriso ensonado de sempre, de todos os dias, o jornal em troca de um sorriso em saldos. A minha mãe a ir para o trabalho às 8.55, eu a ficar com o meu pai, e o jornal, mais meia hora; nós à espera do pão quentinho, nós a comprarmos para levar, o meu pai a ir à sua vida, compras para o almoço e afins, eu a ir à minha, net e trabalho e net e afins, eu a acabar com tudo à hora do almoço - que é quando a minha mãe regressa do trabalho e estamos novamente os três, eu a voltar, a querer voltar a tarde toda, a acabar para jantar, a esquecer tudo ao serão para novamente ficarmos os três, assim muito assim, três, até o cansaço me mandar para a cama - a mim primeiro que a toda a gente, como sempre, e no caso ainda bem.
Quando chego cá, a esta casa que é minha, nossa, todos os dias do ano, quando chego ao Porto, meu a vida inteira, antes e depois de agora, não tomo posse de nada. Abandono-me. A rotina é a minha de sempre. Se é Domingo, sofá; se não é, cadeira laranja a rodar para cá e para lá, se há preguiça, se não há, cadeira quieta frente à secretária, soneca depois de almoço, às vezes - se é segunda-feira, vá!...
Anteontem, nas últimas compras antes de vir para cá, a minha mãe apontava-me qualquer coisa na Marina do Funchal, qualquer coisa que não ouvi, surpreendida com a reprodução duvidosa, e feia - muito feia, de uns bancos de pedra que ondulam, uma coisa pavorosa que lembra os do Parc Guell, que é para lembrar os do Parc Guell, mas, não, não assim, não aquilo, não na nossa frente-mar. Tomar posse de alguma coisa não é adquiri-la, não é roubá-la, reproduzi-la, copiá-la para nós, não; tomar posse de alguma coisa é deixá-la entrar, aceitá-la, deixá-la contaminar-nos devagarinho, misturarmo-nos ambos, abandonarmo-nos sem mais. Aceitar, a única forma pura de tomar posse de.
Não é nosso, nunca será, aquilo que nos esforçamos por marcar. Daqui para a frente só há dragões. Daqui para a frente. Só são nossas, de coração, verdadeiramente nossas, as coisas que nos permitem um abandono sem alardes, natural, total, de quando se chega a casa com dores nas costas e com sono, e está frio lá fora e um gelo na sala, e só apetece largar a mala à entrada e ter quem nos faça um chá, e buscar a mantinha e encontrá-la dobrada perto do sofá, e pedir um chá e tê-lo em menos de nada em cima da mesa, e ser tão difícil chegar lá, o braço chegar lá, de tão bem que entretanto se está, da música que se ouve, das coisas tão bonitas que entretanto passaram por nós em sonhos, do bom que é este sofá, do bom que é estar aqui.
5 comentários:
Ah... como é gratificante suspirar pelo sofá, o meu sofá, região demarcada desde que por ele me perdi de amores :-)
Bjitos
Ouriça
Ouriça,
;)
Jinhos.
Tomar posse dos lugares no primeiro dia de férias. Um acto muito heróico, e muito bonito, muito teu, a contrariar os franceses. ;)
Baci*
Eu sou assim também quando chego a minha terrinha, abraço a mãe e o pai antes de tudo, faço mimo ao cão, acaricio os sofas, mudo de roupa e deito-me na minha cama grande. There's no place like our home!
=)
Beijinho*
Frida e Pedro,
Os meninos comentaram com três minutos de intervalo! Portugal está separado de Itália apenas por três minutos (e o Pedro escreveu mais...) Lindo!
Frida,
Yep, yep. Franceses, blhac! ;)
Pedro,
Eu também. Isso tudo.
E abracinho à mamã igual. São sempre mais nossas depois de quase nos faltarem... :D
Enviar um comentário