terça-feira, maio 02, 2006

CONTIG(u)O

Há tempos sonhei connosco.
Tínhamos casado, contra todas as preferências familiares, expectativas pessoais e previsões mais optimistas. Morávamos na ilha, na casa dos meus avós, na casa onde vivi dezassete anos. Até não poder mais. Na ilha donde, à primeira hipótese, fugi. Antes que o sal das lágrimas me engolisse por inteiro. Antes que o ruído da mesquinhez me ensurdecesse, antes que a soberba geral me asfixiasse e que a respectiva prepotência me matasse de dor. Antes que o escuro viesse.
Tínhamos imensos filhos – não sei quantos ao certo, mas eram muitos –, todos muito barulhentos, chorões e ranhosos. Eu era doméstica mas tu trabalhavas. O dinheiro escasseava. Éramos muito pobres.
Éramos muitíssimo pobres, mas nunca discutíamos. Nunca nos zangávamos.
Nem mesmo quando faltava a comida ao jantar e apenas comiam as crianças. Pouco. Muito pouco. E pediam mais. E choravam. E não conseguiam adormecer, por muitas histórias que se contassem ou por muito que se cantasse, porque pura e simplesmente tinham fome.
Nesses dias íamos para a cama sem comer e tu ardilosamente convertias os lamentos sucessivos dos nossos estômagos numa acesa competição sonora. E imaginávamos os dois o diálogo travado entre os competidores. E fartávamo-nos de rir com as palermices que inventávamos. E as nossas gargalhadas chegavam aos céus muito antes de chegarem ao quarto dos miúdos, ao lado. Acho que os céus te respondiam à recriação sucessiva da alegria, porque olhavas sempre para lá, e o teu olhar crescia e se iluminava de sonhos e de esperança, e falavas-me, seguro, de como se pode viver sem pão, mas nunca sem Amor.
Nunca nos zangávamos. Nem mesmo quando chegavas a casa cansado, revoltado, e triste, e eu via nos teus olhos o peso da culpa que carregavas aos ombros. Via, percebia, queria consolar-te, dizer-te que não, que a culpa não era tua, pelo contrário, se de alguém era minha; queria dizer-te que tudo se havia de compor, que a culpa era do défice, dos políticos, do país e da Europa, que tínhamos feito do pouco muito e construído algo muito maior, que poucos conseguem, e queria por tudo isto no meu olhar e no meu sorriso, cada dia, todos os dias, para quando chegasses a casa… mas o meu sorriso não estava lá, nunca estava lá, para soprar o desânimo para longe. O meu sorriso não respondia ao teu. Não conseguia. Sorrir doía. E então chorava. Eu. Só.
Durante o dia, baixinho, às escondidas, para os miúdos não perceberem. À noite, nos teus braços, no teu peito, no teu colo, baixinho, para não perceberes. E tu não percebeste, mas eles... Um dia, certo dia, a nossa mais velha, claro (!), telefonou-te e disse que a mamã deve estar doente, porque hoje não está a pé, não abriu as janelas, não fez sopa, não ralhou e nem sequer se levantou da cama. Não fala.
E tu vieste, a tremer de dor, com o coração, partido, nas mãos, mas com a força, a tenacidade, a coragem e a ternura do costume. E trouxeste-a para o quarto, sentaste-a na cama, ao meu lado, e pediste-lhe que contasse. Tudo. E ela contou. E tu ouviste. Tudo. Com atenção, carinho e um Amor que nunca acaba e que eu não mereço. E eu ouvi. Tudo. Os meus choros frequentes, abafados, escondidos, disfarçados, o meu olhar perdido no espaço e no tempo, as minhas impaciências, o meu desinteresse, a minha apatia, a minha tristeza. Abraçámo-nos os três e choramos muito. Longamente. Pedi-vos perdão. A culpa era minha. Tinha sido sempre. Desde o início. Tu sorriste-nos. Deste-lhe um beijinho e mandaste-a para a sala. Depois limpaste-me as lágrimas, pegaste-me nas mãos, olhaste-me nos olhos e disseste que não havia culpa (logo não era de ninguém) porque a culpa é como o medo: apenas existe dentro de nós, fruto da nossa própria criação. Beijaste-me as mãos, a testa, os olhos, o nariz, o queixo e a boca, abraçaste-me e sussurraste que nós íamos conseguir, esta era apenas mais uma fase difícil a ultrapassar, disseste que no fim ficaria tudo bem. E eu acreditei.

***

Há tempos sonhei contigo.
Estávamos casados, apesar da tua mãe, dos teus amigos e da tua profissão.
Tínhamos dois filhos lindos e uma casa grande só nossa. Trabalhávamos os dois. Muito. Profissões diferentes, rotinas diferentes. Apesar disso, eu tinha imenso tempo para as crianças e para a casa. Crescia com elas e isso fazia-me muito feliz. Tu não tinhas tanto tempo mas eras um marido maravilhoso e um pai adorável. E tudo se compunha e tudo estava bem…
Saías de manhãzinha e só chegavas ao cair da noite, quando os miúdos já dormiam. Ias vê-los aos quatros e dar-lhes um beijinho e eu achava que isso era encantador. Mas eles não te viam a ti. Nem te davam beijinhos. E isso começava a ser aterrador. Obviamente, aos fins-de-semana tínhamos-te só para nós e então passávamos imenso tempo todos juntos; fazíamos piqueniques, íamos à praia, almoçávamos na casa dos nossos pais e os miúdos brincavam com os avós e com os primos e isso divertia-os imenso. E dava-nos o nosso tempo e o nosso espaço de volta. E eu achava que nada poderia haver de mais perfeito sob os céus.
Alguns fins-de-semana. Apenas. Noutros tinhas que trabalhar, tanto como nas noites em que não podias vir dormir a casa. E eu admirava a abnegação e a dedicação aos outros, o esforço hercúleo que não deve ser estar tantas horas sem dormir, a colocação da experiência e da prática, do conhecimento e da técnica sempre em favor do Outro. E então afastava da mente os pensamentos mais negros e secava as lágrimas da saudade com o orgulho e a admiração. Por ti.
Nunca discutíamos, nunca nos zangávamos: não tínhamos problemas. Éramos a família perfeita, o casal-modelo…
Eu amava-te com todo o meu ser e esse meu sentimento era maior que eu, nós, a vida, o mundo e até as tuas obrigações profissionais. E achava que isso era o bastante e que tal me imunizaria do sofrimento e da dor e faria do longe perto e anularia o fosso que entretanto se fora criando entre nós.
Eu sentia-te efectivamente cada vez mais longe. De mim. De nós. Os miúdos mal te conheciam. E dizia-to. Tu achavas que não e adormecias mesmo antes de esgrimires argumentos. Adormecias. Do cansaço. Do desgaste. Da profissão. E eu revoltava-me. Contra os outros, massa amorfa. Não percebia com podias dar-lhes tanto, de ti, pro bono. Não percebia por que razão eu, mulher, amante e mãe, que te sentia cada vez mais longe, e que tinha porventura todo o direito para isso, não te conseguia exigir uma escolha. E revoltava-me. Contra mim própria. E a melancolia, o sofrimento e a tristeza tomavam conta de mim. Quando achava que já não conseguia suportar tanta dor, tornava as coisas ainda piores: recordava aqueles dias, longínquos, em que um olhar teu bastava para eu ter uma semana de insónias, lembrava-me do engolir em seco e da conversa sem nexo da primeira vez que falámos, revia todos os momentos em que a tua presença ao meu lado era o suficiente para eu sentir o coração a bater, sem freio, na cabeça, nos olhos, na cara, na garganta, nos pulsos e nas pernas. Aqueles dias em que tremia toda só de pensar em ti. E então chorava. Eu. Só.
Durante o dia, baixinho, às escondidas, para os miúdos não perceberem, para tu não perceberes, para os vizinhos não perceberem, para os meus colegas não perceberem, para os teus colegas não perceberem, para os nossos pais não perceberem. Para as pessoas não perceberem. A crise do casal-modelo. À noite, quando estavas a trabalhar, alto, muito alto, na solidão fria e escura do quarto; quando chegavas, baixinho, para não perceberes. E tu não percebeste, mas eles... Um dia, certo dia, a nossa mais velha, claro (!), perguntou-te, na minha presença, se não havia remédio para a doença da mamã que passa o tempo todo a chorar às escondidas. Inventaste um nome qualquer, verosímil, e indicaste-lhe o respectivo tratamento, credível. Mas não conseguiste disfarçar a surpresa. E voltaste-te para mim, deste-me a mão, a piscadela marota de outrora e fizeste-me prometer (?) que falávamos sobre isso ao jantar. E eu assenti, prometi, esperei e acreditei.
Acreditei. Até ter percebido num bloco noticioso de última hora num canal qualquer que a conversa teria que ser adiada. Ligaste a dar-me conta desse imprevisto. E eu não consegui disfarçar o choro que me embargava a voz. Ficaste apreensivo. E eu cheguei a ter esperança no teu silêncio do outro lado. Mas não vieste.
Quando chegaste, de madrugada, senti o arrependimento no toque e no calor, mas a tua ausência já se tinha tornado rotina e a minha solidão natural. E deixei-me ficar no torpor em que me encontrava e não consegui dizer-te o que estivera a repetir a mim própria todo o dia: que íamos conseguir, que esta era apenas mais uma fase difícil a ultrapassar, que no fim ficaria tudo bem. Não consegui. Voltei-me para o outro lado e comecei a chorar baixinho. Não respondi ao teu pedido de desculpas velado e tu gelaste. Nem tentaste novamente. Se calhar não gelaste, se calhar adormeceste simplesmente. Do desgaste. Do cansaço. Do dia. Continuei a chorar. E deixei o acreditar para o dia seguinte.

7 comentários:

Anónimo disse...

tua autoria???humm...bjinhos.nininha

Joana disse...

Estás a brincar, certo??? Não se nota logo??? Conheces as personagens e tudo... COCKIE ANDAS DESPASSARADA!... ou entao eu é que sou... surpreendente... no mínimo, eu sei! Que queres? Às vezes, dá-me para isto... ;) Jinhos.

Anónimo disse...

Sou da opinião que as mulheres sábias também sabem o que vai passar-se! :P
Beijinho

Joana disse...

You bet they do, Tété! ;)

Anónimo disse...

ah?!afinal é msm teu?n conheci as personagens...pq li na diagonal...lolol!pera...ja la vejo..:P bjinhs nininha

Anónimo disse...

ggrrrhhh...noites e fim d semanas pa trabalhar...bem n é musico d certeza...GGRRHHH!!!MACACOS ME MORDAM....nao...n m mordam, nem a ti nem a ninguem..ora....FORA DAKI MACACO!!!;) Bjinhs Nininha

Joana disse...

Cockie, esquece as macaquices, isso pertence ao passado...