terça-feira, junho 09, 2009

O único livro que não consigo tirar da mesinha-de-cabeceira, as únicas palavras que


Daniel Faria

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados
Por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar


....

Homens que são como projectos de casas
Em suas varandas inclinadas para o mundo
Homens nas varandas voltadas para a velhice
Muito danificados pelas intempéries
Homens cheios de vasilhas esperando a chuva
Parados à espera
De um companheiro possível para o diálogo interior


Homens muito voltados para um modo de ver
Um olhar fixo como quem vem caminhando ao encontro
De si mesmo
Homens tão impreparados tão desprevenidos
Para se receber

Homens à chuva com as mãos nos olhos
Imaginando relâmpagos
Homens abrindo lume
Para enxugar o rosto para fechar os olhos
Tão impreparados tão desprevenidos
Tão confusos à espera de um sistema solar
Onde seja possível uma sombra maior


...

Não levantemos os homens que se sentam à saída
Porque se movem em seus carreiros interiores
Equilibram com dificuldade uma ideia
Qualquer coisa muito nítida, semelhante
A uma folha vazia
E põem ninhos nas árvores para se libertarem
Da gaiola terrível, invisível muitas vezes
De tão dura
Não nos aproximemos dos homens que põem as mãos nas grades
Que encostam a cabeça aos ferros
Sem outras mãos onde agarrar as mãos
Sem outra cabeça onde encostar o coração
Não lhes toquemos senão com os materiais secretos
Do amor.
Não lhes peçamos para entrar
Porque a sua força é para fora e a sua espera
É a fé inabalável no mistério que inclina
Os homens por dentro
Não os levantemos
Nem nos sentemos ao lado deles.
Sentemo-nos
No lado oposto, onde eles podem vir para erguer-nos
A qualquer instante


Daniel Faria, “HOMENS QUE SÃO COMO LUGARES MAL SITUADOS”, 1998


O último recital do Sindicato de Poesia a que assisti em Braga foi precisamente em torno de poemas do Daniel Faria. Nas vésperas, entusiasmadíssima com os ensaios, a Ana Arqueiro dizia-me o quanto gostava que o Daniel estivesse ainda entre nós para lhe perguntar uns quantos comos, outros tantos porquês e aprofundar uma série de ao certos que labaredeavam aqueles poemas. Gostava tanto que ele estivesse aqui, tinha que explicar. Nunca mais me esqueci disso. Há dias lia Sarah Kane e pensava nisso exactamente. Agora parece-me que 28 anos são o tempo exacto de uma vida vivida inteira - coisa de génios, ou de anjos.

Passam hoje dez anos sob o desaparecimento do poeta Daniel Faria, possivelmente o meu poeta português predilecto.

Para quem está no Porto impõe-se uma espreitadela aqui,para quem não está, e se porventura não conhecer - ainda vai a tempo de lavar os olhos e a alma... - impõe-se outra aqui.

5 comentários:

V. disse...

(...)

beijinho*

kelly disse...

ai este daniel!!
beijinhos menina
ando offline, mas in life :-)
abraços

Anónimo disse...

Daniel Faria também é uma das minhas referências de mesinha de cabeceira.

Bons feriados

Joana disse...

Vanessa,

Outrinho. :*

Raquel,

In life é que importa! :D
(Coincidimos na escolha de poema do Daniel para este dia. Tão bonito!;)

Comboio,

Pois, claro! No suprises. :))))

Jinhos a todos.

helenabranco.poet@gmail.com disse...

DANIEL FARIA
como ouso pousar em teu nome mísera sombra que sou
d 'alento líquido a voz
susurro cada palavra
tua deixada
e aprendo
amor