Ossos longos, ossos chatos, ossos curtos, ossos irregulares. O osso é uma estrutura exclusiva dos animais vertebrados - a única que lhe sustenta o corpo e apoia os músculos para o movimento. É osso o que protege cada órgão vital do nosso corpo: o crânio protege o cérebro, as costelas, o coração. SUB-STANTE.
segunda-feira, setembro 28, 2009
sexta-feira, setembro 25, 2009
De Pessoas que os livros chamam para nós
Hoje às 22 horas na Capela de Fradelos (na esquina da Rua Guedes de Azevedo com a Rua Sá da Bandeira no Porto), Fernando de Castro Branco apresenta
Diáspora, o novo livro deste senhor, que reúne e redefine, palavras do próprio, o seu 'corpus' poético.
Hoje também, e não longe do Porto, este senhor faz anos.
Diáspora, o novo livro deste senhor, que reúne e redefine, palavras do próprio, o seu 'corpus' poético.
Hoje também, e não longe do Porto, este senhor faz anos.
quarta-feira, setembro 23, 2009
Estes difíceis adeuses
Às vezes queremos muito dizer adeus. É quando o dizemos com força: com a boca, com as mãos, e deixamos o coração nos olhos - e não conseguimos desprender o coração dos olhos, nem os olhos da pessoa de quem nos despedimos, aquela que nos cresce, poderosíssima, imensa, para dentro, enquando vai ficando cada vez mais pequena, pequenina, pequenina, no fim da rua, antes de virar a esquina em que se perde finalmente de nós.
Às vezes não queremos dizer adeus. É quando não o dizemos e a vida o faz por nós. E de repente parece que somos outras pessoas a viver uma outra vida: não abrimos as janelas que costumávamos sempre, não nos lembramos, o sol que inunda o tempo vem de dentro, como pode ter sido alguma vez de outra forma?, são outros os livros que lemos, outros, os filmes que vemos, a música que ouvimos, outra. Às vezes parece que já vivemos tanto, que uma vida não chega. Às vezes parece que já vivemos muitas vidas e que todas foram nossas sem nunca nos terem pertencido realmente.
Às vezes também queremos muito dizer adeus e não dizemos. Nunca dizemos. E o que isso nos mina, a nós e à vida que nos devia pertencer sempre, e o que isso nos turva e alonga os dias, e o que isso nos rasga coração e veias, a vida devida, e apouca o que realmente importa, nós: uma sombra de nós.
Às vezes também não queremos dizer adeus e dizemos. E o que isso nos mina, a nós e à vida que nos devia pertencer sempre, especialmente quando não há rosas sem espinhos para deixar, e nem as aves nos querem por companhia.
Vou hoje de férias. Nenhum destes difíceis adeuses se prende com a minha ida para casa. Lembrei-me apenas do friozinho que sinto na barriga, que senti ontem à noite, como sempre na véspera de partir. Pensava nessa pequena dor e no quanto se ligará aos nossos adeuses, mais ou menos velados, mais ou menos definitivos, a tudo aquilo que gostamos nosso, a tudo aquilo que sentimos nosso, a tudo aquilo que pensamos nosso e que imaginamos definhar na nossa ausência.
O coração a bater em todo o lado, nós a esgoelarmo-nos a querer que acabe, a querer que não acabe, olhos invariavelmente cerrados, coração invariavelmente aberto, a vida consegue ser muitas vezes um carrossel. Mas há um pedacinho do recinto onde tudo é sossego.
Sempre.
terça-feira, setembro 22, 2009
A minha palavra favorita
Sempre.
Sempre é a minha palavra favorita. Os meus irmãos mais novos foram para a aula de condução e eu vim para cá ver os amigos. Ter irmãos, de sangue ou do tipo amigo, é uma coisa maravilhosa: ter irmãos de sangue mais velhos, especialmente quando, se, se é rapariga é um luxo - não me calhou em sorte; ter irmãos de sangue mais novos - aconteceu -, tenho, e, depois de uma altura que em que era um tormento, é uma benção. Acho que seria muito pior pessoa, muito mais aborrecida, e quieta, muito mais triste, e estúpida, e pensar-me-ia ainda mais velha - coisa gravíssima -, se não fossem eles. Eles a arrastarem-me para os programas que não faria nunca: para os passeios que não daria, para os jantares a que daria a primeira desculpa de que me lembrasse, para os concertos que conscientemente esqueceria, para o cinema que faria por conseguir por janelas travessas e ver numa manhã de fim-de-semana, dos meus fins-de-semana de sofá e pijama. Ter irmãos, e mais novos, é das melhores coisas que os pais podem oferecer os filhos, eu sou disso a prova viva - dizem-me os meus. E custa menos do que a televisão. (Não sei por que razão me dizem os meus pais isso, a mim, só a mim...)
Ontem fomos, os meus irmãos mais novos e eu, ao cinema. É bom ir ao cinema à segunda à noite. Só certas pessoas vão ao cinema na segunda à noite, e em começo de ano escolar, ainda é melhor... - não há muita gente. Ir com os meus irmãos ao cinema é uma experiência única. Uma que exige algum tempo e muito espaço. Primeiro tem que se ir jantar, depois comprar os bilhetes, depois jogar bilhar - ou outra coisa qualquer, de máquina, com intervalo para sessão fotográfica parvinha - depois aqueles discos que se movem a ar e depois é que sim. Cinema. Ou seja: coisas que não há, definitivamente, nos meus fins-de-semana de sofá e pijama. Ontem estávamos já na recta final, dos discos que o ar vai fazendo deslizar, depressa, depressa que só temos mais sete segundos, quando começa a You and Me Song. E a minha irmã e eu a and it's always you and me always, a minha irmã e eu a esquecermos o tempo, and forever, os sete segundos expirados, you and me always, a minha irmã e eu a aproveitarmos o espaço, and forever, eu a pensar em quando esta canção iluminava outros tempos, uns tempos de sofá que não eram de pijama, mas de calças de ganga e sapatilhas e almofadas pelo ar, e que nunca, por nada, calhavam ao fim-de-semana.
Há pessoas que dizem que sempre é muito tempo. Há pessoas que não percebem nada da vida. Os meus irmãos mais novos e eu seremos sempre, todos os dias das nossas vidas, e no entanto o nosso sempre de ontem durou bem menos que os sete segundos que nos faltavam para terminar o jogo e ir para o cinema.
Sempre é a minha palavra favorita de todas as palavras. É foi e é será, é de olhos e é de mãos, mesmo antes de os olhos e as mãos estarem lá, mesmo depois dos olhos e as mãos estarem lá, é always e é forever. Sempre. Há pessoas, muita gente e pouca gente, que não me entendem quando digo isto - recebo a propósito sorrisos mais ou menos compreensivos, mais ou menos incrédulos, mais ou menos escarninhos. Também não faço por me explicar. A rosa é bela sem ter porquê.
domingo, setembro 20, 2009
A noite passada
Este fim-de-semana esqueci-me de postar música como é costume. E eu gosto de costumes, mas. Não me queria repetir no Rufus, minha sempre eterna companhia, minha escolha segura, sempre certa, e por isso o costume de sempre na vida foi trepando por aqui acima e isto foi ficando calado, calado - esta mania de ter as coisas, mesmo de mim, das minhas coisas, para todos, mesmo de mim, das minhas coisas, aqui ao dispôr, é tão absolutivizante que me não permito repetições. E no entanto todos os fins-de-semana são musicais, que eu, pessoa velha, faço por parar aos fins-de-semana, e fazer outras coisas aos fins-de-semana, que sábados e domingos são dias de aspirador, roupa e louça, e pó que sempre persiste no cantinho que esqueço sempre, dias de cozinha e casas de banho e, definitivamente, não dias para escrever - e o tempo parece que estica, e o tempo me sobra sempre, e o tempo, depois dos filmes e das séries e, me empurra para a música e para a memória - descansar é tantas vezes pensar, fim-de-semana é tantas vezes música: porque pensar não dá saúde, nem descanso.
Este fim-de-semana foi de amigos, e de mim: a noite passada foi de amigos, hoje que começou quando cheguei ontem, que não foi ontem, a casa, com calor e uma dúvida, foi de mim: da minha incapacidade em adormecer, da minha pergunta de uma casualidade fingida, da minha pergunta ainda assim a medo, à minha irmã mais nova, da confirmação dela sonolentíssima, és, és, gostas, gostas, a Ana conhece-te melhor que muita gente, é possível que tu tenhas isso no teu inconsciente e não te dês conta, mas não me parece, miúda, olha para ti!, tu és mesmo assim, até amanhã, dorme. Eu ser mesmo assim a não me deixar dormir - eu que queria tanto adormecer - eu ser mesmo assim a acordar-me quando estava tão bem esta manhã, cedinho.
Este fim-de-semana, hoje, trabalhei como pessoa nova: com trabalho sem família, com trabalho sem amigos, com trabalho sem a solidão boa de um passeio na praia ou uma leitura de parque ao começo ou ao fim-do-dia. Às vezes temos que ser pessoas novas - manda o trabalho e o sono que não se tem, aquele que não vem, nunca vem. Somos toda uma geração de pessoas novas que, a trabalhar, trabalhamos demasiado. Não temos tempo para nada. Não temos tempo para o mais importante. Não temos tempo para o mais importante que o trabalho nunca traz. A noite passada estive com amigos - há amigos que mesmo quando não organizam nada em concreto são sempre sinónimo festarola, e o bem que isso diz deles... - e gostei muito - de estar, de ver, de ouvir, de pensar, de ficar a pensar, pensar, pensar. Até chegar a casa e perguntar. Eu e as minhas coisas. O costume.
Este fim-de-semana, a noite passada, foi memorável. As pessoas novas com trabalho precisam de fins-de-semana, uma noite que seja, de amigos, e nenhum trabalho, para a visão de conjunto.
Há pessoas muito bonitas, tão bonitas!, na humanidade, na naturalidade, com que nos aceitam no presente das suas vidas. Esta música - há tempos que não a ouvia, há tempos que não ouço muita coisa... - pôs-me a pensar nisso, e acompanhou-me o dia todo, desde que me sentei à secretária esta manhã, cedinho.
sexta-feira, setembro 18, 2009
Obras de restauro
A minha rua é uma rua pequenina, paralela a uma rua grande - das maiores que o Porto tem... - ladeada à esquerda por prédios antigos, à direita por prédios antigos, a minha rua é uma rua escura e velha, mais escura e mais velha do que eu desejaria, menos escura e menos velha que as muitas ruas pequeninas desta cidade.
Na minha rua, em frente ao meu prédio, abaixo da janela do nosso escritório, exactamente onde escrevo agora, há uma casa - a única casa da rua -, uma casa grande e bonita, com uma grande varanda a abraçar as duas bonitas águas-furtadas, com um jardim a condizer, com umas hortenses... que explodem brancas, rosa, lilás e azuis, deste jardim tão vivo, tão verde, tão familiar, que muitas vezes dou comigo a sacudir a mochila para o chão e a sorver-lhes com os olhos o orvalho, no regresso a casa da escola, ao invés de trabalhar.
Há tempos, vinha de uma festa, era tarde, não, era cedo - manhã cedo -, e os amigos que me davam boleia faziam-no curiosamente pela primeira vez. Dei-lhes as indicações do costume, chegámos rápido, a rua deserta, a rua a dormir, e eles estacionam antes do meu prédio e do outro lado da rua. À porta desta casa. Eu a perguntar-me porquê, eu a agradecer, eu a despedir-me, eu moro ali. Ali?, então espera, levamos-te lá, pensei que era aqui, esta casa tem tudo a ver com, esquece, e entra novamente, se fazes favor. Acho que estávamos todos com demasiado sono para nos alongarmos em teimosias. Entrei, em vinte segundos estava à porta do meu prédio, acenei adeuses, entrei, liguei a luz da entrada enquanto a porta deslizava-se-me e eles aceleravam para casa, também.
Depois disso, inevitável, ficou aquela ligação sonolenta e ébria - e amiga - a vibrar-me dentro na memória. E foi assim que todos os meus dias sozinhos de Agosto terminaram aqui à janela a olhar para baixo. Eu a observar a vida de Verão desta casa que tem tudo a ver, mas não é, que a minha vida e a minha carteira ainda não deixam, e não sou rapariga de grandes devaneios e desobediências.
Estes dias, andou em obras. Pinturas. Vieram cá uns senhores, dois ou três - nem sei ao certo, mas três -, montaram andaimes, fartaram-se de andar no telhado - um, mais que os outros, fartou-se de andar no telhado -, fartaram-se de cantar pérolas pop que não ouvia desde o Secundário - o do telhado mais que os outros, esgoelar-se é coisa própria da juventude, as pessoas de todos os dias todo o dia da casa substituídas por estas pessoas, e o Red red wine, e o Unbreak my heart, e o Hero, e o I have nothing, Rádio Renascença, das oito às seis.
A minha mãe é que havia de gostar desta casa, também. Eu e a minha mãe coincidimos sempre nos gostos - bem, em quase todos os gostos, estava a pensar agora que em matéria de estética do sexo oposto, nem por isso, geracionalidades... A minha mãe diz que as casas, como as pessoas, têm que se arranjar sempre muito mais assim que o tempo começa sulcar o seu caminho à superfície.
Obras de restauro. Às vezes, é preciso, muito. E os Verões são a isso bem propícios. Nem que seja por um bouquet de hortenses.
quinta-feira, setembro 17, 2009
Outono
É Outono. A chuva chega amanhã. A neura e os meus pés gelados chegaram ontem. Os marmelos, as abóboras e a amêndoa picadinha, para o doce, tudo, no próximo fim-de-semana. Antes de ir para casa de férias, antes das minhas férias fora de tempo, fora de época, que o Verão já terminou e as vindimas, fá-las-á o meu pai, hoje e amanhã, sem mim - muito sem mim -, antes que venha a chuva, filha.
É Outono. As camisolas e as meias começam a piscar-me os olhos, os meus olhos começam a assentir rendidos. A mantinha da minha avó desdobra-se da minha cadeira de baloiço. Abro a janela ao vento e antecipo o cheiro a terra molhada. Encosto-me, fecho os olhos. Todo o amarelo do mundo e todo o vermelho da vida impressos em chãos de folhas secas molhadas. Plátanos. Um plátano a marcar a página de um livro, uma história. Um plátano, uma história de Outono.
É Outono. E tudo voltou ao que era antes do calor. Manhãs mais frias, dias mais curtos, noites mais como as manhãs. Aquela dificuldade em sair da cama, só mais um bocadinho, só mais outro, só mais muitos bocadinhos, que ainda está escuro... O escuro a complicar-me os dias, a empurrar-me para o café, a reduzir-me as opções de janelas boas para trabalhar no regresso, a não ser amigo. O escuro a não ser meu amigo. Eu que preciso de luz como de água para viver, bem.
É Outono. Miúdos, cadernos dobrados nos bolsos, miúdos mais miúdos, mochilas, bolas, as ruas a ficarem muito estreitas a certas horas, o metro a ficar muito apertado às mesmas horas, o senhor a demorar três vezes mais para me trazer um café. Eu a não ter força para soprar para o lado, eu a não ter ânimo para desesperar. Eu a olhar janela fora a pensar - assim que chegar a casa faço um chá, castanhas é que era bom que já houvesse, o senhor do Marquês mais dia menos dia está de volta e com ele, as castanhas mais quentinhas do Universo.
É Outono.
Se deste outono uma folha,
apenas uma, se desprendesse
da sua cabeleira ruiva,
sonolenta,
e sobre ela a mão
com o azul do ar escrevesse
um nome, somente um nome,
seria o mais aéreo
de quantos tem a terra,
a terra quente e tão avara
de alegria.
apenas uma, se desprendesse
da sua cabeleira ruiva,
sonolenta,
e sobre ela a mão
com o azul do ar escrevesse
um nome, somente um nome,
seria o mais aéreo
de quantos tem a terra,
a terra quente e tão avara
de alegria.
Eugénio de Andrade
terça-feira, setembro 15, 2009
De alfarrábios e outros encantos da velhice
O meu pai costuma dizer que sou uma rapariga velha. Demasiado velha para a minha idade. Que as minhas irmãs não são assim, que o meu irmão não é assim, que as minhas primas, que ele, que a minha mãe, que, na verdade, pensando bem, não conhece ninguém assim. O meu pai é capaz de ter razão. Na verdade, pensando bem, nunca fui uma criança igual às outras. Nunca fui uma adolescente igual às outras. E agora, coerentemente, não sou uma mulher igual às outras.
Quando era miúda, as diferenças passavam despercebidas porque as razões das diferenças eram exteriores a mim: não houve doença infantil que não tivesse apanhado - era uma miúda bexigosa, amarela, conjuntivitante, alergolófila e tudo o mais que se possa imaginar e não se deseja a ninguém. Na adolescência, as diferenças já eram mais visíveis, nunca fui a uma única festa de aniversário, mas como esse período é sempre tão instável, variável, inexplicável, novamente razões exteriores a mim disfarçaram a ausência de convites, perdão: as diferenças.
Agora não. Não há doenças, nem dramas existenciais, os convites chovem em torrentes, não há nada - uma peneira que seja para tapar o sol. E o meu pai não se conforma que eu vá para casa, de férias, por exemplo, e prefira passar o dia a dissecar álbuns antigos, mesmo antigos, a fazer sestas, a escrever vidas, fantasias e outras impressões; o meu pai não se conforma que eu prefira terminar o dia, todos os dias, a olhar o mar, a Baía do Funchal da nossa varanda, ao invés de sair, o meu pai não se conforma que eu prefira enrolar-me na mantinha da minha avó a ler ou a ver filmes, todas as tardes, dias a fio, férias afora, em vez de sair. Com eles, com amigos, com amigas, sozinha.
O meu pai gosta muito de sair. E a minha mãe foi-lhe ganhando o gosto. Coisas de anos e anos de marital convivência. O meu pai não gosta de levar-me à Fnac, e gosta de livros e filmes e cds, o meu pai não gosta de quando eu compro uma jóia, e gosta de coisas bonitas, o meu pai não gosta de - preferia que estoirasse aquele dinheiro numa viagem, num fim-de-semana, num jantar, que o resto são coisas para deixar mais para a frente, para o futuro, para a velhice.
Não percebo isto de a velhice ser mais para a frente. Para mim a velhice é agora. Para algumas pessoas que conheço a velhice é nunca, para outras é-o desde sempre. Como o Amor. A velhice, como o Amor, não chega a toda a gente ao mesmo tempo - ali por volta dos sessenta quase setenta - não; a velhice, como o Amor, pode chegar aos sete ou aos dezassete, aos trinta ou aos oitenta, ou nunca. Pode nunca chegar, a velhice, como o Amor. Coisas da vida.
Por uma série de razões profissionais, dei comigo nos últimos tempos a comprar uma quantidade de alfarrábios - coisa para que sempre pensei só ter dinheiro muito, mas muito, mais para a frente. Se o meu pai sabe...
Há uma alegria calma, um encanto muito diferente, a beleza em forma de sossego, que os anos e as vidas que os possuíram dão aos livros e de que eles se libertam, juntamente com o cheirinho bom a papel amarelecido, a cada virar de página. Um halo de vida, de vidas. Mais para a frente, noutras mãos, num outro colo, um bocadinho, uma vibração que seja, de mim?
segunda-feira, setembro 14, 2009
Uma visita de Amor
O sitemeter é uma coisa espantosa. Às vezes perco muito tempo a perscrutar as pessoas que chegam até aqui, os lugares até onde isto aqui chega por pesquisas mais ou menos casuais no google ou em outro motor-de-busca menos conhecido.
Há pessoas que chegaram aqui uma vez, buscando um assunto qualquer, normalmente são os índios navajos, e que, obtendo ou não o que pretendiam, continuam a vir, muitas vezes, alguns todos os dias, e de proveniências tão diversas como os EUA, Timor ou a Estónia, para acompanhar o que por cá se vai passando. É bonito.
Há também aquelas pessoas que são amigas, há as que são família, há aquelas que sendo amigas se tornaram família, segunda, - a única que escolhemos, a família dos amigos! - as pessoas que me acompanham os passos, desde os tempos dos EUA algumas, a partir de blogamigos outras, do nada que é tudo outras ainda, e me iluminam os dias, por cá, mas sobretudo na vida, over a cup of tea, or lunch, or diner, or a whole stay at their place... Não há bonito que estique o suficiente para conseguir abraçá-las a todas ao mesmo tempo e como deve ser.
Há ainda as pessoas que fui perdendo pelo caminho, aquelas de quem a vida me afastou, aquelas que se quiseram afastar e percorrer um caminho próprio, sozinho, sem janelas abertas, nem demoras, nem palavras. Não é bonito. Mas há. E no entanto, nunca percebi, continuam por cá, continuam a ler-me, a visitar-me, como dantes, como sempre, sem palavras agora, mas de resto... Se calhar é bonito, se calhar um dia vou perceber que é bonito, até lá fico-me pelas evidências do sitemeter: há.
Ontem, depois do jantar, aconteceu uma coisa incrível: visitou-me uma pessoa de um sítio chamado Amor, uma localidade em Leiria. O sitemeter ensinou-me uma coisa importantíssima: o Amor fica em Leiria. Não fazia ideia. Leiria sempre me cheirou a sapatos.
Quando era miúda, todos os Verões, a partir de determinada altura, passava-os em Fátima com a minha tia. Nesses tempos, por uma qualquer razão obscura, na minha casa na Madeira, não se usava, a minha mãe não nos comprava, sandálias. Os Verões na Madeira era amenos, atravessavamo-los de sapatinho branco e soquetes - as de todos os dias: algodão com folhinho de renda no topo e as das saídas: todas de renda - pavorosas e de um desconforto...!, mas que a minha tia aprovava, muito lindas, muito lindas, as minhas meninas! no Verão madeirense. Já no Verão de Fátima, a história era outra e ditava que se fosse a Leiria, todos os Verões cada Verão, numa manhã estúpida de quente, e sempre a correr, o castelo lá em cima, estás a ver? vamos!, rápido, rápido, como se a busca que nos tinha conduzido àquele enooooorme centro urbano nos fosse absorver o dia. Nada disso. Em menos de meia manhã estávamos despachadas. E muito por causa da minha irmã Teresa.
A minha irmã Teresa sempre complicava a manhã à minha tia, mas eu não gosto dessas, gosto destas!, mas essas são feias, querida, não pode ser, aquelas ficam-te melhor, mas eu não gosto... Interminável. Eu sentada, eu a sorrir a ambas e até à senhora da sapataria, eu menina bonita, as sandálias que a tia me tinha escolhido dentro da caixa, eu pronta, eu a querer sair para a rua olhar o castelo por mais tempo que os três segundos regulamentares, eu à espera que o cansaço derrotasse a minha irmã Teresa e a minha tia levasse as suas sandálias avante, e a correr, como sempre.
Quando fui para a Faculdade, cheguei a passar alguns fins-de-semana, os maiores, em Fátima. Cheguei a mudar de autocarro em Leiria, à saída de um, cheiro a sapatos, à entrada para o outro, cheiro a sapatos, e o Castelo ali e o Castelo tão longe.
Tenho de ir a Leiria um dia destes, sem dúvida, e com tempo, para visitar Amor - aparentemente um sítio onde D. Dinis se teria perdido de amores por uma camponesa -, e perceber que aquele centro não cheirará apenas a sapatos, e perceber que o Castelo sobrevive a olhares de mais de três segundos, e perceber - já agora...- por que razão os amores régios tendem tanto para Sul.
Leiria, um dia destes, com tempo; para olhar o Castelo e espreitar essa terra encantada, Amor.
terça-feira, setembro 08, 2009
segunda-feira, setembro 07, 2009
O que não tem solução
No outro dia, era fim-de-semana e Agosto - a casa ainda estava sozinha e eu na casa, sozinha também, - eu a dormir como gente grande, e normal, ao fim-de-semana, eu a acordar às onze e a preparar e a comer o pequeno almoço - como eu gosto dos meus pequenos almoços de fim-de-semana!..., do meu suminho de laranja, da minha malga de fruta cortada aos quadradinhos, de croissants - se houver - e do resto de todos os dias que já não me apetece comer porque o dia começou mais tarde e a fruta, e pouca coisa pode superar a fruta..., - é então que vou tomar banho, na calma do fim-de-semana, e por isso, e as outras razões todas acima, pouco antes do meio dia - banhinho enquanto vou pensando onde me irei espreguiçar a seguir, coisa de poucos sábados, domingos, de Agosto, que foram mesmo-mesmo-mesmo de Verão no meu corpo.
A meio da varanda que é pequena demais - por causa das plantinhas, entre a marquise de trás que é demasiado quente e a da cozinha que é demasiado pequena, ouço o fim do mundo a vibrar na entrada. Não gosto de vibrações do fim-do-mundo. O fim-do-mundo está mais próximo do que se possa pensar, a varanda e a marquise tão longe..., porque para o fim-do-mundo, basta estar vivo, o fim-do-mundo é sempre um agora, e por isso, parei o banho, saí enrolada em sabão, gotas de mel e amêndoas ao longo do percurso até ao fim-do-mundo. Era a minha mãe. Para a conversa de fim-de-semana do costume. O fim-do-mundo ia ter que esperar. Na Madeira, tudo bem, a minha mãe, tudo bem - melhor só quando eu for para aí, não é? - não, mas eu gosto destes risos grandes, ruidosos e ocos, que lhe consigo arrancar sempre.
A minha máscara do cabelo, a tal de amêndoas e mel, é boa. Não chega a ser muito boa porque leva séculos a hidratar-me o cabelo como a antiga, mas cheira bem, muito bem até, muito melhor que a antiga. As mulheres e os cheiros. A minha máscara do cabelo, antes de pingar o chão a desenhar o percurso da casa-de-banho até ao fim-do-mundo, alagou-me o ouvido, e o telemóvel. A minha máscara do cabelo matou-me as defesas contra a gripe, essa peste que anda aí, e constipou-me, rios e rios de muco em lenços, de papel - têm que ser de papel -, e lágrimas super-sónicas a deslizar bochecha esquerda abaixo, apenas.
A minha máscara do cabelo matou-me o telemóvel, eu a pensar que o fim-do-mundo ia ter que esperar, eu a pensar que o epicentro do fim-do-mundo era no Funchal, e afinal era cá!, era bem no coração de cá, no meu telé, no coração do meu télé, aquela vibração, aquela vibração louca era o estertor do fim-do-mundo, do meu mundo. Das minhas amizades, das minhas sms, das minhas relações mais recentes, contactos que um cartão de telemóvel de meia-dúzia de anos não consegue já conter em si, contactos que vai delegando para a máquina que é perecível e não gosta de pingos de mel com amêndoas.
Eu devia saber. Não se guardam pessoas em máquinas. Não se gravam relações no coração de máquinas. O perecível apodrece o imperecível, não importa de que natureza for, um e outro.
A minha máscara do cabelo matou-me o telemóvel, eu a pensar que o fim-do-mundo ia ter que esperar, eu a pensar que o epicentro do fim-do-mundo era no Funchal, e afinal era cá!, era bem no coração de cá, no meu telé, no coração do meu télé, aquela vibração, aquela vibração louca era o estertor do fim-do-mundo, do meu mundo. Das minhas amizades, das minhas sms, das minhas relações mais recentes, contactos que um cartão de telemóvel de meia-dúzia de anos não consegue já conter em si, contactos que vai delegando para a máquina que é perecível e não gosta de pingos de mel com amêndoas.
Eu devia saber. Não se guardam pessoas em máquinas. Não se gravam relações no coração de máquinas. O perecível apodrece o imperecível, não importa de que natureza for, um e outro.
O que não tem solução, solucionado está. E cheira a amêndoas e mel.
domingo, setembro 06, 2009
sábado, setembro 05, 2009
sexta-feira, setembro 04, 2009
De filme
Eu não tenho nada contra a polícia. Eu gosto da polícia. Mas gosto mais de segurança.
Sou uma control freak. Não há control freak que não tenha necessidade de se saber seguro, não há control freak que não derive disso a sua capacidade para inspirar e expirar, inspirar e expirar, sucessivamente, todos os dias, e relativizar tudo aquilo que o inibiria de saltar de fora da cama para o meio da rua, cada dia. O campus da minha Universidade nos EUA tinha esquadra própria e agentes que, depois das dez e meia da noite, por exemplo, conduziam os alunos a casa. Segurança. Até no regresso à cama. Segurança.
Mas não há segurança que o poder não mine. O poder é tóxico. Há uma adrenalina no poder, uma vertigem que o poder dá, e que é perigisíssima, porque cega quem, por todas as razões - das mais obscuras às mais sociais, ou psicológicas ou, sei lá..., prosaicas... - não tiver real noção das consequências disso para a humanidade que há no outro.
Em Houston, quando calhava de sair mais tarde que o normal do Departamento, e, sem possibilidade de boleia, ia apanhar o autocarro das 06.05 no Medical Center - era sempre a única pessoa sentada naquele banco à espera do autocarro, o único que nunca tinha hora certa, o único que sempre se atrasava. Pessoal médico, às dezenas, a passar o cartão e a entrar nas portas automáticas do hospital atrás da paragem; pessoal médico, às dezenas, a passar o cartão e a entrar nas portas automáticas do hospital em frente à paragem, o carro do Sherriff do County a passar, a fazer a ronda do costume, às 06.00, eu à espera do autocarro. O mesmo novamente às 06.05 e eu ainda à espera do autocarro, sentada no banco, sozinha, eu a sentir-me muito pequenina, e portuguesa como nunca. O carro outra vez às 06.13, e eu depois de minúscula e verde e vermelha, círculo amarelo a meio do peito, sempre sozinha, eu angustiada - o deputy, que não tinha idade para ser sherriff, seria até mais novo que eu... - atira cá para fora o braço, a cabeça e o seu melhor sorriso, o vidro todo descido, o tempo parado, a janela a ficar cada vez mais pequena, o sorriso, cada vez maior..., até se encolher, até se recolher, e de novo prosseguir a ronda. Eu a enganar a espera: eu a verificar na minha a cabeça toda a documentação que pode ser pedida a um cidadão estrangeiro, os documentos da Universidade, o visto e os documentos da Embaixada, os documentos dos serviços de Emigração, os documentos do Seguro de Saúde, toda a documentação que sempre tinha na mala, mala tão grande, mala tão cheia... Às 06.17, eu sozinha, eu com o pânico, uma companhia terrível, mas melhor que aquele sorriso de janela aberta, melhor que novo sorriso que eu pedia ao tempo para retardar o mais possível, melhor que Hey Miss, everything ok?, eu atordoada, eu automaticamente, Yes, sir. Evrything is ok, sir. Waiting for the 06.05 pm bus, sir. Here he comes, thank you, sir. Nunca mais, mais nunca mais depois disso, esperei pelo autocarro das 06.05.
Mas há pior: há quem não seja novo e tenha a noção perfeita do alcance do estatuto, do posto e do poder, e das consequências respectivas, e por isso mesmo, especialmente por isso, (ab)use do estatuto, do posto e do poder que tem para se divertir a testar limites, os limites da humanidade do outro. Como naquela cena horrorosa do Crash - há filmes que eu não devia ver definitivamente.
Quando a minha irmã mais nova começou a andar, o meu irmão - dois anos mais velho - levava-a pela mão a ver tudo em todo o quintal da minha avó: depois do jardim, as laranjeiras, depois das laranjeiras, a vinha, depois da vinha, os cães, depois dos cães, as galinhas, depois das galinhas, o porco, depois do porco, e pereira e a nespereira e o pessegueiro. E depois disto, nada. Nâo havia mais nada para ver no quintal. Então, os carros. O meu irmão abria o portão, sentava-se, sentavam-se ambos - estavam de mãos dadas -, no passeio e era assim, presa no trânsito da nossa rua, que a tarde corria realmente veloz.
Um dia era Verão, um dia nas férias sempre demasiado grandes para nós nesses tempos na Madeira, e, à hora do lanche, lá em casa ninguém sabia dos dois. Toda à gente à procura dos piolhinhos pelo jardim, debaixo das laranjeiras, nespereira fora. Lembrei-me dos carros, corri para o portão, abri-o bem no momento em que eles, em pé, mãos dadas ao predador lá do sítio se preparavam para nem quero pensar, O que é que se passa?; Nada, nada, estavam aqui a ver os carros, eu pensei que dia bonito para dar um passeio, mas agora, deixe estar, tome-os lá.
Não sei o que há em mim, o que dou de mim aos outros, quando pergunto 'O que é que se passa?' - eu conheço-me: sou muito menina - menina a cumprimentar, menina a perguntar, menina a esperar a resposta, menina a não responder de volta, menina a despedir-se boa tarde! - não sei o que passo a estas pessoas, o que se passa com estas pessoas, que, esquisitas, me respondem sempre 'Nada' duas vezes. Eu a sair ontem da Biblioteca, eu a correr para o outro lado da rua de encontro ao meus dois mais novos. Boa tarde, senhor agente, o que é que se passa? Nada, nada, a sua amiga estava aqui à sua espera muito nervosa, eu apenas a adverti para, mas agora deixe estar, nem sei por que chora, não vai levar multa nem nada, tome lá os documentos.
Sei eu. Só se chora, e assim, quando alguém nos belisca a segurança pessoal, e isso, vindo de quem vem, é grave, senhor agente.
quinta-feira, setembro 03, 2009
The harpy project
A minha mala anda a desfazer-se. A minha mala favorita, a que nem uso muito, agora, anda a desfazer-se muito a cada manhã, um bocadinho à hora do almoço, o mesmo muito das manhãs ao fim de cada dia. Chovem-me flocos do material sintético com que a pintaram, qualquer coisa assim a dar um ar próximo de cabedal – por baixo desse quase lustro está uma espécie de algodão reles... – chovem-me flocos disso, reposa-se-me descansada esta caspa bege – a minha mala é bege – nos ombros, no peito, na barriga, nos braços, pelo braço acima, ou abaixo – nunca sei, fizeram-me desorientada, funciono a subires e desceres de ruas, humores, e outras coisas mais ou menos do género –, de qualquer maneira: fora, pelo braço fora.
Não sei como uma mala que uso tão pouco, que estimo tanto, pode desfazer-se assim. Não sei. Não sei como pode ter a coragem de me fazer isto – pôr-se em bocados, impossibilitar a nossa convivência diária – sujar-me; recusar a nossa coexistência pacífica – rasgar-se; desfazer-se de mim – desfazendo-se primeiro; obrigar-me a deitá-la fora – deixar-me, deixar-me sozinha, antes do fim. Não é justo. Eu devia poder decidir quando – eu é que a escolhi, e comprei, afinal.
Tenho para mim que a culpa não é dela. Ela não se quer desfazer de mim – são muitos anos já, e o que ela chegou a ver, e o que vivemos, e o que construímos, e sempre em paz: nunca discutimos, nunca discordámos, pensamos sempre primeiro no bem-estar da outra – o bem-estar da outra é o nosso bem-estar – sempre nos demos bem, já disse, muito bem até. A culpa é dos olhares no comboio. A culpa é daquela harpia que entra na Trofa, aquela que não sabe olhar e deixa os olhos pregados nela – no material sintético com que pintaram a minha mala – a meia-hora da viagem, aquela que quando não consegue um lugar sentado de frente para a mala, manda a sede que voe atrás de mim, e tão ávida, tão violenta, tão veloz, que faça balançar o Arco da Porta Nova, manda a fome que meta pela transversal mais próxima do meu cafézinho de todas as manhãs, para enfim sorver a minha mala em flocos antes de ir para a sua missinha na Sé. A culpa é dessa harpia.
A minha mala desistiu de mim por causa dela. A minha mala nunca vai ser dela. É estéril todo aquele apetite, toda a velocidade, os voos super-sónicos, os embates à entrada do café, e quando não, as visitas à Biblioteca no fim da hora do almoço, a minha mala não, a minha mala nunca, a minha mala é só minha. Damo-nos optimamente, até hoje, nunca tivemos problemas, até hoje. Sempre foi assim, desde o início foi assim, tão bem, damo-nos tão bem! ...
Vou levar a minha mala a consertar – vai ficar como nova!, tudo vai voltar ao normal, ao que era dantes, ao que sempre foi. Vou passar a vir noutro comboio de manhã – num mais tarde, mais vazio de harpias, mais são. Vou tomar o meu cafézinho de todos os dias mais tarde – acabaram-se os embates!... Vou mudar de sala na Biblioteca – vou para o deserto que é a sala de cima, o deserto da sala de cima tem daqueles compartimentos para o computador, e daqueles para os livros, e é, como todos os desertos, sossegado de distracções: adeus, Jeff Buckley a ler o Jornal de Notícias, adeus cinco anos de gente a correr atrás da bola, adeus caracolinhos loiros ao vento, adeus primeiro amor bonito, adeus vista que não há no deserto para o jardim exterior da Biblioteca. Adeus, vai ter de ser.
Mas nunca vou deixar a minha mala. A minha mala nunca me vai deixar também. Fomos feitas uma para a outra. Se existimos, é para nos acompanharmos e sermos felizes. A vida toda. As duas. Sem mais.
Não sei como uma mala que uso tão pouco, que estimo tanto, pode desfazer-se assim. Não sei. Não sei como pode ter a coragem de me fazer isto – pôr-se em bocados, impossibilitar a nossa convivência diária – sujar-me; recusar a nossa coexistência pacífica – rasgar-se; desfazer-se de mim – desfazendo-se primeiro; obrigar-me a deitá-la fora – deixar-me, deixar-me sozinha, antes do fim. Não é justo. Eu devia poder decidir quando – eu é que a escolhi, e comprei, afinal.
Tenho para mim que a culpa não é dela. Ela não se quer desfazer de mim – são muitos anos já, e o que ela chegou a ver, e o que vivemos, e o que construímos, e sempre em paz: nunca discutimos, nunca discordámos, pensamos sempre primeiro no bem-estar da outra – o bem-estar da outra é o nosso bem-estar – sempre nos demos bem, já disse, muito bem até. A culpa é dos olhares no comboio. A culpa é daquela harpia que entra na Trofa, aquela que não sabe olhar e deixa os olhos pregados nela – no material sintético com que pintaram a minha mala – a meia-hora da viagem, aquela que quando não consegue um lugar sentado de frente para a mala, manda a sede que voe atrás de mim, e tão ávida, tão violenta, tão veloz, que faça balançar o Arco da Porta Nova, manda a fome que meta pela transversal mais próxima do meu cafézinho de todas as manhãs, para enfim sorver a minha mala em flocos antes de ir para a sua missinha na Sé. A culpa é dessa harpia.
A minha mala desistiu de mim por causa dela. A minha mala nunca vai ser dela. É estéril todo aquele apetite, toda a velocidade, os voos super-sónicos, os embates à entrada do café, e quando não, as visitas à Biblioteca no fim da hora do almoço, a minha mala não, a minha mala nunca, a minha mala é só minha. Damo-nos optimamente, até hoje, nunca tivemos problemas, até hoje. Sempre foi assim, desde o início foi assim, tão bem, damo-nos tão bem! ...
Vou levar a minha mala a consertar – vai ficar como nova!, tudo vai voltar ao normal, ao que era dantes, ao que sempre foi. Vou passar a vir noutro comboio de manhã – num mais tarde, mais vazio de harpias, mais são. Vou tomar o meu cafézinho de todos os dias mais tarde – acabaram-se os embates!... Vou mudar de sala na Biblioteca – vou para o deserto que é a sala de cima, o deserto da sala de cima tem daqueles compartimentos para o computador, e daqueles para os livros, e é, como todos os desertos, sossegado de distracções: adeus, Jeff Buckley a ler o Jornal de Notícias, adeus cinco anos de gente a correr atrás da bola, adeus caracolinhos loiros ao vento, adeus primeiro amor bonito, adeus vista que não há no deserto para o jardim exterior da Biblioteca. Adeus, vai ter de ser.
Mas nunca vou deixar a minha mala. A minha mala nunca me vai deixar também. Fomos feitas uma para a outra. Se existimos, é para nos acompanharmos e sermos felizes. A vida toda. As duas. Sem mais.
quarta-feira, setembro 02, 2009
A minha selecção
A minha selecção era a do Vítor Baía, do Fernando Couto, do Paulo Sousa e do Rui Costa, do Domingos, do Paulinho Santos e do João Vieira Pinto. A minha selecção era esta, mas era mais o Vítor Baía, eu a esgoelar-me por ela, mas mais pelas faltas sobre o Vítor Baía, pelos penalties injustos contra o Vítor Baía, pelos azares da defesa que não defendia o Vítor Baía, eu submissa às minhas goelas, as minhas goelas, órgão aútonomo e subversivo, a única coisa a mandar em mim, eu a enfurecer a minha mãe, a boa educação que sempre me deu a minha mãe, eu a assustar o meu pai, o sossego a que sempre habituei o meu pai, eu, a minha selecção, o Vítor Baía – basicamente, nas revistas que enchiam a mesa de cabeceira, nos posters a quererem saltar para as paredes – a minha boa educação a deixá-los, dobradinhos como vinham nas revistas, a delimitar a matéria de História ou Filosofia que me faltava resumir.
Mas nem era nesta selecção que estava a pensar. Queria falar do senhor que tem um labrador preto, idade para ser meu avô e uma cegueira inexplicável para o ridículo que é alguém assim contar o tempo desde que assomo, às seis e cinquenta e cinco, à esquina da minha rua com a Costa Cabral, para se por a mexer – mas lentamente, muuuuuiiiito lentamente – do semáforo em que se plantou ao fundo da rua, com o labrador à frente, quatro olhos binoculares na distância a perscrutarem-me à procura de sensibilidade, quatro olhos a se cruzarem comigo no talho bem a meio da rua, dois olhos de baba escudados pelo labrador, dois olhos da maior lata bem atrás do labrador, dois olhos para dentro do boné, o homem todo escondido, o homem todo sumido, de fora só o nariz, o nariz para o meu pesçoço, o nariz para o meu decote, o nariz para o meu perfume, o homem todo nariz, nariz só, todos os dias à mesma hora, se eu deixasse, acaso não lhe trocasse as voltas... Queria então contar da minha selecção de todos os dias. Queria contar das ruas que atravesso antes da passadeira do costume para não, dos cumprimentos que não alimento, daqueles que até me escuso a dar, dos atalhos por que me meto, dos prédios que contorno para não, queria contar da net, dos convites que vou deixando pendentes, das respostas que aborto a e-mails que me aparecem na caixa de entrada como cogumelos, queria contar desta coisa que é capaz de nem ser viver bem, mas é saber viver, pelo menos para mim.
Não percebo isto de as pessoas todas quererem entrar na convocatória para a nossa selecção principal, para a nossa selecção pessoal. Como se ser convocado fosse sinónimo de estar vivo, estar vivo, uma obsessão bruta, – bonito mundo, este! –, o contrário de estar morto a tornar-se uma obsessão entre a gente, o contrário de estar morto a se afirmar, a entrar sem bater, a forçar as janelas, bruto! de exigente, violento de sequioso, – como se o outro fosse um lugar onde é urgente, necessário, imperioso, vital, estar vivo; o contrário de estar morto, imposto, estranho, diferente, esquecido do desprendimento e da naturalidade que é estar vivo, daquele estar vivo que se sente todos os dias, naturalmente, porque faz sol e queremos chorar ou porque chove torrencialmente e não há guarda-chuvas por perto e o cabelo vai encaracolar; porque o dia está correr bem ou porque não está: acordou-se com os pés frios e do lado errado da cama; por toda e qualquer razão que mexa connosco; daquele estar vivo que é estar com o outro, mas só alguns, ser no outro, mas só alguns, e à conta daquela centelha divina e inexplicável - aquele Vítor Baía..., as minha goelas a quererem ressuscitar-me a obediência... -, que para o resto há o banco, e as pendências, e todas as ruas paralelas do mundo.
Ainda ontem ao almoço falava disto com a Ana Catarina. As pessoas não sabem ser especiais. Acham que isso é uma coisa que se conquista. Acham que aos olhos dos outros. Acham que pela imposição. Não é. É algo que, alheio a tudo, se nos nasce e brota de nós até aos olhos dos outros - que são, sempre e apenas, alguns.
E o que isso é bom, bonito, natural, precioso e vivo. E o que isso é real.
Mas nem era nesta selecção que estava a pensar. Queria falar do senhor que tem um labrador preto, idade para ser meu avô e uma cegueira inexplicável para o ridículo que é alguém assim contar o tempo desde que assomo, às seis e cinquenta e cinco, à esquina da minha rua com a Costa Cabral, para se por a mexer – mas lentamente, muuuuuiiiito lentamente – do semáforo em que se plantou ao fundo da rua, com o labrador à frente, quatro olhos binoculares na distância a perscrutarem-me à procura de sensibilidade, quatro olhos a se cruzarem comigo no talho bem a meio da rua, dois olhos de baba escudados pelo labrador, dois olhos da maior lata bem atrás do labrador, dois olhos para dentro do boné, o homem todo escondido, o homem todo sumido, de fora só o nariz, o nariz para o meu pesçoço, o nariz para o meu decote, o nariz para o meu perfume, o homem todo nariz, nariz só, todos os dias à mesma hora, se eu deixasse, acaso não lhe trocasse as voltas... Queria então contar da minha selecção de todos os dias. Queria contar das ruas que atravesso antes da passadeira do costume para não, dos cumprimentos que não alimento, daqueles que até me escuso a dar, dos atalhos por que me meto, dos prédios que contorno para não, queria contar da net, dos convites que vou deixando pendentes, das respostas que aborto a e-mails que me aparecem na caixa de entrada como cogumelos, queria contar desta coisa que é capaz de nem ser viver bem, mas é saber viver, pelo menos para mim.
Não percebo isto de as pessoas todas quererem entrar na convocatória para a nossa selecção principal, para a nossa selecção pessoal. Como se ser convocado fosse sinónimo de estar vivo, estar vivo, uma obsessão bruta, – bonito mundo, este! –, o contrário de estar morto a tornar-se uma obsessão entre a gente, o contrário de estar morto a se afirmar, a entrar sem bater, a forçar as janelas, bruto! de exigente, violento de sequioso, – como se o outro fosse um lugar onde é urgente, necessário, imperioso, vital, estar vivo; o contrário de estar morto, imposto, estranho, diferente, esquecido do desprendimento e da naturalidade que é estar vivo, daquele estar vivo que se sente todos os dias, naturalmente, porque faz sol e queremos chorar ou porque chove torrencialmente e não há guarda-chuvas por perto e o cabelo vai encaracolar; porque o dia está correr bem ou porque não está: acordou-se com os pés frios e do lado errado da cama; por toda e qualquer razão que mexa connosco; daquele estar vivo que é estar com o outro, mas só alguns, ser no outro, mas só alguns, e à conta daquela centelha divina e inexplicável - aquele Vítor Baía..., as minha goelas a quererem ressuscitar-me a obediência... -, que para o resto há o banco, e as pendências, e todas as ruas paralelas do mundo.
Ainda ontem ao almoço falava disto com a Ana Catarina. As pessoas não sabem ser especiais. Acham que isso é uma coisa que se conquista. Acham que aos olhos dos outros. Acham que pela imposição. Não é. É algo que, alheio a tudo, se nos nasce e brota de nós até aos olhos dos outros - que são, sempre e apenas, alguns.
E o que isso é bom, bonito, natural, precioso e vivo. E o que isso é real.
terça-feira, setembro 01, 2009
Ui, não!
Então, hoje trouxe o maior coração do mundo ao peito, aquele que comprei no Chiado uma vez ao Senhor Eloy, depois de todas as recomendações sobre o tamanho, depois de todas as prelecções sobre a desmesura, depois das sugestões mais ou menos desesperadas do senhor Eloy – o dedo indicador do senhor Eloy a apontar na montra este, menina, então e este?, não prefere?, de certeza, menina?. Não, com a exclamação, o peso, a força, diminuídos todos pelo sorriso; um sorriso largo a embrulhar a negativa – é sempre tão bonito quem nos chama menina!...
O senhor Eloy não conhece a menina que quando compra, é irrevogavelmente, é a pontilhar o -i- de destino, as alternativas todas lá fora, à porta, as sugestões todas, quietas, do outro lado do balcão. O senhor Eloy não sabe da menina que, quando se encosta ao dito balcão e se inclina a olhar melhor, é porque já tomou posse, e há muito, com todos os outros sentidos, daquilo que, há muito, desde aquela primeira hora, na montra. O senhor Eloy não sabe mas teve a delicadeza de assentir, muito bem, menina, e embrulhar – à séria e ainda mais delicadamente do que o seu imediato assentimento polido – que ainda que seja para si, menina, uma prenda é sempre uma prenda.
Uma prenda é sempre uma prenda. Não sei bem o que o senhor Eloy quis dizer com isto. Sei que há nas prendas a probabilidade mais ou menos certa de elas nos darem um sorriso novo – é assim quando somos miúdos –, é assim antes de nós sermos adultos e o Natal ser sempre que quisermos e os aniversários também, tantas vezes ao longo do ano, todos os dias – quem dera! – excepto no próprio... O senhor Eloy devia querer dizer-me que prenda que é prenda, pode ser prenda mesmo quando é de nós para nós, tem o condão de nos fazer um bocadinho, e por momentos, felizes. Se calhar foi por isso que esta manhã, sem mais, decidi pô-lo ao pescoço. Se calhar não foi por isso, se calhar foi porque o top é castanho-terra e o fio do coração, curiosamente, também. Se calhar, ainda, não foi por nenhuma das razões acima; se calhar foi porque Agosto acabou finalmente e no finalmente em que cada Agosto acaba, recomeço a viver. (E diz que para isso é preciso um coração. Nem que seja fora do peito, nem que seja a pender do pescoço, nem que seja oco, e de prata.)
A meio da manhã desta manhã de Setembro, relembro-me que é Setembro, tempo de não adiar o regresso à Faculdade, a ver se é desta que Biblioteca de lá está aberta, que Agosto foi mês de tudo menos férias, de tudo menos trabalho, de tudo menos aqueles livros, aquela pilha de livros que vejo com sobre-humana nitidez de todas as vezes, sempre, quando calha de fechar os olhos, um, dois livros que se amontoaram oito, doze, na lista que cresceu, cresceu, cresceu, dos livros amontoados aos livros a requisitar, cresceu, exactamente como eu queria que crescessem os dias e o sol e a minha disposição para esses mesmos dias e para o sol.
Doutora Joana, que grande coração!, está apaixonada?! Eu, Ui, não!, eu sem perceber o nexo de causalidade, eu a perguntar-me se o senhor Eloy conheceria o meu interlocutor, eu a esquecer-me de perguntar das férias a quem as tem realmente, eu a pensar no senhor Eloy – o dedo indicador do senhor Eloy a apontar na montra este, menina, então e este?, não prefere?, de certeza, menina? –, eu a ouvir o senhor Eloy dizer de certeza, menina?, uma prenda é sempre uma prenda, eu a tentar descortinar o condão das prendas, destas prendas que damos a nós próprios para uso depois de finalmentes de Agostos e outros meses em que o castanho-terra do fio vai bem com o castanho do top.
Enfim.
O senhor Eloy não conhece a menina que quando compra, é irrevogavelmente, é a pontilhar o -i- de destino, as alternativas todas lá fora, à porta, as sugestões todas, quietas, do outro lado do balcão. O senhor Eloy não sabe da menina que, quando se encosta ao dito balcão e se inclina a olhar melhor, é porque já tomou posse, e há muito, com todos os outros sentidos, daquilo que, há muito, desde aquela primeira hora, na montra. O senhor Eloy não sabe mas teve a delicadeza de assentir, muito bem, menina, e embrulhar – à séria e ainda mais delicadamente do que o seu imediato assentimento polido – que ainda que seja para si, menina, uma prenda é sempre uma prenda.
Uma prenda é sempre uma prenda. Não sei bem o que o senhor Eloy quis dizer com isto. Sei que há nas prendas a probabilidade mais ou menos certa de elas nos darem um sorriso novo – é assim quando somos miúdos –, é assim antes de nós sermos adultos e o Natal ser sempre que quisermos e os aniversários também, tantas vezes ao longo do ano, todos os dias – quem dera! – excepto no próprio... O senhor Eloy devia querer dizer-me que prenda que é prenda, pode ser prenda mesmo quando é de nós para nós, tem o condão de nos fazer um bocadinho, e por momentos, felizes. Se calhar foi por isso que esta manhã, sem mais, decidi pô-lo ao pescoço. Se calhar não foi por isso, se calhar foi porque o top é castanho-terra e o fio do coração, curiosamente, também. Se calhar, ainda, não foi por nenhuma das razões acima; se calhar foi porque Agosto acabou finalmente e no finalmente em que cada Agosto acaba, recomeço a viver. (E diz que para isso é preciso um coração. Nem que seja fora do peito, nem que seja a pender do pescoço, nem que seja oco, e de prata.)
A meio da manhã desta manhã de Setembro, relembro-me que é Setembro, tempo de não adiar o regresso à Faculdade, a ver se é desta que Biblioteca de lá está aberta, que Agosto foi mês de tudo menos férias, de tudo menos trabalho, de tudo menos aqueles livros, aquela pilha de livros que vejo com sobre-humana nitidez de todas as vezes, sempre, quando calha de fechar os olhos, um, dois livros que se amontoaram oito, doze, na lista que cresceu, cresceu, cresceu, dos livros amontoados aos livros a requisitar, cresceu, exactamente como eu queria que crescessem os dias e o sol e a minha disposição para esses mesmos dias e para o sol.
Doutora Joana, que grande coração!, está apaixonada?! Eu, Ui, não!, eu sem perceber o nexo de causalidade, eu a perguntar-me se o senhor Eloy conheceria o meu interlocutor, eu a esquecer-me de perguntar das férias a quem as tem realmente, eu a pensar no senhor Eloy – o dedo indicador do senhor Eloy a apontar na montra este, menina, então e este?, não prefere?, de certeza, menina? –, eu a ouvir o senhor Eloy dizer de certeza, menina?, uma prenda é sempre uma prenda, eu a tentar descortinar o condão das prendas, destas prendas que damos a nós próprios para uso depois de finalmentes de Agostos e outros meses em que o castanho-terra do fio vai bem com o castanho do top.
Enfim.
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