quinta-feira, setembro 03, 2009

The harpy project

A minha mala anda a desfazer-se. A minha mala favorita, a que nem uso muito, agora, anda a desfazer-se muito a cada manhã, um bocadinho à hora do almoço, o mesmo muito das manhãs ao fim de cada dia. Chovem-me flocos do material sintético com que a pintaram, qualquer coisa assim a dar um ar próximo de cabedal – por baixo desse quase lustro está uma espécie de algodão reles... – chovem-me flocos disso, reposa-se-me descansada esta caspa bege – a minha mala é bege – nos ombros, no peito, na barriga, nos braços, pelo braço acima, ou abaixo – nunca sei, fizeram-me desorientada, funciono a subires e desceres de ruas, humores, e outras coisas mais ou menos do género –, de qualquer maneira: fora, pelo braço fora.

Não sei como uma mala que uso tão pouco, que estimo tanto, pode desfazer-se assim. Não sei. Não sei como pode ter a coragem de me fazer isto – pôr-se em bocados, impossibilitar a nossa convivência diária – sujar-me; recusar a nossa coexistência pacífica – rasgar-se; desfazer-se de mim – desfazendo-se primeiro; obrigar-me a deitá-la fora – deixar-me, deixar-me sozinha, antes do fim. Não é justo. Eu devia poder decidir quando – eu é que a escolhi, e comprei, afinal.

Tenho para mim que a culpa não é dela. Ela não se quer desfazer de mim – são muitos anos já, e o que ela chegou a ver, e o que vivemos, e o que construímos, e sempre em paz: nunca discutimos, nunca discordámos, pensamos sempre primeiro no bem-estar da outra – o bem-estar da outra é o nosso bem-estar – sempre nos demos bem, já disse, muito bem até. A culpa é dos olhares no comboio. A culpa é daquela harpia que entra na Trofa, aquela que não sabe olhar e deixa os olhos pregados nela – no material sintético com que pintaram a minha mala – a meia-hora da viagem, aquela que quando não consegue um lugar sentado de frente para a mala, manda a sede que voe atrás de mim, e tão ávida, tão violenta, tão veloz, que faça balançar o Arco da Porta Nova, manda a fome que meta pela transversal mais próxima do meu cafézinho de todas as manhãs, para enfim sorver a minha mala em flocos antes de ir para a sua missinha na Sé. A culpa é dessa harpia.

A minha mala desistiu de mim por causa dela. A minha mala nunca vai ser dela. É estéril todo aquele apetite, toda a velocidade, os voos super-sónicos, os embates à entrada do café, e quando não, as visitas à Biblioteca no fim da hora do almoço, a minha mala não, a minha mala nunca, a minha mala é só minha. Damo-nos optimamente, até hoje, nunca tivemos problemas, até hoje. Sempre foi assim, desde o início foi assim, tão bem, damo-nos tão bem! ...

Vou levar a minha mala a consertar – vai ficar como nova!, tudo vai voltar ao normal, ao que era dantes, ao que sempre foi. Vou passar a vir noutro comboio de manhã – num mais tarde, mais vazio de harpias, mais são. Vou tomar o meu cafézinho de todos os dias mais tarde – acabaram-se os embates!... Vou mudar de sala na Biblioteca – vou para o deserto que é a sala de cima, o deserto da sala de cima tem daqueles compartimentos para o computador, e daqueles para os livros, e é, como todos os desertos, sossegado de distracções: adeus, Jeff Buckley a ler o Jornal de Notícias, adeus cinco anos de gente a correr atrás da bola, adeus caracolinhos loiros ao vento, adeus primeiro amor bonito, adeus vista que não há no deserto para o jardim exterior da Biblioteca. Adeus, vai ter de ser.

Mas nunca vou deixar a minha mala. A minha mala nunca me vai deixar também. Fomos feitas uma para a outra. Se existimos, é para nos acompanharmos e sermos felizes. A vida toda. As duas. Sem mais.

4 comentários:

Vanessa disse...

hummm... o jeff buckley a ler o jn? ai ai! :p

se fores tão tarada por malas como eu estás lixada. são sempre todas insubstituíveis! ihihih! e, lá está, também não suporto esses olhares. é que sou mesmo capaz de perder a boa educação que me deram...

beijinho*

Joana disse...

Vanessa,

Sim, sim, o próprio do Jeff Buckey. ;)

Pois temos essa perdição e essa intolerância em comum. :)))))))))

Já deitei a mala fora, snif, quanto ao resto é claro que a única coisa que vou realmente fazer é ir de férias, como planeado, que não sou nada de deixar lugares e rotinas por tão pouco... Eheheh! ;)


Jinhos.

Maria Rita disse...

Sabes uma coisa? Há olhos que matam... Mas eu acho que a tua mala vai sobreviver a isso tudo! :)

Beijinhos*

Joana disse...

Frida,

É verdade. (As coisas que tu, tão nova, já sabes...)


A mala não sei, mas eu sobrevivo de certeza. É dom que tenho. ;)


Jinhos.