sexta-feira, setembro 04, 2009

De filme

Eu não tenho nada contra a polícia. Eu gosto da polícia. Mas gosto mais de segurança.

Sou uma control freak. Não há control freak que não tenha necessidade de se saber seguro, não há control freak que não derive disso a sua capacidade para inspirar e expirar, inspirar e expirar, sucessivamente, todos os dias, e relativizar tudo aquilo que o inibiria de saltar de fora da cama para o meio da rua, cada dia. O campus da minha Universidade nos EUA tinha esquadra própria e agentes que, depois das dez e meia da noite, por exemplo, conduziam os alunos a casa. Segurança. Até no regresso à cama. Segurança.

Mas não há segurança que o poder não mine. O poder é tóxico. Há uma adrenalina no poder, uma vertigem que o poder dá, e que é perigisíssima, porque cega quem, por todas as razões - das mais obscuras às mais sociais, ou psicológicas ou, sei lá..., prosaicas... - não tiver real noção das consequências disso para a humanidade que há no outro.

Em Houston, quando calhava de sair mais tarde que o normal do Departamento, e, sem possibilidade de boleia, ia apanhar o autocarro das 06.05 no Medical Center - era sempre a única pessoa sentada naquele banco à espera do autocarro, o único que nunca tinha hora certa, o único que sempre se atrasava. Pessoal médico, às dezenas, a passar o cartão e a entrar nas portas automáticas do hospital atrás da paragem; pessoal médico, às dezenas, a passar o cartão e a entrar nas portas automáticas do hospital em frente à paragem, o carro do Sherriff do County a passar, a fazer a ronda do costume, às 06.00, eu à espera do autocarro. O mesmo novamente às 06.05 e eu ainda à espera do autocarro, sentada no banco, sozinha, eu a sentir-me muito pequenina, e portuguesa como nunca. O carro outra vez às 06.13, e eu depois de minúscula e verde e vermelha, círculo amarelo a meio do peito, sempre sozinha, eu angustiada - o deputy, que não tinha idade para ser sherriff, seria até mais novo que eu... - atira cá para fora o braço, a cabeça e o seu melhor sorriso, o vidro todo descido, o tempo parado, a janela a ficar cada vez mais pequena, o sorriso, cada vez maior..., até se encolher, até se recolher, e de novo prosseguir a ronda. Eu a enganar a espera: eu a verificar na minha a cabeça toda a documentação que pode ser pedida a um cidadão estrangeiro, os documentos da Universidade, o visto e os documentos da Embaixada, os documentos dos serviços de Emigração, os documentos do Seguro de Saúde, toda a documentação que sempre tinha na mala, mala tão grande, mala tão cheia... Às 06.17, eu sozinha, eu com o pânico, uma companhia terrível, mas melhor que aquele sorriso de janela aberta, melhor que novo sorriso que eu pedia ao tempo para retardar o mais possível, melhor que Hey Miss, everything ok?, eu atordoada, eu automaticamente, Yes, sir. Evrything is ok, sir. Waiting for the 06.05 pm bus, sir. Here he comes, thank you, sir. Nunca mais, mais nunca mais depois disso, esperei pelo autocarro das 06.05.

Mas há pior: há quem não seja novo e tenha a noção perfeita do alcance do estatuto, do posto e do poder, e das consequências respectivas, e por isso mesmo, especialmente por isso, (ab)use do estatuto, do posto e do poder que tem para se divertir a testar limites, os limites da humanidade do outro. Como naquela cena horrorosa do Crash - há filmes que eu não devia ver definitivamente.

Quando a minha irmã mais nova começou a andar, o meu irmão - dois anos mais velho - levava-a pela mão a ver tudo em todo o quintal da minha avó: depois do jardim, as laranjeiras, depois das laranjeiras, a vinha, depois da vinha, os cães, depois dos cães, as galinhas, depois das galinhas, o porco, depois do porco, e pereira e a nespereira e o pessegueiro. E depois disto, nada. Nâo havia mais nada para ver no quintal. Então, os carros. O meu irmão abria o portão, sentava-se, sentavam-se ambos - estavam de mãos dadas -, no passeio e era assim, presa no trânsito da nossa rua, que a tarde corria realmente veloz.

Um dia era Verão, um dia nas férias sempre demasiado grandes para nós nesses tempos na Madeira, e, à hora do lanche, lá em casa ninguém sabia dos dois. Toda à gente à procura dos piolhinhos pelo jardim, debaixo das laranjeiras, nespereira fora. Lembrei-me dos carros, corri para o portão, abri-o bem no momento em que eles, em pé, mãos dadas ao predador lá do sítio se preparavam para nem quero pensar, O que é que se passa?; Nada, nada, estavam aqui a ver os carros, eu pensei que dia bonito para dar um passeio, mas agora, deixe estar, tome-os lá.

Não sei o que há em mim, o que dou de mim aos outros, quando pergunto 'O que é que se passa?' - eu conheço-me: sou muito menina - menina a cumprimentar, menina a perguntar, menina a esperar a resposta, menina a não responder de volta, menina a despedir-se boa tarde! - não sei o que passo a estas pessoas, o que se passa com estas pessoas, que, esquisitas, me respondem sempre 'Nada' duas vezes. Eu a sair ontem da Biblioteca, eu a correr para o outro lado da rua de encontro ao meus dois mais novos. Boa tarde, senhor agente, o que é que se passa? Nada, nada, a sua amiga estava aqui à sua espera muito nervosa, eu apenas a adverti para, mas agora deixe estar, nem sei por que chora, não vai levar multa nem nada, tome lá os documentos.

Sei eu. Só se chora, e assim, quando alguém nos belisca a segurança pessoal, e isso, vindo de quem vem, é grave, senhor agente.

8 comentários:

Maria Rita disse...

A cinematografia dos States (dos Sheriffs dos States) tão bem descrita!
E acho que, por vezes, quem nos deveria proteger é que nos torna inseguros.

Beijinho*

Joana disse...

Frida,

;)

Pois é, problema bicudo: como resolver isso?





Jinhos.

Vanessa disse...

...

*

Joana disse...

Vanessa,


Yep. Também andei assim ... ontem à noite.


O uso da força pela força é uma arma terrível.



Jinhos.

Maria Rita disse...

Joaninha, tenho a impressão que [infelizmente] não há solução para isso!

Beijinhos*

Joana disse...

Frida,

E é boa, certa!, a impressão.

Os outros são como nós, todos. Nada mais, nada menos que nós próprios e a nossa circunstância - já dizia e bem o Ortega y Gasset.

;)

Jinhos.

Oásis disse...

FDP! É só o que me ocorre sobre essa pessoa que abusou do poder que tem. O poder é uma responsabilidade grande, não uma arma. Se toda a gente se queixasse dele, isso não aconteceria.

Joana disse...

Marisa,

O pior é que estas pessoas não abusam de quem possa se queixar delas... :S




Jinhos.