É Outono. A chuva chega amanhã. A neura e os meus pés gelados chegaram ontem. Os marmelos, as abóboras e a amêndoa picadinha, para o doce, tudo, no próximo fim-de-semana. Antes de ir para casa de férias, antes das minhas férias fora de tempo, fora de época, que o Verão já terminou e as vindimas, fá-las-á o meu pai, hoje e amanhã, sem mim - muito sem mim -, antes que venha a chuva, filha.
É Outono. As camisolas e as meias começam a piscar-me os olhos, os meus olhos começam a assentir rendidos. A mantinha da minha avó desdobra-se da minha cadeira de baloiço. Abro a janela ao vento e antecipo o cheiro a terra molhada. Encosto-me, fecho os olhos. Todo o amarelo do mundo e todo o vermelho da vida impressos em chãos de folhas secas molhadas. Plátanos. Um plátano a marcar a página de um livro, uma história. Um plátano, uma história de Outono.
É Outono. E tudo voltou ao que era antes do calor. Manhãs mais frias, dias mais curtos, noites mais como as manhãs. Aquela dificuldade em sair da cama, só mais um bocadinho, só mais outro, só mais muitos bocadinhos, que ainda está escuro... O escuro a complicar-me os dias, a empurrar-me para o café, a reduzir-me as opções de janelas boas para trabalhar no regresso, a não ser amigo. O escuro a não ser meu amigo. Eu que preciso de luz como de água para viver, bem.
É Outono. Miúdos, cadernos dobrados nos bolsos, miúdos mais miúdos, mochilas, bolas, as ruas a ficarem muito estreitas a certas horas, o metro a ficar muito apertado às mesmas horas, o senhor a demorar três vezes mais para me trazer um café. Eu a não ter força para soprar para o lado, eu a não ter ânimo para desesperar. Eu a olhar janela fora a pensar - assim que chegar a casa faço um chá, castanhas é que era bom que já houvesse, o senhor do Marquês mais dia menos dia está de volta e com ele, as castanhas mais quentinhas do Universo.
É Outono.
Se deste outono uma folha,
apenas uma, se desprendesse
da sua cabeleira ruiva,
sonolenta,
e sobre ela a mão
com o azul do ar escrevesse
um nome, somente um nome,
seria o mais aéreo
de quantos tem a terra,
a terra quente e tão avara
de alegria.
apenas uma, se desprendesse
da sua cabeleira ruiva,
sonolenta,
e sobre ela a mão
com o azul do ar escrevesse
um nome, somente um nome,
seria o mais aéreo
de quantos tem a terra,
a terra quente e tão avara
de alegria.
Eugénio de Andrade
8 comentários:
O meu Outono começou ontem, quando saí fora de casa e senti a necessidade imeensa de um casaco. E soube tão bem. :)
Beijinho*
Firda,
O meu também! E por um motivo bem parecido: fui até Matosinhos, à praia, bem no final do dia, para pensar e não consegui: frio e chuva - o Outono no seu melhor. ;)
Jinhos.
o meu poema preferido de outono:
Soubesse eu que me aceitas
Sentisse eu nos meus passos a firmeza que tem
nos seus a criança que vai para a escola
levada pelos olhos imensos da mãe
tivesse todo o meu ser a configuração
bastante pra caber na tua longa mão
e lá morrer essa mão onde todas as loucuras são
possíveis fosse a tua presença mais do que eu não ter
mais ninguém a meu lado
Não estivesse eu sujeito ao inverno que vem
mais carregado de memórias do que ninguém
E eu não procuraria este meu nome em vão
na folha que descreve o vento
nesta fronte onde vêm repousar as moscas
fronteira do meu pensamento
nas crianças de gestos decisivos
ou noutros pobres seres transitórios
(Nem tanta servidão precisaria para libertar
umas simples palavras do tempo)
Viesses tu beleza sempre antiga e sempre nova
encher aquela mão que abre
dentro de mim a inquietação
e a minha humilde prece tomaria a forma
do mais agudo ângulo das tuas duas mãos
onde toda a paisagem triangular termina
O teu silêncio ondularia menos que qualquer planície
tão pouco ambíguo como não sei que nuvem
Colhesses um por um os meus passos dispersos
achasses-me nos meus perdidos versos
e eu não repousaria nas ideias que estendo como mantas
nalgum pinhal à hora da sesta perto do mar
O teu lugar
seria sempre no côncavo do sonho
eu não me esqueceria
de agora ou logo ir-te lá buscar
E nestas tardes que sobre nós desdobras
passariam as dobras dos cuidados
Em nós quaisquer outonos morreriam
Ruy Belo
(suspiro, pois.)
beijinho grande*
Vanessa,
Ora isto é que dava um post.
A minha vénia agradecida por isto. :)))))))
Tiveste um dia bom? :D
Jinhos.
um dia ma-ra-vi-lho-so! :)
beijo*
Ao ler senti uma enorme vontade de correr para a minha casa de campo, enrolar-me na mantinha, andar com ela arrastada atrás de mim pela casa enquanto ia fazer café quente, mas café de saco, só gosto desse... depois, de café na mão, pego num livro, um romance, um romance muito impossível... que venha o Outono é mais quente no meu coração...
Belo texto,
um beijinho
só me apetece arranjar uma cadeirinha de baloiço, igual à tua, pô-la do teu lado, servir-me do teu chá e ouvir-te falar do outono.
que lindo, lindo, lindo, linda menina*
Ana Salomé,
Hás-de cá vir, menina :P, e cedo-ta por uma tarde, ou mais, até se esgotar todo o chá e toda a conversa... :D
Jinhos.
Enviar um comentário