O meu pai costuma dizer que sou uma rapariga velha. Demasiado velha para a minha idade. Que as minhas irmãs não são assim, que o meu irmão não é assim, que as minhas primas, que ele, que a minha mãe, que, na verdade, pensando bem, não conhece ninguém assim. O meu pai é capaz de ter razão. Na verdade, pensando bem, nunca fui uma criança igual às outras. Nunca fui uma adolescente igual às outras. E agora, coerentemente, não sou uma mulher igual às outras.
Quando era miúda, as diferenças passavam despercebidas porque as razões das diferenças eram exteriores a mim: não houve doença infantil que não tivesse apanhado - era uma miúda bexigosa, amarela, conjuntivitante, alergolófila e tudo o mais que se possa imaginar e não se deseja a ninguém. Na adolescência, as diferenças já eram mais visíveis, nunca fui a uma única festa de aniversário, mas como esse período é sempre tão instável, variável, inexplicável, novamente razões exteriores a mim disfarçaram a ausência de convites, perdão: as diferenças.
Agora não. Não há doenças, nem dramas existenciais, os convites chovem em torrentes, não há nada - uma peneira que seja para tapar o sol. E o meu pai não se conforma que eu vá para casa, de férias, por exemplo, e prefira passar o dia a dissecar álbuns antigos, mesmo antigos, a fazer sestas, a escrever vidas, fantasias e outras impressões; o meu pai não se conforma que eu prefira terminar o dia, todos os dias, a olhar o mar, a Baía do Funchal da nossa varanda, ao invés de sair, o meu pai não se conforma que eu prefira enrolar-me na mantinha da minha avó a ler ou a ver filmes, todas as tardes, dias a fio, férias afora, em vez de sair. Com eles, com amigos, com amigas, sozinha.
O meu pai gosta muito de sair. E a minha mãe foi-lhe ganhando o gosto. Coisas de anos e anos de marital convivência. O meu pai não gosta de levar-me à Fnac, e gosta de livros e filmes e cds, o meu pai não gosta de quando eu compro uma jóia, e gosta de coisas bonitas, o meu pai não gosta de - preferia que estoirasse aquele dinheiro numa viagem, num fim-de-semana, num jantar, que o resto são coisas para deixar mais para a frente, para o futuro, para a velhice.
Não percebo isto de a velhice ser mais para a frente. Para mim a velhice é agora. Para algumas pessoas que conheço a velhice é nunca, para outras é-o desde sempre. Como o Amor. A velhice, como o Amor, não chega a toda a gente ao mesmo tempo - ali por volta dos sessenta quase setenta - não; a velhice, como o Amor, pode chegar aos sete ou aos dezassete, aos trinta ou aos oitenta, ou nunca. Pode nunca chegar, a velhice, como o Amor. Coisas da vida.
Por uma série de razões profissionais, dei comigo nos últimos tempos a comprar uma quantidade de alfarrábios - coisa para que sempre pensei só ter dinheiro muito, mas muito, mais para a frente. Se o meu pai sabe...
Há uma alegria calma, um encanto muito diferente, a beleza em forma de sossego, que os anos e as vidas que os possuíram dão aos livros e de que eles se libertam, juntamente com o cheirinho bom a papel amarelecido, a cada virar de página. Um halo de vida, de vidas. Mais para a frente, noutras mãos, num outro colo, um bocadinho, uma vibração que seja, de mim?
6 comentários:
Revejo-me nas tuas palavras e em casa as palavras não diferem muito das tuas...
Mas não compro: "dei comigo nos últimos tempos a comprar uma quantidade de alfarrábios"
Sílvio,
Ehehehehehe!!! Pois. Haja paciência e um sorriso para os pais. Afinal, só nos querem bem.
Acabei esta manhã de reler o Para averiguar do seu grau de pureza, do JLPires. Não é alfarrábio, mas já vai escasseando nas prateleiras das livrarias e o meu já se apresenta próximo da velhice. ;)
Jinhos.
Eu tenho comprado uns clássicos numa livraria pequenina, antiga, em Guimarães. Não sei se serão em segunda mão, mas são edições antigas, de 1970 para baixo, e as páginas estão muito longe de serem branquinhas, e as capas muito longe de serem grossas e envernizadas. Mas eu gosto deles assim, e, não sei porquê dá um gostinho especial lê-los, apesar de passar a vida a esconde-los das famílias que também dizem que não são para a minha idade. :))
Um beijinho*
Frida,
:D
Entendemo-nos, portanto.
Jinhos.
Ainda não tinha lido, como escreves bem a mocidade que vivo e como lhe chamas velhice ;) Escreves tão bem, JJ, e tens tanta razão quando dizes que ambos velhice e Amor não têm idade para chegar... Pareço uma criança a ouvir as palavras sábias da avó, por isso na sabedoria a velhice assenta-te muito bem :)
Um beijinho
Maria,
O teu comentário não fica nada atrás das minhas palavras, no encanto e na sabedoria da leitura que fazes. ;)
Jinhos.
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