quarta-feira, setembro 02, 2009

A minha selecção

A minha selecção era a do Vítor Baía, do Fernando Couto, do Paulo Sousa e do Rui Costa, do Domingos, do Paulinho Santos e do João Vieira Pinto. A minha selecção era esta, mas era mais o Vítor Baía, eu a esgoelar-me por ela, mas mais pelas faltas sobre o Vítor Baía, pelos penalties injustos contra o Vítor Baía, pelos azares da defesa que não defendia o Vítor Baía, eu submissa às minhas goelas, as minhas goelas, órgão aútonomo e subversivo, a única coisa a mandar em mim, eu a enfurecer a minha mãe, a boa educação que sempre me deu a minha mãe, eu a assustar o meu pai, o sossego a que sempre habituei o meu pai, eu, a minha selecção, o Vítor Baía – basicamente, nas revistas que enchiam a mesa de cabeceira, nos posters a quererem saltar para as paredes – a minha boa educação a deixá-los, dobradinhos como vinham nas revistas, a delimitar a matéria de História ou Filosofia que me faltava resumir.

Mas nem era nesta selecção que estava a pensar. Queria falar do senhor que tem um labrador preto, idade para ser meu avô e uma cegueira inexplicável para o ridículo que é alguém assim contar o tempo desde que assomo, às seis e cinquenta e cinco, à esquina da minha rua com a Costa Cabral, para se por a mexer – mas lentamente, muuuuuiiiito lentamente – do semáforo em que se plantou ao fundo da rua, com o labrador à frente, quatro olhos binoculares na distância a perscrutarem-me à procura de sensibilidade, quatro olhos a se cruzarem comigo no talho bem a meio da rua, dois olhos de baba escudados pelo labrador, dois olhos da maior lata bem atrás do labrador, dois olhos para dentro do boné, o homem todo escondido, o homem todo sumido, de fora só o nariz, o nariz para o meu pesçoço, o nariz para o meu decote, o nariz para o meu perfume, o homem todo nariz, nariz só, todos os dias à mesma hora, se eu deixasse, acaso não lhe trocasse as voltas... Queria então contar da minha selecção de todos os dias. Queria contar das ruas que atravesso antes da passadeira do costume para não, dos cumprimentos que não alimento, daqueles que até me escuso a dar, dos atalhos por que me meto, dos prédios que contorno para não, queria contar da net, dos convites que vou deixando pendentes, das respostas que aborto a e-mails que me aparecem na caixa de entrada como cogumelos, queria contar desta coisa que é capaz de nem ser viver bem, mas é saber viver, pelo menos para mim.

Não percebo isto de as pessoas todas quererem entrar na convocatória para a nossa selecção principal, para a nossa selecção pessoal. Como se ser convocado fosse sinónimo de estar vivo, estar vivo, uma obsessão bruta, – bonito mundo, este! –, o contrário de estar morto a tornar-se uma obsessão entre a gente, o contrário de estar morto a se afirmar, a entrar sem bater, a forçar as janelas, bruto! de exigente, violento de sequioso, – como se o outro fosse um lugar onde é urgente, necessário, imperioso, vital, estar vivo; o contrário de estar morto, imposto, estranho, diferente, esquecido do desprendimento e da naturalidade que é estar vivo, daquele estar vivo que se sente todos os dias, naturalmente, porque faz sol e queremos chorar ou porque chove torrencialmente e não há guarda-chuvas por perto e o cabelo vai encaracolar; porque o dia está correr bem ou porque não está: acordou-se com os pés frios e do lado errado da cama; por toda e qualquer razão que mexa connosco; daquele estar vivo que é estar com o outro, mas só alguns, ser no outro, mas só alguns, e à conta daquela centelha divina e inexplicável - aquele Vítor Baía..., as minha goelas a quererem ressuscitar-me a obediência... -, que para o resto há o banco, e as pendências, e todas as ruas paralelas do mundo.

Ainda ontem ao almoço falava disto com a Ana Catarina. As pessoas não sabem ser especiais. Acham que isso é uma coisa que se conquista. Acham que aos olhos dos outros. Acham que pela imposição. Não é. É algo que, alheio a tudo, se nos nasce e brota de nós até aos olhos dos outros - que são, sempre e apenas, alguns.

E o que isso é bom, bonito, natural, precioso e vivo. E o que isso é real.

7 comentários:

ana salomé disse...

assim, especial como tu, com um guarda-chuva de chocolate na mão de todos os dias, doces ou amargos, mas sempre especiais. Não só aos olhos dos outros as pessoas são especiais, mas também aos olhos do mundo. E os olhos do mundo são, cedo ou tarde, sempre certeiros.*

beijinho enorme*

Joana disse...

Ana Salomé,

Oh! :*

Relembro à menina que os guarda-chuva de chocolate vão passando de mão em mão. Sempre certeiros, também.

;)

Jinhos.

Ouriço-Cacheiro disse...

Qualquer dia fazem um workshop que ensina a ser especial. Com imensa adesão. Uma mina. Admira-te...

Joana disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Joana disse...

Ouriço,

Não me admiro não, que as técnicas são sempre as mesmas, coisa de uma mesma corrente, uma mesma teoria, uma escola única.

E sim, uma mina!, que não sei como mas de certeza esta gente se multiplica por geração espontânea ou coisa que o valha, que são mais que as mães e dispostos a tudo... :/

;)

Jinhos.

Vanessa disse...

ai o víctor baía e os posters, meninaaaaa! do que me foste lembrar! :) quando tal éramos duas a suspirar feitas crentes... ihihih!

olha, é como tu bem sabes:

«Não é apenas algo de precioso que dois seres se reconheçam, é essencial que se encontrem no bom momento e celebrem em conjunto profundas e silenciosas festas que os fundam nos seus desejos, de modo ... a poderem estar unidos perante as tempestades...»

e - para encontros desses - só mesmo a vida. real sentida e vivida. foi assim que te encontrei a ti. e não me venhas dizer que não sabes ser especial, rapariga! senão eu chamo a selecção em peso para te dar nas orelhas! :p

beijinho*

Joana disse...

Vanessa,

Ehehehe!!! Acho que os posters puseram uma geração inteira de miúdas aos suspiros - no mínimo...

E sim, percebeste tudo, percebeste-me bem. Como sempre. ;)


Jinhos.