Esse tinha sido um ano desportivamente muito difícil para o Porto: diferenças pontuais mínimas, surpresas a cada jornada, assimetrias norte-sul levadas literalmente ao rubro pelos “rubros” e pelos nossos também (convenhamos!) e a morte do Rui Filipe. O Rui Filipe era aquele rapazito loirinho, endiabrado com a bola nos pés, aquele rapazito com um ar típico de galã, uma loucura, uma festa e tantas piadas sempre na ponta da língua, prontas a descongelar o mais taciturno dos rostos… Época 92/93…(?)
Bem, o Porto ganhou o campeonato, agradeceu aos adeptos, dedicou-o (e bem) ao Rui Filipe e naquele domingo todos fomos um (até eu (!), a partir da Madeira, estava lá bem no meio do um!) e tudo foi festa no Estádio das Antas! “We are the Champions, my friends!”Adeus equipamentos, olá água, olá champagne! Olá FESTA!!!
Quando, nessa última jornada, se ouviu os Queen, eu que até esse momento não conhecia a música, senti um baque por dentro. A emoção da descoberta. Demorei-me em cada palavra e saboreei-a a cada imagem. Por entre abraços e sorrisos, gritos, cânticos e pulos de felicidade, na loucura e na alegria… Fartei-me de chorar.
Então, para mim, desde esse momento, a música, “We are the Champions”, tornou-se sinónimo de um certo sorriso, de uma certa loucura, de uma euforia colectiva, de uma modalidade de um clube em particular… da celebração da aquisição do título maior do futebol português pelo FCP.
É obvio que já a ouvi em outras circunstâncias, mas a gavetinha da memória que se abre está forrada a azul e branco e apenas contém FCP. No seu melhor. Já a ouvi quando outros clubes alcançaram o título, mas não teve o mesmo significado. É como se fosse outra música. Já ouvi quando outras modalidades, até mesmo do universo azul e branco, alcançaram títulos igualmente importantes, mas a música continua a ser outra. Acabo de a ouvir via RFM, com dedicatória politicamente correcta do responsável da emissão (fica registado) para o FCP. E aproveitei para fechar os olhos. E voltei a demorar-me em cada palavra. Voltaram as imagens – dessa época, das seguintes, da Champions…, voltou a alegria, voltaram as lágrimas, voltou o sorriso.
Reflexo imediato: Google. Tinha de ver as imagens de sábado, as imagens da sagração em Penafiel, tinha de procurar o sorriso, tinha de o encontrar, por favor, tinha de estar algures por entre a euforia… Tinha??? Devia…! Devia??? Podia…! Podia??? Porquê? Por todas as razões. Mas principalmente por uma: o banco, a antecâmara do mundo dos mortos, os Infernos. Lembra-te do banco. O BANCO. E, quando já imaginava Caronte, remando vagarosamente no Estige, com uma barca cheia e o meu deus-sorriso, desconfortável e apertado, a aportarem no Hades, não é que surgiu uma fotografia e essa imagem apenas bastou para me acordar do torpor e assim reduzir o meu cepticismo, e respectivo devaneio mitológico, à sua óbvia insignificância. Estava. Lá. Bem no meio da euforia que a alegria sempre contém. Com a mesma loucura, com a mesma ternura. Tal como da primeira vez, há treze anos atrás.
Pasmei. (embora já devesse estar habituada – é profundamente naïf e até infantil uma pessoa surpreender-se a cada momento!) Pasmei porque é incrível como, desde há treze anos, aquele sorriso se mantém assim! Puro. O cabelo esbranquiçou-se, o olhar está cansado, as rugas já espreitam, uma magreza – para mim inesperada – surgiu, mas o espírito ganhador está lá, a confiança e a segurança também, o sorriso de menino mantém-se.
… o sorriso de menino … mesmo do banco…
A minha irmã foi ao Dragão a semana passada, aguardou a chegada da comitiva, fez parte da festa, seguiu tudo de perto, e fala-me da inefabilidade de um sorriso que atravessa o tempo e desafia a vida. Fala-me de valores, liderança, modelos de vida, sabedoria e loucura. Fala-me de um mar de gente, uma cidade inteira, “We are the Champions, my friends!”, que grita um único nome (de quem será?), um mar de gente, uma cidade inteira, “We are the Champions, my friends!”, que honra um clube, um mar de gente, uma cidade inteira, “We are the Champions, my friends!”, que tem uma estima e um orgulho tão grandes que extravasam qualquer tipo de barreiras ou limites que o nosso intelecto possa construir. A minha irmã já não se surpreende, disse-me, por minha causa. Porque eu passei anos a fio a dizer que não havia no mundo uma escala para medir o talento do meu deus-futebolista-azul-e-branco, nem sequer ninguém à sua altura para o avaliar e muito menos comparar. Porque eu passei anos a dizer que o meu clube era o melhor do mundo por todas as razões, circunstâncias e contingências possíveis e inteligíveis… e, muito especialmente, porque soubera manter o meu deus.
Há quase três anos que moro no Porto, e, naturalmente, me farto de cruzar com o meu deus na rua, no centro comercial, na praia e no café. E, apesar da divindade permanecer indelevelmente na inefabilidade do sorriso, o meu deus já não é deus. Eu também já não tenho doze anos… E moro, por mero acaso ou coincidência, a minutos do Estádio do Dragão. Obviamente, as minhas obrigações profissionais não me permitem estar lá todos os Domingos (se fosse há uns anos atrás…), mas de quando em vez lá vou espreitar os actuais deuses, respirar um pouco de azul e sobretudo entrar e aninhar-me por momentos no colo daquele universo mágico. Naquele apoio, notável, contagiante, naquela massa humana, transbordante de paixão, naquele recinto, pleno de alma.
Estava no Porto quando ganhámos, “We are the Champions, my friends!”, a Champions League. E, por muito que os mais velhos digam que as celebrações têm vindo a perder o vigor e a autenticidade a cada ano que passa, trago na memória uma imagem (ou várias) que guardarei para sempre no coração: o cachecol azul e branco. O cachecol da senhora da peixaria, dos adolescentes no autocarro, do motorista do outro autocarro, do médico-assistente no São João, de várias pessoas no comboio para Braga. O meu cachecol azul e branco na aula. “We are the Champions, my friends!”
Porque no Porto todo este apego faz sentido e é, à boa maneira nortenha, despretensioso e espontâneo. Porque o clube limpa o céu, apaga o cinzento dos dias e das almas e anima os jovens. Porque o clube, como o pão, alimenta e sustenta os sonhos de quem trabalha desde a madrugada até à noitinha. Porque não é o clube que ganha, é o “nós”, colectivo, que constitui a cidade. “We are the Champions, my friends!”
Porque o clube é da cidade. Porque o clube é a cidade. Para o exterior. Porque só a cidade, pátria, berço, mãe, casa, que lhe deu o nome, a postura e o carácter, só a cidade no que tem de colectivo, intrínseco e mais autêntico, pode explicar a magia. “We are the Champions, my friends!”
Porque o clube tem esta mística que admiro, abraço, cultivo, mas me transcende. Tal como a constância do sorriso, sempre doce e juvenil, do meu outrora deus-azul-e-branco transcende a compreensão humana.
FCP Campeão Nacional - época 2005/2006.