domingo, abril 09, 2006

SINGULARIDADES DE UM GUARDA-CHUVA COR-DE-LARANJA

Muitas coisas na vida são inexplicáveis. O tudo (ou o nada) que eu sou é inexplicável. Absolutamente inexplicável. Inusitado. Estranho. Extraordinário, às vezes, para alguns. Diferente. Orgulhosamente diferente, para mim.

Quando eu era pequena tinha um guarda-chuva cor de laranja.
Em boa verdade, laranja era apenas o fundo do tecido. Além disso, tinha padrões de leves linhas azuis claras, umas, e castanhas, outras, que ou eram verticais, ou se entrecruzavam ambas. Não sei ao certo. Essas linhas terminavam, cada uma, com um desenho magnífico de uma rosa branca, de contornos castanhos, que coincidia com a bolinha branca que prendia o tecido à vareta, na borda do guarda-chuva. As linhas coincidiam com as varetas, as flores com as bordas do dito. A pega, em forma de caracol, era branca, e de plástico, e a base – ponto de apoio do guarda-chuva fechado –, no mesmo material, tinha uma forma encantadoramente esférica. Não era uma sombrinha. Não tinha folhos, nem rendas. E certamente haveria outros muito mais bonitos. Era apenas um entre muitos guarda-chuvas de criança. Mas era o MEU guarda-chuva. Eu gostava dele. Inexplicavelmente. Como tudo aquilo de que gosto.
Recordo-me dele ao pormenor, mas quando me dizem que sempre fui uma criança sui generis (!) – bonomia parental típica – quanto mais não fosse porque passava o tempo toda agarrada a um guarda-chuva e desprezava as bonecas e até os carrinhos que, em desespero de causa, os meus pais tinham comprado para mim, tudo fica turvo e se esvai nas brumas da memória. Bonecas? Carrinhos? Não me recordo.
“De trapos, de lã, de louça, Barbies, Cindies, Kens, peluches, bebés-chorões, carecas, coelhinhos à Duracell...” Não sei. Não me lembro. Lembro-me vagamente...
“Lá está, eram-te mesmo indiferentes!” Ainda o são. Hoje. Actualmente.
Mas lembro-me do guarda-chuva laranja. E da Pantera Cor-de-Rosa. Aparentemente, os meus únicos companheiros de lazer. Os únicos que me despertavam o interesse. Para espanto de toda a gente. Admito que uma Pantera Cor-de-Rosa em pelúcia, quase do meu tamanho nessa época, não é certamente o brinquedo prototípico das meninas. E apesar de ter estado muito em voga no dealbar dos anos 80, quando nasci – até porque estava a passar na televisão em desenhos animados, poucas crianças de tenra idade terão simpatizado com a figura desconcertantemente descontraída da pantera. Além do que a acutilância, a inteligência e a crítica personificadas por esta singular personagem tinham, julgo, como público-alvo uma faixa etária bem mais madura. Aliás, de menina a pantera só tem mesmo a cor. Os critérios para tão peculiar e porventura apurada selecção? Nem eu sei. Por isso, entendo naturalmente o espanto, a estranheza dos adultos e até a frustração da inexplicabilidade que o inusitado contém. Sempre. Não sei como não me levaram a um psicólogo. Na verdade, suponho que escapei à consulta do especialista por ser uma criança muito pacata: nunca fazia ondas, não mexia em nada, nunca saia do lugar e falava muito pouco. Preferia observar. Se calhar daí adveio o fascínio pela Cor e talvez o critério que tenha presidido à selecção e eleição desses dois “porta-brinquedos” tenha sido esse mesmo. Eis, então, uma explicação possível. Talvez…
A Cor.
Recordo-me, com efeito, dos livros de colorir que, da mesma forma, me costumavam entreter (e muito!), mas só até ao momento em que descobri a pintura, no infantário. Duvido que em tão tenra idade me tivesse apercebido da função catártica subjacente ao exercício, ofício, sacramento, devoção a qualquer arte ou da respectiva capacidade criativa, alternativa, individual, grupal, humana e humanista. Mas adorava pintar. E criava. Das minhas mãos saíam telas lindíssimas. Absolutamente fantásticas. Ou tanto quanto o podem ser as pinturas de uma criança de quatro anos. Até há bem pouco tempo tinha a minha primeira “obra de arte” pendurada no meu quarto, em frente à cama. E, a cada noite, de cada vez que ia dormir, olhava para aquele turbilhão de cores – as mais das vezes por entre um suspiro de êxtase e o friozinho bom que o contentamento coloca normalmente no estômago – e ouvia dizer dentro: “Fui eu que fiz!” Outras vezes olhava para aquela sopa de arco-íris, um arco-íris muito próprio, sui generis – como diriam os meus pais –, característico, meu… com uma saudade, um aperto e uma pena… De não poder saltar para dentro do amarelo. De não me poder esvair e misturar com o laranja. De não conseguir agarrar o vermelho e respirar o verde. De o tempo não poder voltar para trás. De não mais ser criança. De não mais pintar. De não mais saber pintar. De não mais poder espreitar para dentro do caleidoscópio, cair no precipício, desintegrar-me na admirável pluritonalidade da cor e criar.
O quadro acompanhou-me quase um quarto de século e depois foi-se, quebrado acidentalmente por alturas das limpezas de Verão. O guarda-chuva não cresceu comigo, tornou-se inadequado, esbranquiçou-se pelo uso e pela fidelidade. Foi-se. A Pantera Cor-de-Rosa não acompanhou o meu crescimento, tornou-se inadequada, e foi perdendo a cor e a suavidade, envelheceu. Foi-se. A pintura ficou com a infância. Nem sei porquê. E este facto é tão inexplicável como a minha adoração pelo guarda-chuva em detrimento das bonecas.

O quadro foi-se, tal como o guarda-chuva cor de laranja, a Pantera Cor-de-Rosa, a pintura e a infância.
Ficou a cor.
Em mim. Na Natureza. No mundo. Na vida.
Nas folhas, nas flores e nos frutos; na pele; no entardecer e no amanhecer; nos cabelos; nas paredes, nas portas e nas janelas; nos olhos; na luz, nos reflexos e na sombra; nos céus; no chão, na terra, nos rios e no mar; nos animais; na noite e no dia; nas nuvens e nas estrelas; no sol e na lua; em mim... e em nós...

Ficou a Cor: fascínio, criação, enleio, vertigem, poesia, vida.

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