Porque é Domingo de manhã lembrei-me, no caminho para a missa, do cheiro do colorau dos bifes da minha mãe. O cheiro do pós-missa. O cheiro do Domingo.
Admito que seja ridículo, quase hilariante, este menu dominical, mas nós comíamos bifes em molho de colorau, louro, alho e vinho, com arroz branco e salada, ao meio-dia em ponto, vindos da missa das dez e meia, todos os Domingos, quando éramos miúdos. E passávamos a semana toda a suspirar pela chegada do Domingo, precisamente por causa do arroz e dos bifes. E da salada, claro! Que na minha casa toda a gente sempre comeu de tudo. E gostou. De tudo. Sempre. É uma questão de educação, suponho, hábitos que vêm quase do berço.
Tenho plena consciência de que isto será certamente absurdo para as pessoas do continente, para quem essa comida é a do quotidiano. E acredito que até mesmo para a grande maioria dos meus conterrâneos o seja também. Mas madeirenses haverá que me entendem na perfeição. A culinária madeirense é absolutamente diversa da continental.
Então, durante a semana, como ambos os meus pais trabalhavam (e trabalham ainda!), ficávamos nós, as flores do quintal, a casa e, consequentemente, as refeições, ao encargo da minha avó. Esqueci-me de referir um facto importante: Vivíamos com os nossos avós. Os pais e os meninos.
E a minha avó, do alto dos seus setenta e muitos anos, não conhecia a Filipa Vacondeus ou o Michel e respectivas receitas (graças a Deus!), desconhecia as últimas da “Saberes e Sabores” e nem sequer a existência da “Teleculinária”, pelo que almôndegas, rissóis, esparguete à bolonhesa, rojões, lasagna, e até bifes estavam a anos-luz do seu universo culinário. Mas era uma cozinheira de mão-cheia. Inultrapassável. Inalcançável. Fazia o melhor arroz de couve do mundo, o peixe mais delicioso do universo (de qualquer maneira que o confeccionasse); um cozido “à madeirense” sem comparação; frequentes sopas de massa (do mais típico manjar madeirense: sopa de couve, feijão, abóbora, semilha/batata, batata doce, pepinela/chu-chu e carne); milho (papas de milho amarelo, o ex-libris da gastronomia madeirense, pollenta na terminologia da nouvelle cuisine), muito milho, ora com cavalas em molho de vilhão; ora com atum fresco em azeite e vinagre, com salsa e cebola, ora com bacalhau em azeite, vinagre, salsa, cebola, alho e pimenta – este último conduto é que deu azo às familiarmente célebres competições de tolerância do ardor das pimentas entre o meu avô e a minha pessoa, aos cinco anos de existência.
Tudo era preparado com antecedência, cuidado e profissionalismo. A minha avó preparava o molho para toda a gente, os comuns mortais; o meu avô para nós, os competidores. Isto porque o molho da minha avó era tolerável por toda a gente e isso invalidava a nossa contenda. E para o meu avô, “…molho que é molho tem que arder, não prometer que arde!” E lá íamos nós, rindo, a maior parte do tempo tossindo, mas o facto é que acabávamos sempre com o prato de comida (e eu com a água do copo!) num instante. E ganhava-lhe muitas vezes. Tenho a certeza, porém, de que ele me deixava ganhar. Ele dizia que não e contava, impressionado e orgulhoso, o feito aos meus pais ao fim do dia. A minha avó não gostava do concurso. Dizia que o meu avô era maluco e até mais criança do que eu. E quando desatávamos os dois a tossir – da pimenta, claro! – ria-se, ria-se muito antes de ficar muito séria e dar-nos uma decompostura de todo o tamanho. Às duas crianças.
Então, durante a semana, devorávamos, deliciados, os manjares madeirenses da minha avó. Ao fim-de-semana, cozinhava a minha mãe e então comíamos bacalhau com todos, empadão (de carne, peixe, atum…), peixe no forno, esparguete com costeletas, feijoada, frango assado e bifes. E o arroz, a acompanhar, era sempre branco. Nós pasmávamos e comíamos tão avidamente com os olhos quanto deglutíamos aquele arroz, colorido apenas pelo molho dos bifes. A minha avó tinha pavor a arroz branco, o arroz tinha que ser de couve ou cenoura ou ervilhas ou feijão. Branco, nunca! Bem, nós gostávamos da alternância e julgo que ela, lá no fundo, também; apesar dos reparos constantes, as mais das vezes irrelevantes, ao labor culinário da minha mãe. Se calhar é por isso que até hoje a minha mãe continua a achar que não sabe cozinhar. Que quem sabia era a minha avó. E que como ela só eu.
Eu acho que como a minha avó ninguém. Como a minha mãe ninguém. Como eu ninguém.
A culinária é como uma impressão digital. Cada um tem a sua marca. Única e irrepetível. Incomparável. Inigualável.
Os cozinhados da minha avó eram deliciosos. Um admirável exercício de sabedoria com certeza “de experiência feita”, equilíbrio e criatividade que faria as delícias de qualquer gastrónomo. Ela tinha a extraordinária capacidade de tornar tudo e qualquer coisa verdadeiramente apetecível e saboroso. Muito embora, com franqueza, sopa de massa nunca mais (!) e milho só muito de vez em quando (mas frito, a qualquer hora!). Enjoei. Mas por outras razões que nada têm a ver com o dom culinário da minha avó. Outras histórias.
Os cozinhados da minha mãe são deliciosamente únicos. Têm o sabor do Amor. Não sei como explicar; há um sabor, para além do sabor de cada alimento, que é diferente, que é o sabor da minha mãe. Quando estava no Secundário, a minha mãe fazia-me sandes (imposição minha) para o almoço. Às vezes eu ajudava-a, porque éramos quatro e as aulas começavam às oito da manhã. Então, à uma da tarde, quando almoçava, sabia sempre quais eram as sandes saídas das mãos da minha mãe. E demorava-me a comê-las. Demorava-me nela. No seu Amor.
Mas estávamos a falar de colorau, de bifes e da doce recordação de Domingos passados. Dos Domingos em que éramos invariavelmente oito (dois pais, dois avós, e quatro crianças), todavia às vezes nove (um tio), à mesa. Dos Domingos de azáfama, intermináveis histórias de feitos e façanhas do clã – os mesmos episódios a cada Domingo –; das descrições tristes e emocionadas de episódios de pobreza, amargura e até alguma má sorte de alguns antepassados; da partilha dos pontos altos (ou baixos) da semana; das adivinhas e das anedotas; das sonoras gargalhadas da minha mãe; das imitações dos famosos a cargo do meu pai, “humorista”, – desde o padre da freguesia ao primeiro-ministro, passando por cantores, actores, jornalistas… –; dos risos e tropelias à mesa; da ordem pré-estabelecida dos lugares, por questões de logística, funcionalidade e conforto – certamente, fruto de muito estudo parental –; dos copos que entornavam e manchavam a toalha de linho alvíssima; dos talheres que caíam para debaixo da mesa; das brincadeiras dos quatro que estes deslizes da cutelaria promoviam; dos beliscões parentais quando a brincadeira demorava muito e a comida arrefecia; das cotoveladas e olhares de reprovação maternos quando a mão ia à travessa ou a faca à boca.
Enchíamos aquela sala. De vida.
Agora somos seis, às vezes sete, à mesa, no máximo – que é raro – sete Domingos por ano. Agora cozinho eu, ou o meu pai, ou uma das minhas irmãs, ou o meu irmão. Para gáudio e sorte da minha mãe (e por mérito dela também): toda a gente sabe e tem gosto em cozinhar. Raramente fazemos bifes. As tropelias já não são as mesmas. E apesar de também os tempos serem outros, de nós termos crescido e já nem vivermos na ilha com eles, a epopeia dos ascendentes narrada pela minha mãe tem sempre lugar cativo à mesa, tal como as anedotas e imitações do meu pai, e a partilha da semana de trabalho, mais ou menos caricata, que findou. A azáfama, o barulho, a alegria e os risos permanecem. Intactos. Continuam com a mesma frescura, doce, espontânea e inocente da infância.
Mais esporadicamente é certo, mas continuamos a encher a mesma sala. De vida.
Hoje é Domingo e lembrei-me do cheiro do colorau dos bifes.
Admito que seja ridículo, quase hilariante, este menu dominical, mas nós comíamos bifes em molho de colorau, louro, alho e vinho, com arroz branco e salada, ao meio-dia em ponto, vindos da missa das dez e meia, todos os Domingos, quando éramos miúdos. E passávamos a semana toda a suspirar pela chegada do Domingo, precisamente por causa do arroz e dos bifes. E da salada, claro! Que na minha casa toda a gente sempre comeu de tudo. E gostou. De tudo. Sempre. É uma questão de educação, suponho, hábitos que vêm quase do berço.
Tenho plena consciência de que isto será certamente absurdo para as pessoas do continente, para quem essa comida é a do quotidiano. E acredito que até mesmo para a grande maioria dos meus conterrâneos o seja também. Mas madeirenses haverá que me entendem na perfeição. A culinária madeirense é absolutamente diversa da continental.
Então, durante a semana, como ambos os meus pais trabalhavam (e trabalham ainda!), ficávamos nós, as flores do quintal, a casa e, consequentemente, as refeições, ao encargo da minha avó. Esqueci-me de referir um facto importante: Vivíamos com os nossos avós. Os pais e os meninos.
E a minha avó, do alto dos seus setenta e muitos anos, não conhecia a Filipa Vacondeus ou o Michel e respectivas receitas (graças a Deus!), desconhecia as últimas da “Saberes e Sabores” e nem sequer a existência da “Teleculinária”, pelo que almôndegas, rissóis, esparguete à bolonhesa, rojões, lasagna, e até bifes estavam a anos-luz do seu universo culinário. Mas era uma cozinheira de mão-cheia. Inultrapassável. Inalcançável. Fazia o melhor arroz de couve do mundo, o peixe mais delicioso do universo (de qualquer maneira que o confeccionasse); um cozido “à madeirense” sem comparação; frequentes sopas de massa (do mais típico manjar madeirense: sopa de couve, feijão, abóbora, semilha/batata, batata doce, pepinela/chu-chu e carne); milho (papas de milho amarelo, o ex-libris da gastronomia madeirense, pollenta na terminologia da nouvelle cuisine), muito milho, ora com cavalas em molho de vilhão; ora com atum fresco em azeite e vinagre, com salsa e cebola, ora com bacalhau em azeite, vinagre, salsa, cebola, alho e pimenta – este último conduto é que deu azo às familiarmente célebres competições de tolerância do ardor das pimentas entre o meu avô e a minha pessoa, aos cinco anos de existência.
Tudo era preparado com antecedência, cuidado e profissionalismo. A minha avó preparava o molho para toda a gente, os comuns mortais; o meu avô para nós, os competidores. Isto porque o molho da minha avó era tolerável por toda a gente e isso invalidava a nossa contenda. E para o meu avô, “…molho que é molho tem que arder, não prometer que arde!” E lá íamos nós, rindo, a maior parte do tempo tossindo, mas o facto é que acabávamos sempre com o prato de comida (e eu com a água do copo!) num instante. E ganhava-lhe muitas vezes. Tenho a certeza, porém, de que ele me deixava ganhar. Ele dizia que não e contava, impressionado e orgulhoso, o feito aos meus pais ao fim do dia. A minha avó não gostava do concurso. Dizia que o meu avô era maluco e até mais criança do que eu. E quando desatávamos os dois a tossir – da pimenta, claro! – ria-se, ria-se muito antes de ficar muito séria e dar-nos uma decompostura de todo o tamanho. Às duas crianças.
Então, durante a semana, devorávamos, deliciados, os manjares madeirenses da minha avó. Ao fim-de-semana, cozinhava a minha mãe e então comíamos bacalhau com todos, empadão (de carne, peixe, atum…), peixe no forno, esparguete com costeletas, feijoada, frango assado e bifes. E o arroz, a acompanhar, era sempre branco. Nós pasmávamos e comíamos tão avidamente com os olhos quanto deglutíamos aquele arroz, colorido apenas pelo molho dos bifes. A minha avó tinha pavor a arroz branco, o arroz tinha que ser de couve ou cenoura ou ervilhas ou feijão. Branco, nunca! Bem, nós gostávamos da alternância e julgo que ela, lá no fundo, também; apesar dos reparos constantes, as mais das vezes irrelevantes, ao labor culinário da minha mãe. Se calhar é por isso que até hoje a minha mãe continua a achar que não sabe cozinhar. Que quem sabia era a minha avó. E que como ela só eu.
Eu acho que como a minha avó ninguém. Como a minha mãe ninguém. Como eu ninguém.
A culinária é como uma impressão digital. Cada um tem a sua marca. Única e irrepetível. Incomparável. Inigualável.
Os cozinhados da minha avó eram deliciosos. Um admirável exercício de sabedoria com certeza “de experiência feita”, equilíbrio e criatividade que faria as delícias de qualquer gastrónomo. Ela tinha a extraordinária capacidade de tornar tudo e qualquer coisa verdadeiramente apetecível e saboroso. Muito embora, com franqueza, sopa de massa nunca mais (!) e milho só muito de vez em quando (mas frito, a qualquer hora!). Enjoei. Mas por outras razões que nada têm a ver com o dom culinário da minha avó. Outras histórias.
Os cozinhados da minha mãe são deliciosamente únicos. Têm o sabor do Amor. Não sei como explicar; há um sabor, para além do sabor de cada alimento, que é diferente, que é o sabor da minha mãe. Quando estava no Secundário, a minha mãe fazia-me sandes (imposição minha) para o almoço. Às vezes eu ajudava-a, porque éramos quatro e as aulas começavam às oito da manhã. Então, à uma da tarde, quando almoçava, sabia sempre quais eram as sandes saídas das mãos da minha mãe. E demorava-me a comê-las. Demorava-me nela. No seu Amor.
Mas estávamos a falar de colorau, de bifes e da doce recordação de Domingos passados. Dos Domingos em que éramos invariavelmente oito (dois pais, dois avós, e quatro crianças), todavia às vezes nove (um tio), à mesa. Dos Domingos de azáfama, intermináveis histórias de feitos e façanhas do clã – os mesmos episódios a cada Domingo –; das descrições tristes e emocionadas de episódios de pobreza, amargura e até alguma má sorte de alguns antepassados; da partilha dos pontos altos (ou baixos) da semana; das adivinhas e das anedotas; das sonoras gargalhadas da minha mãe; das imitações dos famosos a cargo do meu pai, “humorista”, – desde o padre da freguesia ao primeiro-ministro, passando por cantores, actores, jornalistas… –; dos risos e tropelias à mesa; da ordem pré-estabelecida dos lugares, por questões de logística, funcionalidade e conforto – certamente, fruto de muito estudo parental –; dos copos que entornavam e manchavam a toalha de linho alvíssima; dos talheres que caíam para debaixo da mesa; das brincadeiras dos quatro que estes deslizes da cutelaria promoviam; dos beliscões parentais quando a brincadeira demorava muito e a comida arrefecia; das cotoveladas e olhares de reprovação maternos quando a mão ia à travessa ou a faca à boca.
Enchíamos aquela sala. De vida.
Agora somos seis, às vezes sete, à mesa, no máximo – que é raro – sete Domingos por ano. Agora cozinho eu, ou o meu pai, ou uma das minhas irmãs, ou o meu irmão. Para gáudio e sorte da minha mãe (e por mérito dela também): toda a gente sabe e tem gosto em cozinhar. Raramente fazemos bifes. As tropelias já não são as mesmas. E apesar de também os tempos serem outros, de nós termos crescido e já nem vivermos na ilha com eles, a epopeia dos ascendentes narrada pela minha mãe tem sempre lugar cativo à mesa, tal como as anedotas e imitações do meu pai, e a partilha da semana de trabalho, mais ou menos caricata, que findou. A azáfama, o barulho, a alegria e os risos permanecem. Intactos. Continuam com a mesma frescura, doce, espontânea e inocente da infância.
Mais esporadicamente é certo, mas continuamos a encher a mesma sala. De vida.
Hoje é Domingo e lembrei-me do cheiro do colorau dos bifes.
2 comentários:
A nossa memória percorre muito daquilo que nós somos. Neste caso a memoria olfactiva levou-te a passear por anos que percorreste e que agora aprecias de maneira muito especial.
Gostei muito de ler porque me identifiquei com a tua forma de transcrever o sentimento desses dias de infancia.
Sao as nossas lembranças muitas delas tao felizes que nos fazem sorrir por vezes quando estamos muito tristes.
Eu tambem recordo os meus almoços de domingo com grande saudade e alegria porque quem melhor que a nossa familia para partilhar uma mesa seja ela como for.
Eramos sete agora cinco porque entretanto nasceu o meu filhote mas por pena minha a alegria tem vindo a desvanecer-se os tempos mudam e nem sempre conseguimos manter o equilibrio de outrora. Enfim um dia tambem o meu filhote recordara os seus almoços de domingo.
Bjs
Zita, se o meu post te trouxe à memória tempos passados bons e alegres e a certeza de um futuro igualmente memorável, fico feliz.
Pipetobaco, que maravilha de blog, o teu!
Obrigada aos dois pela visita e respectivos comentários. A porta está sempre aberta!
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