Comer e dormir. Bem.
Poucas coisas me darão maior prazer do que comer e dormir bem. Agora. No entanto, nem sempre foi assim e, apesar de não me lembrar bem, tenho bem enraízados os dias em que tanto comer como dormir custava-me muito. Muitíssimo. Daí, se calhar o meu aspecto mirrado e a crença generalizada de que eu tinha que ter algum problema de saúde. Porque criança que não corre, não salta, não se suja, não come e não dorme, não é seguramente normal. Para mim, era como se não se tratasse de necessidades fisiológicas, mas actividades que eu tinha que fazer e que, por acaso, não eram do meu agrado em criança.
Aparentemente, à noite, via coisas que me assustavam e desatava a chorar, num berreiro que terminava invariavelmente na cama dos meus pais. Tinham eles então, noite após noite, que ir buscar o sossego, e a desassossegada, ao berço, se quisessem ir trabalhar no dia seguinte com olheiras de bons pais e algumas horas de sono minimamente dormidas. Senão me instalassem lá bem no quentinho, bem no meio deles, não conseguiam descansar de todo. E lá vinha o meu pai, pacientíssimo como sempre, e pegava na menina ao colo, e deitava-a entre a minha mãe e ele e, pestana cola pestana, lá conseguiam os dois (e a menina) dormir umas horitas; o tempo suficiente para a minha bexiga esvaziar o muito que tinha para a fralda, que consequentemente se esborrachou na cara da minha mãe, meu assento sanitário improvisado. Acho que essa foi a última vez que dormi com os meus pais. Depois, seguiu-se uma temporada em que o berço e a menina foram para o quarto dos avós, temporada de curta duração, devido ao facto de a minha avó ter distendido um dos músculos do braço, à força de dar a mão à menina que sem essa segurança não conseguia adormecer. A esse seguiu-se um exílio maior, desta feita sem berço e directamente para o Colégio com a minha tia, a mando da maleita da minha avó e do quase-esgotamento dos meus pais. Lá conseguia dormir bem, sempre dormi bem no quentinho da cama dos adultos... Embora acordasse com o frio da ausência da minha tia na cama, sensivelmente às seis e meia da manhã. Aí começava eu o teste à concentração das Irmãs na Oração da Manhã da Comunidade. “Titiiiiiiiiiiiiiiaaaaaaaaa! Titiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiaaaaa!” Até às oito. Até à hora em que a Oração terminava e a minha tia trocava o seu pequeno-almoço por um vale de lágrimas e berros por entre o vale dos lençóis. Eu.
Para comer, igual dificuldade. Como a minha mãe ia trabalhar, ficava a menina aos encargos da avó. Mas a minha mãe vinha almoçar a casa. E dava-me uma ou duas colherinhas à boca. Depois, eram horas, tinha que ir. E a minha avó tentava terminar o que a minha mãe começara. E não fazia outra coisa, tarde fora, - era difícil, eu não queria, nunca queria, nada – e ela não fazia outra coisa e a ver se a coisa ia mais facilmente pela distracção mostrava-me, dia após dia, cada flor do jardim “…e vá, mais uma colherinha por esta flor tão bonita, e outra por esta, olha esta que bonita!!! E esta, não gostas?” E antes que eu dissesse palavra: “Vá, então outra por esta!” A meio do prato e da tarde(!), o meu estômago já acusava sobrecarga e por entre uma colher e outra lá arranjava fôlego para por termo ao crescendo vaivém de colheres, dizia: “Vó, mais não, senão vomito… não quero mais.” “Vomitas? Não vomitas nada, se vomitares, voltas a comer (!), assim!” – e lá ia mais uma, depois outra e outra e outra... Escuso-me a comentar o valor duvidoso da estratégia pseudo-pedagógica da minha avó, mas lá que resultava, resultava: a muito custo, feito o périplo habitual pelo jardim e a visita a todos os nossos animais domésticos, o prato do almoço era história. Finalmente. Mesmo à horinha do jantar!
Acho que a primogenia tem destas coisas. Primeira filha da minha mãe, primeira neta da minha avó, se espirava era pneumonia, se perdia os sentidos era epilepsia (um dia conto!...), se coçava os olhos era conjuntivite (para outro dia!...), se não tinha apetite era... tratar de comer… que faz bem, “dá saúde e faz crescer”!
E assim sempre nos meus dois primeiros anos de vida. Depois, nasceu a minha irmã e os meus dias de enjoadinha acabaram. Felizmente. A bem da Humanidade. Eu era a caladinha, ela a expansiva, eu a arranjadinha, ela a maria-rapaz, eu a certinha-educadinha, ela a traquinas-incorrecta, eu a quietinha-passiva, ela a pró-activa (que o digam os peixes da nossa lagoa que eu apregoava que queria na minha mão e que ela fez o favor de envenenar com sabão da roupa... só para me realizar o desejo!). Segundo a minha mãe a expressão "só não tocou o Sol porque..." só tem verdadeiro significado porque ela existe.
Não sei se para resolver o meu problema de nutrição ou por mero acaso, às refeições punham-nos, frente aos pais, lado a lado, eu e ela: eu a olhar para o meu prato, ela a comer o dela e a falar e a rir. Eu a olhar para o meu prato, ela a comer a minha comida e a falar e a rir. Ela: “Não queres?” E (tal como a minha avó!) antes que eu respondesse: “Está bem, eu como.” Eu, indecisa entre o semblante envergonhado e o estupefacto: “Mas… é meu…” Ela, despachada e alegre (como sempre!): “Mas não queres, nunca comes… Deixa que eu como.” Como se fosse um favor! Favor seria, porque eu não comia muito, mas comia um bocadinho mais do que o nada que ela me deixava no prato!... Não tinha resposta para ela. Fui deixando. E assim sempre até o dia em que ou a fome me finalmente bateu à porta, ou nasceu em mim o bichinho da competição, ou ambos, e comecei a comer ao mesmo tempo que ela e até consegui acabar primeiro! E fiquei cheia mas satisfeita, leia-se feliz. Por ter acabado primeiro.
Dava-me jeito que estivessem aqui. Agora. Ambas. A minha irmã e a minha avó. Ainda agora, à noite, continuo a ver coisas estranhas, não sei se as mesmas, nos meus sonhos. Retalhos de um quotidiano frenético, muitas vezes mal resolvidos na minha cabeça. O braço da minha avó. Quero. Agora começo novamente a embirrar com a comida, uma comida em que não me revejo e na qual é difícil e extremamente raro encontrar um equilíbrio entre o bom e o saudável. O apetite e a minha irmã. Quero.
Comer e dormir. Bem. Quero.
Poucas coisas me darão maior prazer do que comer e dormir bem. Agora. No entanto, nem sempre foi assim e, apesar de não me lembrar bem, tenho bem enraízados os dias em que tanto comer como dormir custava-me muito. Muitíssimo. Daí, se calhar o meu aspecto mirrado e a crença generalizada de que eu tinha que ter algum problema de saúde. Porque criança que não corre, não salta, não se suja, não come e não dorme, não é seguramente normal. Para mim, era como se não se tratasse de necessidades fisiológicas, mas actividades que eu tinha que fazer e que, por acaso, não eram do meu agrado em criança.
Aparentemente, à noite, via coisas que me assustavam e desatava a chorar, num berreiro que terminava invariavelmente na cama dos meus pais. Tinham eles então, noite após noite, que ir buscar o sossego, e a desassossegada, ao berço, se quisessem ir trabalhar no dia seguinte com olheiras de bons pais e algumas horas de sono minimamente dormidas. Senão me instalassem lá bem no quentinho, bem no meio deles, não conseguiam descansar de todo. E lá vinha o meu pai, pacientíssimo como sempre, e pegava na menina ao colo, e deitava-a entre a minha mãe e ele e, pestana cola pestana, lá conseguiam os dois (e a menina) dormir umas horitas; o tempo suficiente para a minha bexiga esvaziar o muito que tinha para a fralda, que consequentemente se esborrachou na cara da minha mãe, meu assento sanitário improvisado. Acho que essa foi a última vez que dormi com os meus pais. Depois, seguiu-se uma temporada em que o berço e a menina foram para o quarto dos avós, temporada de curta duração, devido ao facto de a minha avó ter distendido um dos músculos do braço, à força de dar a mão à menina que sem essa segurança não conseguia adormecer. A esse seguiu-se um exílio maior, desta feita sem berço e directamente para o Colégio com a minha tia, a mando da maleita da minha avó e do quase-esgotamento dos meus pais. Lá conseguia dormir bem, sempre dormi bem no quentinho da cama dos adultos... Embora acordasse com o frio da ausência da minha tia na cama, sensivelmente às seis e meia da manhã. Aí começava eu o teste à concentração das Irmãs na Oração da Manhã da Comunidade. “Titiiiiiiiiiiiiiiaaaaaaaaa! Titiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiaaaaa!” Até às oito. Até à hora em que a Oração terminava e a minha tia trocava o seu pequeno-almoço por um vale de lágrimas e berros por entre o vale dos lençóis. Eu.
Para comer, igual dificuldade. Como a minha mãe ia trabalhar, ficava a menina aos encargos da avó. Mas a minha mãe vinha almoçar a casa. E dava-me uma ou duas colherinhas à boca. Depois, eram horas, tinha que ir. E a minha avó tentava terminar o que a minha mãe começara. E não fazia outra coisa, tarde fora, - era difícil, eu não queria, nunca queria, nada – e ela não fazia outra coisa e a ver se a coisa ia mais facilmente pela distracção mostrava-me, dia após dia, cada flor do jardim “…e vá, mais uma colherinha por esta flor tão bonita, e outra por esta, olha esta que bonita!!! E esta, não gostas?” E antes que eu dissesse palavra: “Vá, então outra por esta!” A meio do prato e da tarde(!), o meu estômago já acusava sobrecarga e por entre uma colher e outra lá arranjava fôlego para por termo ao crescendo vaivém de colheres, dizia: “Vó, mais não, senão vomito… não quero mais.” “Vomitas? Não vomitas nada, se vomitares, voltas a comer (!), assim!” – e lá ia mais uma, depois outra e outra e outra... Escuso-me a comentar o valor duvidoso da estratégia pseudo-pedagógica da minha avó, mas lá que resultava, resultava: a muito custo, feito o périplo habitual pelo jardim e a visita a todos os nossos animais domésticos, o prato do almoço era história. Finalmente. Mesmo à horinha do jantar!
Acho que a primogenia tem destas coisas. Primeira filha da minha mãe, primeira neta da minha avó, se espirava era pneumonia, se perdia os sentidos era epilepsia (um dia conto!...), se coçava os olhos era conjuntivite (para outro dia!...), se não tinha apetite era... tratar de comer… que faz bem, “dá saúde e faz crescer”!
E assim sempre nos meus dois primeiros anos de vida. Depois, nasceu a minha irmã e os meus dias de enjoadinha acabaram. Felizmente. A bem da Humanidade. Eu era a caladinha, ela a expansiva, eu a arranjadinha, ela a maria-rapaz, eu a certinha-educadinha, ela a traquinas-incorrecta, eu a quietinha-passiva, ela a pró-activa (que o digam os peixes da nossa lagoa que eu apregoava que queria na minha mão e que ela fez o favor de envenenar com sabão da roupa... só para me realizar o desejo!). Segundo a minha mãe a expressão "só não tocou o Sol porque..." só tem verdadeiro significado porque ela existe.
Não sei se para resolver o meu problema de nutrição ou por mero acaso, às refeições punham-nos, frente aos pais, lado a lado, eu e ela: eu a olhar para o meu prato, ela a comer o dela e a falar e a rir. Eu a olhar para o meu prato, ela a comer a minha comida e a falar e a rir. Ela: “Não queres?” E (tal como a minha avó!) antes que eu respondesse: “Está bem, eu como.” Eu, indecisa entre o semblante envergonhado e o estupefacto: “Mas… é meu…” Ela, despachada e alegre (como sempre!): “Mas não queres, nunca comes… Deixa que eu como.” Como se fosse um favor! Favor seria, porque eu não comia muito, mas comia um bocadinho mais do que o nada que ela me deixava no prato!... Não tinha resposta para ela. Fui deixando. E assim sempre até o dia em que ou a fome me finalmente bateu à porta, ou nasceu em mim o bichinho da competição, ou ambos, e comecei a comer ao mesmo tempo que ela e até consegui acabar primeiro! E fiquei cheia mas satisfeita, leia-se feliz. Por ter acabado primeiro.
Dava-me jeito que estivessem aqui. Agora. Ambas. A minha irmã e a minha avó. Ainda agora, à noite, continuo a ver coisas estranhas, não sei se as mesmas, nos meus sonhos. Retalhos de um quotidiano frenético, muitas vezes mal resolvidos na minha cabeça. O braço da minha avó. Quero. Agora começo novamente a embirrar com a comida, uma comida em que não me revejo e na qual é difícil e extremamente raro encontrar um equilíbrio entre o bom e o saudável. O apetite e a minha irmã. Quero.
Comer e dormir. Bem. Quero.
2 comentários:
Olá. Folgo saber que alguém nos States passa de vez em quando pelo meu espaço.
Vou linkar-te.
lolol!UAI!Mui lindo!o k escrevest sim sra.:))) eu nem tnho historias pa contar d miuda...eu tba era a apgada...lolo..eu e tu..lolol..ms spe tens historinhas da avo..k saudadx...tba gostava d ver as flores..ms ela ka m ralava a comida..k era pa eu n ver a cenoura, feijao verde..entre outros s nao n comia...e digamos..k akilo sabia melhor do k tudo o k como agora..mesmo k seja o mesmo comer...mas pla mao da avo
era outra coisa mesmo.:))) REST IN PEACE!bjinhs.Nininha
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