“Cabeça amarela” do Lar, “Bolachinha Maria” e “Britney” uma salva de todas as palmas do mundo. Corações ao alto, corações nas palmas. Para ti.
A Olga e eu tirámos o mesmo curso na mesma cidade, embora em universidades diferentes. Somos ambas professoras, agora estudantes. Por razões diferentes. Porque a vida leva-nos onde nunca pensámos sequer e a única âncora que temos são as amizades que se fazem ao longo desse percurso mais ou menos atribulado.
Durante os cinco anos do meu curso morei num Lar Universitário. Na Madeira ficava toda a gente mais descansada se assim fosse, eu não tinha nada contra e, no final, gostei tanto da experiência, que depois do curso anda morei lá mais dois anos. Muito choro, muita lágrima, à saída… Uma outra história. Para depois.
No Lar também há praxe. Numa versão naturalmente mais soft. Ou não. Dependendo da autoria moral das actividades praxísticas.
A Olga foi para o Lar quando eu estava no terceiro ano da Faculdade. Então, à semelhança do que se fazia todos os anos, na primeira semana de Outubro realizava-se a Festa de Recepção à Caloira no Lar. A festa subordinava-se a um tema, acordado entre o grupo das mais velhas, e o que se pretendia era que cada caloira se disfarçasse de acordo com o tema (a originalidade da fatiota era premiada, claro!), apresentasse uma rábula e dedicasse uns versos à Irmã que lhe tivesse saído em sorte. O objectivo não era tanto praxá-las (não foi pelo menos nesse ano em que eu fazia parte do grupo das mais velhas), mas fazer com que se nos dessem a conhecer, conhecessem melhor o Lar (leia-se as Irmãs, atribuições, ocupação e feitio…) e se divertissem, claro!
A semana anterior à tão anunciada festa era pródiga em partidas, algumas pouco agradáveis, confesso: tinham as caloirinhas, geração após geração, que pôr a mesa às mais velhas (que por sua vez escondiam os copos e os talheres, para que elas não conseguissem realizar a tarefa eficientemente), ir buscar a comida e servir (embora tal não fosse permitido segundo as regras da casa), e outras tarefas do género, mas nada mais para além disso, nada que lhes ponha em causa a dignidade humana…
Mas nesse ano quisemos, quis eu, mudar um pouco as coisas e agitar o Lar de uma maneira diferente. Então, com o consentimento de quem de direito (a Directora, obviamente!) fomos, fui eu, mais longe. Fizemos, fiz eu, inúmeros desenhos coloridos, a giz, nos espelhos dos quartos, espalhámos, espalhei eu, pasta de dentes nos lavatórios, mudámos, mudei eu, de sítio as escovas para as gavetas das secretárias, os lápis para o armário, os relógios e as fotografias dos familiares e dos namorados para já não me lembro onde, retirámos, retirei eu, os lençóis e os edredões das camas e pusemo-los, pu-los eu, nos cestos da roupa suja, e até um colchão desviámos para a salinha do telefone, desviei eu! Fomos más! Fui. Admito. Mas elas, à excepção de uma que decidiu ir dormir a casa dada a ausência dos lençóis, não levaram a mal. (Ainda bem. Eu teria levado!)
Chegada a noite da festa de recepção, indicativa do término da semana de partidas, todas nos impressionaram e marcaram de uma forma ou de outra, para o melhor e para o pior também. Não me recordo já do tema desse ano, nem da qualidade das rimas que dedicou, mas lembro-me dos dois totós loiríssimos da Britney Spears, a personagem que encarnou e que se tornou imagem de marca da Olga até na Universidade (em virtude de ter lá aparecido assim no primeiro dia – ingenuidades de caloira!); além disso recordo-me de muito pouco com pormenor. Apenas do desconforto e do pedido de desculpas no olhar – tão diferentes da alegria simples e gratuita com que nos tinha brindado semana fora – quando lhe pus a fita, de papel higiénico, com que a elegemos Miss Simpatia, tal como fizemos com a Mariana no ano anterior, tal como me fizeram a mim dois anos antes… Nunca percebi o porquê desse constante desconforto na expressão corporal e do pedido de desculpas por existir e ser assim, como é… Ainda hoje é muito assim. Porquê? Não sei bem. Por simplicidade, talvez. Aquela simplicidade que possuem e exalam todas as pessoas grandes…
Nesse ano a Olga partilhou o quarto com outra caloira por acaso do mesmo curso – uma rapariga muito revoltada, a tal que foi para casa por causa da falta de lençóis, e que no fim desse ano decidiu deixar o Lar – mea culpa, sinto muito, eu sei, exagerei, possivelmente hoje não o teria feito, mas quando se tem vinte anos (e já se aprendeu que ser crescido não compensa!) é-se naturalmente inconsequente. Ao decidir ir para um apartamento, essa menina deixou a Olga a braços com uma decisão dificílima: escolher com quem iria dividir o quarto no ano seguinte. Tinha duas hipóteses: ou elegia de entre as mais velhas o mal menor – que isto de dormir com o inimigo tem muito que se lhe diga… E sim, quase dez meses após essa fatídica semana de recepção as mais velhas são ainda olhadas de soslaio. Por algumas. Só. Felizmente. (É muito aborrecido ser-se considerado Inimigo Público Nº 1 e terem feito de nós a imagem diametralmente oposta do que somos por causa de uma brincadeira. De gosto duvidoso, é verdade, mas...) –, ou saltava para o desconhecido e ficaria à mercê de alguém novo no Lar (o que é sempre um risco de consequências absolutamente imprevisíveis!). Mandou a razão que optasse pelo mal menor. E o mal menor fui eu. Por acaso. Ou talvez não. (Que isto da simpatia é sempre muito mais que uma fita de papel higiénico num Outono de 98. É uma impressão digital. Ou se tem e faz parte de nós e exalamo-la por todos os poros a todo o momento – comigo é assim… Porque sou muito maternal e trato toda a gente como gostava que me tratassem a mim e faço a caminha, a papinha, o que for, para que se sinta bem e em casa e não mexa um dedinho sequer para o que quer que seja. O que também é mau. E não agrada a toda a gente. Nem a mim, agora, muitas vezes. Ou não se tem e conquistamos as pessoas de outras maneiras. Que também as há. Tantas e possivelmente tão mais admiráveis…)
Por acaso. Ou talvez não: a verdade é que esse ano lectivo, o meu terceiro e o primeiro da Olga, não me foi particularmente feliz em termos pessoais, perdi da pior maneira possível uma das minhas melhores amizades de sempre e tive que conviver com ela e com isso ano fora, nas mesmas actividades, nos mesmos lugares, enfim na mesma casa. Sem querer e quase sem me aperceber, não tivesse a Olga me alertado para esse facto, estávamos, estava eu, a criar cisões naquele grupo que era verdadeiramente fantástico. Estava eu porque era a mais forte, a representante das alunas, a líder, a que arrastava toda a gente atrás. A que tinha as maiores responsabilidades e o fardo do dever. De ser modelo. Ou a que tem a mania que manda, como também me disseram. Como queiram.
Então, achei por bem fugir. Abrir mão. Deixar ir. Em liberdade. Devagarinho. E decidi: no ano lectivo seguinte, no meu quarto ano e segundo da Olga, faria Erasmus. Fui. Fiz. Troquei experiências e vivências, aumentei os meus conhecimentos, cresci muitíssimo; simultaneamente, promovi melhor ambiente no Lar, levando na mala o ar pesadíssimo, de cortar à faca, com que terminámos o ano lectivo anterior, tornei mais fácil a vida à minha outrora amiga e respectivo séquito e, muito importante, facilitei a escolha à Olga, que teria o quarto só para ela no primeiro semestre, durante o tempo que eu estivesse em Paris – o que aconteceu de facto desde Setembro até Março. Depois voltei. Com a Primavera e com o problema por resolver. E o ar do Lar voltou a ficar pesado e cinzento. E voltei à liderança, à representatividade – mantidas curiosamente pela minha outrora amiga –, voltei ao que era mas não como era. Outrora. Voltei mais seca, mais amarga, mais fria. Mais outra, menos eu. E a Olga esteve lá. Sempre. Nesse e nos anos que se seguiram, até há bem pouco tempo. E aturou os meus ataques de fúria (que os tenho muitos e amiúde), os meus amuos, as minhas intolerâncias, os meus devaneios, as minhas reflexões existenciais e as minhas teorias psico-sociológicas, as fotografias do Príncipe pelo quarto todo (pela minha parte do quarto), a baba daí resultante pelo quarto todo, a minha obsessão pelas Tunas pelo quarto todo, as toneladas de roupa (de cama, de banho e em geral), sapatos, livros, cadernos, artigos e dossiers pelo quarto todo (é no que dá ser da Madeira), o tic-tac inqualificável do único despertador que me acorda pelo quarto todo e, last but totally not least, os meus famosos vipes TPM (que nem eu consigo tolerar de tão maus, muitíssimo piores que os meus ataques de fúria!). Não sei o que é que se pode dar em reconhecimento a uma pessoa assim. Maravilhosa. Beatificação? Canonização? Óscar? Nobel? Euro-milhões? Por mim ganhava uma mescla de tudo. Porque também tinha os seus problemas, pessoais, familiares e de saúde, muito mais graves do que os meus, e só sendo profundamente ágil, engenhosa, inteligente e santa (e malfadada!) para me aturar nesses tempos sem deixar escapar o “Basta!” que eu merecia. E boa, intrinsecamente boa pessoa, para conseguir ao mesmo tempo manter a serenidade e a calma, a sanidade mental num ambiente familiar profundamente adverso e a guerra-fria entre as duas facções, sem deixar de falar e ser alegre e conviver e ser amigo de quer quem que fosse nos dois lados da barricada, em casa, no Lar, na vida. Porque sei que ao longo dos anos este dia ficou na memória como uma lembrança vaga, às vezes forçada, profundamente marcada pela incompreensão, pela revolta e pelo gelo e pelo sal das lágrimas; porque sei que este dia só é celebrado com alegria se calhar à semana e portanto houver a possibilidade de reunir os amigos; porque sei que hoje é Sábado e isso significa casa e gelo e vazio e ausência. De bolo. De alegria. De celebração. Porque ela não tem culpa, não merece e não devia nunca ter que passar pelo que passa. Porque nada do que podia premiá-la eficazmente está nas minhas mãos. Ao meu alcance.
Olga,
Porque ponho nas minhas mãos agora o coração e este post e dou-tos com o pedido reiterado a Quem realmente pode, que Ele ou a vida ou o universo, te abençoe e te dê em dobro tudo aquilo que me deste e que sejas assim muito, muito, muito feliz e consigas descobrir e alcançar o caminho da tua realização pessoal e profissional. Mereces tudo! Como poucos. Por me aturares. Por te teres ido embora de todas as vezes que devias ter explodido. Por me teres respondido à ofensa com o silêncio e um sorriso. Por me teres ensinado tanta coisa. Por me teres mostrado outro tanto. Pela tua amizade. Por seres assim. Exactamente assim. Por tudo o que não me recordo agora. Obrigada por este dia, obrigada por existires! Aqui fica a mais que merecida homenagem e … Parabéns!
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