terça-feira, junho 12, 2007

Dia 2

Dia dos favores e dos sorrisos

Manhã cedo levanto-me, banho tomado, roupa vestida, corro. Desço para a cozinha, agarro um croissant, deixo a chave em cima da mesa – como combinado, pego num cartão – para mais tarde recordar, puxo a porta para fora, subo a rua, atravesso para o outro lado, não corro porque o peso da minha mala puxa o meu lado direito para baixo, o do computador – mais leve mas ainda assim pesadíssimo – o lado esquerdo. A pensar na escoliose que andar muito assim não fará, perco-me. A rua onde me encontro está em obras, a paragem de autocarro que me certifiquei que havia, e onde era, tinha desaparecido; transportes alternativos (metro, táxis) nenhuns, cabines telefónicas, nada – o tempo a passar, o comboio a passar ainda mais rápido na minha cabeça – comércio aberto – para telefonema de urgência – uma única pastelaria. Será que as pastelarias de cá são como os cafés em Portugal – têm sempre um telefone a um canto do balcão para situações como a minha, urgentes e (quase) desesperadas?! Não. Não têm. Telefone. Mas o cheirinho a manteiga e a açúcar e a forno quentinho abre o sorriso (e o apetite) a qualquer pessoa. Foi com esse sorriso que entrei e “Bonjour Monsieur!” Oops, saiu. E o meu Orientador que foi incansável em me avisar para não falar francês – alguns deles têm uma aversão assinalável aos franceses, ainda a prejudicam.
Favor um: Devo ter tido sorte. O rapaz da pastelaria era árabe e não me pareceu ter qualquer problema com a França. Aliás, quem tinha um problema era eu. “Est-ce qu’il y a un téléphone prés d’ici d’ òu je peux appeler un táxi?” Não. Não havia. Já disse. Nem perto, nem ali – disse-me o rapaz, a modos que surpreendido e simultaneamente divertido com a situação em que me encontrava. “Mais atends, je reviens.” E desceu para as profundezas, suponho que o grande forno do estabelecimento, sorriso largo, semblante desperto, sem qualquer réstia de sono às sete da manhã. Voltou. Com um grande tabuleiro de pão acabadinho de fazer nas mãos, o mesmo sorriso e o telemóvel dele, para mim, número marcado e tudo, ao ouvido, enquanto não chegava ao meu pé. Depois de uma universal eternidade à espera, lá atenderam. “Óu sommes nous?” Ele disse-me. Repeti igualzinho – embora sem perceber. Ça n’existe pas! Plim. Desligaram. “C’est pas vrai, je vais essayer moi!”. Tentou, tentou, tentou… mas ninguém o atendeu. Disse-lhe para desistir. Às vezes é preciso. É o melhor. Que fosse o que Deus quisesse. “Alors, combien je vous dois?” Não havia maneira de permitir que eu pagasse. Fiquei envergonhada. Agradeci o gesto, mas comprei, sem qualquer tipo de necessidade, especialidades da casa num valor aproximado. “Mais tu vas óu?” “À la Gare de…” “Ça c’est facile: monte lá, tourne à droite, et voilá.. metro diréccion …” Monte, droite, direccion. Direcções. A minha especialidade. “Ah oui? Merci, Monsieur. Au revoir. Tentei. Como era de esperar, não consegui. Mas encontrei um táxi na subida. “Êtes-vous en service?” “Non, mais je peux pas, óu allez vous, MAdemoiselle?” (Inicialmente para a paragem do autocarro que desapareceu, para o metro ainda há pouco, para o comboio daqui a nada…) Para … - o sítio dos encontros. É suficientemente longe, perdão: rentável, para o fazer mudar de ideias. “Bom ce qui se passe, c’est que je viens de travailler la nuit et je vais rendre le táxi à mon collegue. Mais attendez.
Favor dois: “T’es pas prêt? J’ai rencontré une demoiselle qui a besoin d’aller à… Je te l’amenerais en dix minutes. Sois prêt. Sois prêt!” Vira-se para mim, mas não em discurso indirecto como eu estava a prever: Mademoiselle, mon collégue habite tout prêt d’ici, je peux vous y amener, c’est tout prés de l’église de… - ia explicando o senhor, cheio de cautelas, já que, efectivamente, se tratava de uma situação pouco comum. Porém o tempo continuava a passar, o comboio estava praticamente perdido e eu também – estaria – se não aproveitasse este pequeno milagre. Não fui irracional, porque nunca sou, e as pessoas inspiram-me sempre, bem ou mal, à partida. Este senhor, inexplicavelmente, inspirava-me confiança. Acho que tem a ver com o discurso. As palavras dizem sempre muito acerca de nós. O “vousvoyer” e o constante “demoiselle” do senhor indiano não me pareceram de risco. Em menos de cinco minutos estávamos em frente à igreja, em menos de nada chegou o colega. Agradeceu o serviço (longo) ao outro, que tratou com amizade e sem formalidades – o que me surpreendeu porque sendo este francófono, não se comportou como a maioria dos franceses com os emigrantes – e deixou-o em casa, também. Mais, só depois disso ligou o taxímetro, que eu reparei bem. Voámos pela auto-estrada, o que fez com que chegasse à hora prevista. E isto apesar de me ter esquecido de imprimir a minha reserva com o endereço do sítio onde estou e respectivo número de telefone.
Favor três: “Pas de probléme, j’appéle aux renseignements.” Com o nome, ainda que “macarronificado” por moi-même chegou-se ao número de telefone, com isso se ligou para saber a morada detalhada a introduzir no gps – melhor invenção humana depois da roda e da nimesulida (para as minhas amigas dores) – que nos deixou lá em minutos. Levou das gorjetas mais agradecidas da minha vida. Espero que a partilhe com o senhor indiano.
Nova correria: deixar a mala, check-in para mais tarde, receber mapa da cidade (nem sei bem para quê), correr até ao banco, voltar, atravessar a rua, o túnel, descobrir a estação, rezar para o autocarro ainda não ter saído, descobrir os cais, não encontrar *o* cais, perguntar a um transeunte se se pode comprar bilhete no interior do autocarro, descobrir o cais, chegar o autocarro, entrar, comprar, sentar, querer dormir, não poder, estar atenta à paragem para sair, chegar, correr até à entrada, faltam vinte minutos, faltam vinte minutos para o fim, chegar, registar-me, curiosamente sem fila nem demoras. Enquanto me registava, amargo de boca conhecido, já me tinha esquecido o quanto é difícil para um povo do norte da Europa ser abertamente caloroso. Estas meninas do accueil… só com algum esforço, da minha parte, é que esboçaram um projecto de sorriso. Sentar. Querer descansar. Olhar janela fora, descobrir nos bosques quatro tonalidades de verde e duas de bordeaux-violeta, na folhagem das árvores, descansar finalmente, senão o corpo, o espírito. Quase adormecer. Melhor não, ainda tinha trabalho para fazer. E calhava bem ultimá-lo antes de começar as aulas. Trabalhar. Soprar o sono para longe, para debaixo das árvores.
Acordar do trabalho com um “Olá!” vindo de cima. Responder, olhando para lá com a cara típica do quem-és-tu-que-aqui-ninguém-fala-português-nem-sequer-me-conhece-e-já-devo-estar-corada-de-tão-envergonhada. Estende-me a mão: “Sou o B.” Sorri-me. Sorri-me como eu queria que tivessem sorrido as meninas do accueil. Bem, talvez nem tanto. Sorriu-me como se fossemos amigos desde há séculos e eu lhe tivesse batido à porta, meio perdida. Ganhou-me aí. Os sorrisos são importantes.
Na realidade não somos completamente estranhos. O meu Orientador arguiu a tese dele o ano passado, e claro deu-me um exemplar a ler. Também é por ele que estou cá: apesar de ter tido conhecimento ainda nos EUA, assim que cheguei em Janeiro, já o meu Orientador tinha um mail dele a convidar-me a vir. Porque está na organização já trocámos uma data de mails. Mas não fazia ideia quem ele era e não percebi como sabia que eu era eu. (Deve ter falado com as meninas do accueil.) Foi simpático. Não estava à espera. Não por não ser simpático, a segunda palavra que o meu Orientador mais usa para falar do B. é “prestável”. Qualquer problema já sabe, diga ao B. Já lhe mandei um mail. Foi por isto. O meu Orientador é muito paternal e deve ter dito ao B. o que a minha mãe disse a todos as nossas professoras primárias no primeiro dia de aulas das nossas vidas: “Deixo-lhe aqui a minha encomendinha. Trate bem dela.” Ainda hoje me lembro disto. Posto isto, o B. fez o que lhe competia. Mas a minha surpresa vem da palavra que o meu Orientador mais usa para falar do B.: tímido. “O único problema do B. é ser tímido.” Nunca percebi porque é que na interacção, absolutamente profissional, comigo que sou das pessoas mais tímidas que pode haver – especialmente com algumas pessoas –, isso seria um problema. Por isso tentei sossegá-lo, embora admita que não da melhor forma: “Professor, eu também sou tímida e por isso não vem nenhum mal ao mundo.” “Pois, lá isso é.” Não percebi. Desconcertante.
Mas o B. continuava: “Cansada?” (Ui, notar-se-á assim tanto?) “Um pouco.” (Tímida. Pois sou.) “A viagem deve ter sido longa!” “Nem por isso, duas horas, não mais.” Riu-se. Não percebi. “Está a perceber tudo o que lhe digo?” (Os nossos mails foram todos em inglês.) “Sim, perfeitamente. Percebo Português através do Espanhol mas entendo-te bem.” “Ainda bem. O meu Orientador manda os seus melhores cumprimentos.” Voltou a rir-se. “Está bem, até breve então.” “Até já.” E voltei ao trabalho até a bateria ter acabado e eu ter descoberto que precisaria de dois metros de homem e um peso equivalente para conseguir ligar o cabo do meu computador à corrente. Favor tres: “Hi again, could you help me with this? I can’t plug it in.” O B. riu-se. Desta vez percebi porquê. “Peço desculpa, saiu-me, estava a ler um artigo em inglês.” “It’s ok.” Riu-se e voltámos novamente aos nossos afazeres. Daí a nada o meu bem português estômago alertou-me de que seria hora de almoço. Aí. Aqui não. Mas como já não me conseguia concentrar fui para o jardim apanhar sol. Acho que adormeci por momentos. Acordei com alguém, ao longe, a observar-me sorridente. Depois foi o almoço e a aferição do primeiro nome de toda a gente pelo B. – que mania do último nome têm estes francófonos: ninguém assina com o primeiro! – Yours I know, Joana. Foi a minha vez de me rir.

E ficar a pensar se a densidade de pessoas prestáveis, mais ou menos sorridentes, não será maior neste país.

2 comentários:

Oásis disse...

Já devia ter ido para casa a estas horas, mas prendeste-me aqui com este texto.... do princípio ao fim!

Beijos com votos de uma excelente estadia.

Joana disse...

Orquidea,

Sempre tao generosa comigo... Es mesmo querida! (nem os meus resistiram ate ao fim, Oh mana nao sabemos nada de ti, vamos ao blog mas para ler tanto tambem nao ha paciencia, bem acho que a palavra utilizada foi "tempo"...) ;) Obrigada. Por seres assim. Tambem. :P