sábado, junho 09, 2007

A outra face


Lembro-me como se fosse hoje.

Não me recordo o dia nem o mês, dados laterais, mas o episódio permaneceu na minha memória com grande limpidez.

1996. Campo Maiorense FC - FC Porto. Jogo para o Campeonato Nacional, nessa altura ainda era essa a designação, no Estádio Capitão César Correia, designação do estádio do Campomaiorense para o senso comum, Estádio da estalada para mim, a partir daí.

A determinada altura, vejo o Presidente do clube da casa a dar um estalo no Vítor Baía e a voltar costas e seguir o seu caminho como se nada fosse, estava em casa, pois claro! Vai daí, o Vitinho que não é de se ficar - percebi (só) nessa altura - usa da sua superioridade física, uma passada do Baía seriam umas quatro ou cinco do senhor Presidente, e dá-lhe um pontapé. Em resposta.

No dia seguinte, em todos os jornais e serviços noticiosos, o triste episódio fazia manchete. E as paragonas eram todas centradas no Baía, se fisicamente superior, mediaticamente supremo, "Não sou de dar a outra face". Lembro-me tão bem!

Não sou de dar a outra face. Anos e anos de endeusamento para o lixo, em minutos. nem tentei justificar-me (-lo?) à minha família, mas eles queriam, esperavam divertidos alguma resposta, um qualquer tipo de argumentação. Mas não.

Em 96 entrava na melhor fase da adolescência, aquela em que se começa realmente a crescer - por dentro. E este episódio de extemporânea revelação da humanidade do meu deus não só fez-me abrir os olhos para a facilidade com colocamos no mais alto pedestal aqueles de quem gostamos, mas também, porventura consequentemente, fez-me trilhar um plano de vida: Daria a outra face. Sempre e apesar de tudo.

Ele até tem razão - os deuses têm sempre razão - quem dá a outra face é tonto; gosta de apanhar; mas por outro lado, ser-se referência para alguém, motivo de noites mal dormidas, de mil e um pensamentos, de necessidade de afirmação, comunicação, saliência dos demais, não terá apensa uma série de responsabilidades, entre as quais a de ser-se sempre mais e melhor, entre as quais a de ser-se exemplo? - cheguei a dizer na altura.

Em 96, O Vítor Baía tinha quase a minha idade e não hesitou em responder. Porque é instintiva a busca de protecção face à agressão. Porque o ataque é a defesa mais imediata, emotiva, humana. E não se trata de uma questão de idade, trata-se de uma questão de vida. De vida vivida. De ensinamentos, de manancial ético e de personalidade em constante formação, que as situações negativas, por que todos passamos de quando em vez, nos dão. Para o futuro.

Dois anos antes tinha saído o Forrest Gump, filme que gostaria de ter visto mas não vi, nessa altura as finanças lá de casa estavam como os meus pais - ainda em formação - e como não era bem de primeira necessidade o filme passou sem que o tivesse visto. Foi em 96 que vi o Forrest Gump. Pela primeira vez. Na aula de Moral. E se nessa altura o meu projecto, de dar a outra face, estava mais ou menos delineado, mais marcado ficou. Tive a sorte de ter Moral com um padre absolutamente extraordinário, muito velhinho por fora, incrivelmente jovem por dentro, que teve o condão de trazer o Forrest para a nossa turma, para a nossa casa, para a nossa rua, para a ilha, para dentro de nós.

Desde então já conheci tanta gente, já fui Forrest para tanta gente! Ainda sou. Para o bem e para o mal. E não escrevo isto com qualquer tipo de orgulho ou arrogância - era tão bom se fosse assim! - sofro isto, escrevo isto sofridamente. Só eu sei por que passei quando fui para Houston e quem me devia receber, sem eu nunca perceber porquê, me infernizou a vida de uma maneira... Só eu sei o que me custou libertar-me do jugo dessa pessoa e simultaneamente ter que lhe sorrir e frequentar os mesmos eventos e trabalhar com ela e fazer-lhe favores. Só eu sei o que me custou ouvir-lhe descrever-me a grande parte do Departamento como a anormal que se queria aproveitar da sua boa vontade, de resto como tudo o que é Europeu! Só eu sei o que me custou. Ser eu. Conquistar aquela parte do Departamento. E mostrar-lhe como eu sou eu e não a imagem que, nunca percebi como, compôs de mim. Só eu sei o prazer que hoje é tê-la como amiga.

Como ela, anda muita gente por aí a pensar que eu sou as piores coisas e totó, não aquele totó bom que se chama a quem se ama; mas aquele totó horroroso, palerma, que roça o anormal. Anda muita gente por aí a pensar em mim. Devo ser importante. Anda muita gente por aí a gastar o seu tempo a ler-me. Devo ser importante. Anda muita gente por a deixar de dormir para me ler e ME criticar. Devo ser importante. Não para criticar a postagem, ou a escrita, não: para criticar a situação, o meu posicionamento na situação, a minha conduta, a minha maneira de ser, a minha maneira de pensar. Devo ser importante. Anda muita gente por aí a pensar que é só chegar à casa dos outros, ir entrando e ir batendo, é só ir ao blog dos outros e vomitar-se-lhes as frustrações do dia-a-dia. Na cara. E assim ganhar protagonismo. E assim apoucar o outro. E assim limitar a liberdade do outro. No seu espaço. No espaço que o outro criou para si. Apenas. Anda por aí muita gente a achar que é tão importante que vai ser impedido de entrar, como anónimo, como cor, como substância ilícita... A achar que é tão importante que vai causar a restrição a leitura pública deste blog. Anda muita gente por aí a pensar que vou dar luta. Na mesma moeda. E descer a níveis idênticos, subterrâneos. Não vou. Não tenho a passada, nem o passado, do Baía. Sem ser totó, mas sendo, darei a outra face. Sempre e apesar de tudo.

Stupid is as stupid does.

4 comentários:

Anónimo disse...

É estranho o sentimento que as tuas palavras despertam em mim... Também eu estou à beira de conseguir uma libertação, e cada segundo que passa a passada (do meu coração) aumenta. Não sei se quero voltar a ser amiga dessa pessoa. Mas preciso de libertar-me da imagem que ela quer construir para mim.

Joana disse...

Pec,

Há palavras que sem sabermos, chegam quando mais precisamos. Entendo o teu receio em voltar a ser amiga, eu própria acho que a amizade que tenho com a minha é impossível ser maiusculada por causa precisamente do passado.

Entendo tudo o que dizes. Bem, bem, bem. Precisas e conseguirás libertar-te. Tenho a certeza!

Jinhos.

Eduardo disse...

Um tanto frântico esse pensamento... Tens toda a razão, porque a subtileza da acção é o que nos distingue dos normais anormais.

Joana disse...

Frantic,

Ora nem mais! E viva os amigos aue nos lembram como apagar certas coisas e viva o Spam e viva a net! ;)

Jinho grande para ti e obrigada pela ajuda. Se for a Ameterdao este fim de semana sera tambem por ti. :)

Jinhos.