sexta-feira, junho 01, 2007

Dia Mundial

Da Criança.
É hoje.
Esforço-me por tentar lembrar que tipo de comemoração ensaiavam os meus pais neste dia. Continuo sem recordar. Se calhar traziam-nos um bolo (de pastelaria) a cada um - se fosse de aniversário lembrava-me!, se há coisa a que não resisto é bolo de aniversário! -, acho que a minha mãe nos costumava dar um beijo e dizer "Feliz Dia da Criança! Hoje é o vosso dia!", tenho essa imagem muito vaga, porém muito presente. Mas beijos dá sempre, ainda agora, tal como ainda agora acha que todos os dias são nossos por muito que eu já conte com vinte e seis e a mais nova vinte anos.
Quando estava no Liceu, foi com estranheza que presenciei o uso a ironia fina ao serviço deste Dia: "Já deste os parabéns ao X? Hoje é o dia dele. Minha esperteza do costume: "Dia do X? Mas ele já fez anos, foi a semana passada, lembras-te?" "Oh pá, Dia da Criança! X...Criança... Ai!" Pois, eu e os trocadilhos maldosos... raramente chego lá (e acredito em tudo, tudo, tudo o que me dizem - por mais estapafúrdio que seja!).
Sempre quis ter filhos. Ainda quero, um dia. Nunca quis dar aulas a miúdos. Continuo sem querer. Além de a matéria ser demasiado básica, os próprios miúdos não estão na escola para aprender mas para que se lhes dê educação. E isso faz-me um pouco de confusão porque o meu curso é Ensino do Português e das Línguas Clássicas e não em Educação mais ou menos clássica a certos portugueses. (A educação que tive é impossível de ministrar a estes miúdos - bem entendido.) Os meus alunos mais novos até hoje foram de sétimo e oitavo ano e guardo-os na memória como as minhas turmas mais difíceis, já tive uma de nono dificílima, mas essa não conta porque no fim de contas é uma das que recordo com mais saudade - é sempre assim! Os alunos de Secundário nunca me deram problemas, e os da Faculdade - a maior parte mais velha que eu na altura - mau seria se causassem qualquer tipo de transtorno. Não, não aconteceu e ainda bem.
Nestes últimos tempos, como me tenho dedicado à investigação, não dou aulas e se isso é bom por um lado - optimiza as minhas capacidades de trabalho, tenho o privilégio de poder dedicar-me em exclusivo a um área que gosto imenso - por outro é uma actividade muito solitária - não trabalho com ninguém, dependo unica e exclusivamente de mim e das orientações, sábias e muito presentes, do meu supervisor. De qualquer maneira, o contacto social não existe e isso custa-me um pouco. Por isso, fiquei muito contente, quando uma amiga que trabalha numa espécie de ATL me pediu, num tom tão descontraído que incialmente até pensei que fosse brincadeira, se podia dar uma mãozinha (ou as duas!) no sítio onde ela trabalhava, os dias que eu quisesse por semana, voluntariamente (ou voluntariosamente?). O sim saiu-me imediato e portanto não houve volta a dar. O grande problema é que miúdos com mais de quinze anos - a minha faixa etária de eleição, os miúdos que empatizam logo comigo e eu com eles... - não frequentam ATLs. Por outro lado, "São miúdos do ensino básico, além do que apenas tens que os entreter: cantar umas músicas, fazer uns jogos, não é dar aulas, é brincar!" - atalhava a minha amiga. Big problem. Several big problems. Ensino Básico... primária...primária...miúdos pequenos...cantar música menos mal...joguinhos...menos mal também... agora brincar!? (Nunca gostei de brincar em miúda, quanto mais agora! "Nunca brincaste? À Apanhada... Nem com bonecas?" Nop, nop, nop. Era do estilo observador, já te disse. De bonecas não gostava, de sujar os vestidos e estragar o penteado e perder os anéis também não.). Fartámo-nos de rir, bem fartou-se ela, que eu estava a ver o meu caso (muito) mal parado.
No dia combinado fui e não gostei. Nem a ânsia de sair do meu gabinete, atolado de livros e fotocópias mas vazio de gente, me salvou. Dei por mim a chegar a casa ao fim do dia e a dizer as mesmas enormidades que a minha amiga me costumava dizer ao telefone. E eu não sou assim: continuo a querer ter filhos. Mas há crianças a quem raptaram a criança que eles deviam ser nem sei quando (à nascença?). Há miúdos que desaparecem e continuam a dormir em casa todos os dias e a tomar o pequeno almoço, mais ou menos saudável, em casa todos os dias. Há miúdos que são raptados pelos pais, pelos irmãos, pelos primos, pelos tios, pelos vizinhos, sem nunca desaparecerem de casa. Há miúdos que são raptados pelos colegas - a que chamam de amigos e a quem dão a mão a cada toque para o recreio... São os que não têm pai, são os que têm a mãe com a mais liberal das profissões, são os que vivem com a avó porque o pai está preso e a mãe matou-se, são os que têm ambos os pais, mas cada um à vez, porque esta era semana do meu pai mas ele telefonou que não podia e a minha mãe também não pode, posso ir para a sua casa?, são os normais, com pais e mães e irmãos e famílias perfeitamente funcionais, são os hiperactivos, sim que hoje uma turma só é turma se tiver pelo menos um (Será por causa dos Morangos?), dizia eu são os hiperactivos, perdão os mal educados e com um problema de gestão da raiva, para quem brincar é bater, são os hiperactivos, perdão os mal educados puros, do "... estás a guardar a bola para quê? A bola é minha, ai, passa-me já a bola senão parto-te a boca toda!", são os hiperactivos, perdão os mal educados com falta de atenção e outras carências afectivas, do "... e quê, vais bater-me agora, não? Chamo já o meu pai-cigano - que na realidade não tem - e logo vês quem apanha!" São os autistas que, com este alvoroço todo, passam muito mal, são os hiperactivos reais, mas ainda não diagnosticados O meu filho, não, o meu filho não é tonto! O meu filho é igualzinho a mim!, que, ajudados pelas meninas amorosas da primeira classe, Professora, olhe o X, o X bateu-me, deu-me um pontapé! Quero o meu avô!, ampliam descomunalmente o alvoroço até se conseguir reforços, literalmente, e então separarmos os focos de distúrbio e se assistir, acalmando, o miúdo mais sobressaltado.
A minha amiga acabou por confessar que a abertura a voluntários se devia a alguma impossibilidade de controlo. ...alguma... Continuei a ir. Não os dois dias. Um só. Deixei o dia mais problemático, começava a afectar o meu trabalho - aquele que sempre me deu gozo, o que quero fazer a vida toda - e isso, por muito que preze a minha amiga não posso permitir. Ela concordou, Sempre é melhor que nada - disse-me, com uma alegria que ainda não consegui perceber. Fui. Vou. Irei, logo à tarde. Pelas meninas da primeira classe, por um da terceira - o Ricardo, por dois da quarta. Seis. Seis miúdos num universo de quarenta. Seis. O trigo no meio do joio. O Ricardo.
O Ricardo está na terceira classe, veio do Brasil no ínicio do corrente ano lectivo, não tem os dois dentes da frente, mas tem a educação e o equilíbrio emocional que falta à generalidade dos miúdos da sala dele. Não fala aos berros, não corre na sala, não é mentiroso, não rouba material dos colegas, não corre para me abraçar, não me baba a cara com beijos, não me agarra as mãos, não me bajula com as boutades típicas: A professora é muito bonita!, De que clube é?, Onde mora?, Um dia vou casar-me consigo!. Na realidade, o miúdo é discreto. Só não passa despercebido porque é dos poucos que se senta, ouve e faz o que se manda, com interesse e naturalmente.
Não sei porquê, de algum tempo a esta parte começou a ficar para trás no fim, leva mais tempo do que é necessário a arrumar e acabamos por sair sempre os dois. No outro dia emocionei-me a valer e sem querer.
-Ricardo, o casaco!
-Obrigado, proféssora, si ocê não me avisasse, ia esquécê!
-Pois é, é sexta feira, quer correr para casa, depois esquece-se, tome lá. ( Tique da Faculdade, ser-me difícil tratá-los por tu... o que vale é que para este é igual).
-Adeus proféssora, bom fim dji semana prá você!
-Adeus Ricardo, para si também.
-Proféssora, cê não quer mudar dji iscola?
-Mudar, mudar porquê, Ricardo?
-Minha mãe vai mi mudá dji iscola para o ano qui vem. Vou para as... acho qui é colégio dji freira.
-Porquê, Ricardo?
-Porque os mininos aqui são muito ruins, o P.C. quase todos os djias me batji, o H. ou o T.A. me roubaram a borrácha daquela veiz, cê lembra, proféssora?
-Sim, nunca encontramos.
-É, então é isso.
-Mas é o melhor aluno, Ricardo!...
-É, sou sim, mais a Matemátjica sou médjio e no Braziu era o melhó em tudo. Aqui, com esses mininos não dá.
(Chega cá, herda logo as tão portuguesas dificuldades a Matemática, porque será, senhores que elaboram os manuais?)
-Cê não qué vir comigo para as..., proféssora? Lá nas... os mininos são bonzinhos.
Não consegui responder-lhe. Abafei as lágrimas num abraço que se prolongou mais do que devia e, mais recomposta, dei-lhe dois beijinhos.
- Bom fim de semana, Ricardo.
-Até à semana que veim, proféssora!
E fiquei longamente a vê-lo afastar-se ao fundo do corredor, aos pulinhos, mochila às costas, bola de futebol numa mão, casaco na outra. E detive-me nas palavras que me bailavam na cabeça. E demorei-me na ternura daquele anjinho.
Hoje é Dia Mundial D'ele.


9 comentários:

Anónimo disse...

Um consolo saber que nem todos se perdem...Um consolo saber que há pais que percebem e se interessam realmente pelo que se passa na vida dos filhos e procuram alternativas melhores.
Trabalho com miúdos aqui, de challenging backgrounds, they call them, de idades várias, e às vezes é muito difícil ver miúdos tão inteligentes a percorrerem caminhos sem saída. A frustração...
Que o dia da criança seja o dia do ricardo.

Joana disse...

Cientista,

Ora nem mais. O Dia do Ricardo. Temos dito. ;)

Jinhos.

Anónimo disse...
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Joana disse...
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Anónimo disse...
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Anónimo disse...
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Ema disse...
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Ema disse...
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Filha disse...
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