quarta-feira, fevereiro 11, 2009

De uma ternura imensa



Não sou deste tempo.

Não sou. Não sei de que tempo sou, mas não sou deste. Também não sou dantes deste. Viajo demasiado, conheço demasiado, olho e vejo, e gosto de olhar e ver, demasiado. Não sou de depois deste tempo sequer. Doem-me as pessoas deste tempo que o amanhã revelará, doem-me essas pessoas, as pessoas com medo, as pessoas que desculpam o medo que lhes sobra com o tempo que lhes falta para estar. Estar só. Estar com. Estar só com. Seja de que maneira for, que o estar com tem maneiras... tantas quantas a vontade de estar, e o engenho, e a arte, e o coração, ditarem – se porventura quisermos escutar.

Gosto de coleccionar sorrisos. (E camafeus. E caixas de fotografias. E varia de joaninhas.) Há quem coleccione amigos, eu que sou difícil, exigente com os outros e muito mais, mas muito mais mesmo, comigo, eu que não suporto certos outros, às vezes, muitas vezes, e sempre – ou nunca – alguns, e até a mim não me suporto muitas vezes, colecciono sorrisos. Receber um sorriso, alguns sorrisos – os difíceis –, é como me porem uma flor no cabelo. Algo de absolutamente maravilhoso, de fora deste mundo, deste tempo. Enfim. Tenho uma atracção irremediável por sorrisos difíceis. Deve ter qualquer coisa a ver com o complexo da maternidade universal que acho que tenho, vejo-me sempre a querer reabilitar pessoas devolutas com um esmero e uma dedicação e um carinho e. Tudo o mais, que vem não sei de onde – já perdi há muito o sítio onde isso se arruma normalmente – mas é tudo muito autêntico, as emoções estão mais na cabeça que em qualquer outro sítio, órgão, do corpo humano, creio. De resto, não há sorriso que brilhe mais, dentro e fora de mim, do que o de uma pessoa que não sorri facilmente – pronto.

E foi mais ou menos assim, por vias desta minha apetência para o ‘construtivo’, e sob o disfarce-necessidade-absoluta-de-comprar-prenda-de-aniversário-para-amigo-tristinho, que tropecei neste António, prenda minha para mim de há tanto tempo pretendida. (E pensando bem, se me ficar só pela apetência, foi assim que tropecei num outro António, prenda também – mas isso, para uma próxima.) Este António é o António Lobo Antunes íntimo. E jovem. E magro. E loiríssimo. E ainda mais apaixonado, apaixonadissíssimo, pela mulher. (Não vou escrever primeira, porque do que ando a ler só posso concluir que única. Única mulher. E a unicidade não tem ordinal, nem em Português, nem noutra língua qualquer. A mulher, portanto.)

Difícil. Parece-me difícil. E o que eu gosto disso!... Difícil. De ler, de perceber no imediato, de tudo. Difícil de tudo. Dá luta. E eu gosto. Difícil agora. Há tempos esteve em Braga. Difícil de sorrir, difícil de fazer sorrir, difícil de ouvir sem. Agora. Este António de agora. Difícil.

Do livro proliferam, na web pelo menos, críticas acerca do patamar a que o voyeurismo, o voyeurismo somente, elevou esta obra-menor, menor totalmente; acerca da puerilidade da ternura que este António, que não é o de hoje, o de agora, o difícil, o grande, o maior da actualidade, deixa passar; acerca da. Puerilidade da ternura. “Puerilidade da ternura” parece-me péssimo como expressão fixa. Além do mais, qualificar um substantivo abstracto com uma qualidade, parece-me no mínimo... crítico! de tão... criticável! Felizmente, noutra dessas críticas “... de uma ternura imensa...” entrou-me pelos olhos dentro e não saiu mais. “Imenso” sim, parece-me ser um qualificativo adequado para um nome abstracto, para um nome como ternura, para esta ternura:

Meu amor querido

Adoro-te minha gata de Janeiro meu amor minha gazela meu miosótis minha estrela aldebaran minha amante minha Via Láctea minha filha minha mãe minha esposa minha margarida meu gerânio minha princesa aristocrática minha preta minha branca minha chinezinha minha Paulina Bonaparte minha história de fadas minha Ariana minha heroína de Racine minha ternura meu gosto de luar meu Paris minha fita de cor meu vício secreto minha torre de andorinhas três horas da manhã minha melancolia minha polpa de fruto meu diamante meu sol meu copo de água minhas Escadinhas da Saudade minha morfina ópio cocaína minha ferida aberta minha extensão polar minha floresta meu fogo minha única alegria minha América e meu Brasil minha vela acesa minha candeia minha casa meu lugar habitável minha mesa posta minha toalha de linho minha cobra minha figura de andor meu anjo de Boticelli meu mar meu feriado meu domingo de Ramos meu Setembro de vindimas meu moinho no monte meu vento norte meu sábado à noite meu diário minha história de quadradinhos meu recife de Manuel Bandeira minha Passargada meu templo grego minha colina meu verso de Hölderlin meu gerânio meus olhos grandes de noite minha linda boca macia dupla como uma concha fechada meus seios suaves e carnudos meu enxuto ventre liso minhas pernas nervosas minhas unhas polidas meu longo pescoço vivo e ágil minhas palavras segredadas meu vaso etrusco minha sala de castelo espelhada meu jardim minha excitação de risos minha doce forquilha de coxas minha eterna adolescente minha pedra brunida meu pássaro no mais alto ramo da tarde meu voo de asas minha ânfora meu pão de ló minha estrada minha praia de Agosto minha luz caiada meu muro meu soluço de fonte meu lago minha Penélope meu jovem rio selvagem meu crepúsculo minha aurora entre ruínas minha Grécia minha maré cheia minha muralha contra as ondas meu véu de noiva minha cintura meu pequenino queixo zangado minha transparência de tules minha taça de oiro minha Ofélia meu lírio meu perfume de terra meu corpo gémeo meu navio de partir minha cidade meus dentes ferozmente brancos minhas mãos sombrias minha torre de Belém meu Nilo meu Ganges meu templo hindu minha areia entre os dedos minha aurora minha harpa meu arbusto de sons meu país minha ilha minha porta para o mar meu mangerico meu cravo de papel minha Madragoa minha morte de amor minha Ana Karénine minha lâmpada de aladino minha mulher


António Lobo Antunes, D'este viver aqui neste papel descripto - cartas de guerra

Acho que há uma altura em que se é assim. Imenso. Depois passa: a vida traga-nos isso. E se passa para o lado de lá da vida. E não se é de tempo nenhum. E se escreve. E o agora fica um bocadinho mais duro. Difícil.

Mas.

Há sempre um mas. Nem que seja para prender aquela parte do cabelo que sempre esvoaça.

9 comentários:

Oásis disse...

"minha mulher" é lindo e diz tudo :)

Adorei a carta!

Anónimo disse...

JOANINHA: ENTÃO PODE ENTENDER AGORA PORQUE É QUE SE PODE DIZER QUE A SAUDADE DÓI, QUE A POESIA DÓI,QUE RECORDAR DÓI... O TEMPO DE QUE SE É NÃO TEM NADA A VER COM ISTO. O QUE TEM A VER É SER-SE DAÍ, DESSA ZONA DE AMAR... NO PRESENTE, NO MAIS QUE PERFEITO OU NUM CERTO INFINITO...

intruso disse...

intenso,
o uso repetido do 'possessivo' (e o seu despespero) que a ingenuidade não disfarça...


o tempo muda, muda-se,
transforma, corrói, mata (ou não...)


[deu-me que pensar, o teu post;
um pensar disperso e difícil]
:)

...e a vontade de o reler.



beijo

Joana disse...

Marisa,

Sim: É forte! :D Parece-se um tanto ou quanto com um "meu amor" que li há tempos não sei onde... ;)

Querida Maria de Lourdes,

Sim: foi por ter entendido que fui logo a correr dar-lhe a minha presença possível. Foi precisamente por entender e não querer que nunca ninguém a quem chame meu perceba. :*

Intruso,

Como eu gosto da tua maneira de ler os meus posts!

Dá-me sempre que pensar, também! :D

Jinhos a todos.

tchi disse...

Forte. Sempre.

Mas...

Como tu dizes, haverá sempre oportunidade, quiçá, «para prender aquela parte do cabelo que sempre esvoaça».

Substantialitate.

Fica bem jj.

Beijinho.

V. disse...

Porque motivo apenas te aproximas de mim quando queres fazer amor? No resto do tempo chegas do banco e és só jornal e calças no sofá, se tento falar-te o jornal treme de zanga, sobe mais um pouco, as pernas cruzam-se, impacientes, em sentido contrário, o sapato fica a dar e dar no vazio, toco-te e encolhes-te, faço-te uma festa no cabelo e a cabeça diminui de tamanho, arrepiada, um protesto ronca das notícias

- O que foi agora?

- Já nem se pode ler em paz?

- Fazes o favor de não me despentear?

jantas calado a rolar bolinhas de pão entre suspiros, desapareces antes que eu acabe de comer, nem uma palavra para a minha saia nova, uma pergunta sobre como me correu o dia nas finanças, um beijo, ficas de mãos nos bolsos a olhar o prédio em frente, atiras o canal para o desporto quando começa a novela, aborreces-te do desporto, carregas no botão e reaparece a novela

- Olha essa porcaria à tua vontade

tudo te enjoa, te aborrece, te cansa e uma vez por semana, quando já estou meia a dormir, o teu braço a arrepelar-me, o ombro que me aleija, uma vertigem rápida, um camião a abanar o prédio na rua, eu a fixar os números luminosos do despertador ao lado das tuas costas indiferentes, o que aconteceu, amor, para mudares assim tanto (- Não mudei nada, que mania) ao conhecermo-nos, há dez, minto, há onze anos, chegavas-te a mim embrulhado em vénias de timidez, a ensaboar as mãos, com o sorriso borboleteando em volta da boca sem se atrever a poisar

- Um dia destes convido-a para um café, menina Clara

tão atencioso, tão terno, tão preocupado comigo, a notar quando eu mudava de brincos, de penteado, de anel

- Que bem lhe fica a franja, menina Clara

o meu pai simpatizou logo contigo por te levantares, com o tal sorriso a adejar, mal eu entrava na sala, o que aconteceu, amor, para mudares assim tanto

(- E ela a dar-lhe, que gaita)

descíamos para a muralha do rio, em Novembro, com as gaivotas todas na praia, corríamos de mão dada a assustar os pássaros, achavas-me graça, achavas-me bonita, dizias que eu ficava linda a correr

- Parece mesmo uma gaivota, sabia?

que qualquer dia me escapava de ti, a bater as asas no rasto de um cargueiro turco, perguntavas-me ao ouvido, aflitissimo, ansioso

- Nunca me deixa, pois não?

(- As fantasias que tu vais buscar, meu Deus)

apertavas-me tanto pela cintura que quase não conseguia respirar, por favor explica-me o que fiz de mal para mudares assim tanto, ainda sou capaz de correr da mesma maneira se voltarmos à praia em Novembro, que é feito do teu sorriso e do ensaboar das mãos, ponho um baton diferente, a blusa decotada, os sapatos que nunca me atrevi a usar para os homens não se meterem comigo na avenida

- Ainda há quem me ache engraçada, sabias?

(- Pois que lhes faça muito bom proveito)

desço lá abaixo à muralha e fico no meio das gaivotas à espera que chegues

(- Agora deste em maluca ou quê?)

sem jornal, sem caretas, sem bolinhas de pão, a convidares-me, nervoso, para um café na esplanada, soprando pelo meio do sorriso que não pare, que não pare

- Apetece-me tanto dar-lhe um beijo, Clarinha

(- As parvoíces que a gente diz em novo, senhores)

e nisto, não sei se deste conta, as gaivotas sumiram-se todas e ficamos sozinhos, amor, só a praia e as ondas e eu tão contente, tão com a certeza - ainda tenho a certeza

(- Cada qual tem as certezas que quer)

de sermos felizes para sempre, de podermos ser felizes se um dia me deixares; deixas não deixas, aposto que deixas,

(- Que teimosia, que insistência, já é cisma, caramba)

abraçar-te.


[ António Lobo Antunes ]


pronto. tinha de deixar aqui. porque gosto de gaivotas. porque sempre que leio estas palavras (e outras) fico à beira das lágrimas - de coração ainda mais avariado - e porque escrever emoções à beira do abismo não é (mesmo) para todos. e - digo-te - se gostei de ver o lobo antunes aqui, ainda gostei mais de te ler a ti. saio daqui a pensar que também sou assim: tenho uma atracção desgraçada por sorrisos difíceis. :)

beijinho grande*

kelly disse...

estou espalhada pela casa, em cacos. tão bonito tão tão bonito, e sobretudo tão intenso para mim que parei na reabilitação dos corações devolutos. nessa cegueira-missão com que se nasce... não vou ler o resto ainda. vou dormir, descansar. amanhã volto, juro que volto. por favor não apagues o post!
beijinho, sorriso e lágrima

Joana disse...

Tchi,

"Substantialitate"? :P

Obrigada pela visita e pelos comentários tão simpáticos. A porta está aberta em permanência.


Vanessa,

Tinhas mesmo (que deixar)! :)))))

Como é que tu consegues ser tão completamente assim, rapariga?!


Raquel,

Idem aspas de acima!

Se calhar nascemos as quatro do mesmo ovo. Se calhar, fatalidade do destino, a gaivota :P despistou-se, partiu o ovo e depositámo-nos em quatro sítios difirentes. Se calhar, não? :P

P.S. Não apago não, este é mesmo POSTeridade para ficar connosco.


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kelly disse...

se calhar foi mesmo isso!!!
risos e beijos