segunda-feira, março 06, 2006

A FEBRE DE DOMINGO À NOITE

Tenho uma gripe. De certeza.
Ontem acordei com uma forte vontade de vomitar, não conseguia estar em pé, doía-me o corpo todo (mas especialmente os olhos – como sempre quando estou a chocar uma gripe, mas não das aves porque sou vegetariana!), tinha os olhos vidrados e febre. Muita febre. Passei o dia ora a suar em bica, ora a tremer de frio. Quando suava, afastava os lençóis, quando tremia puxava-os para cima. Uma autêntica odisseia. E ainda queria ver os Óscares ao jantar. Inocente criança!
Detesto estar doente. Quando fico doente tenho que ir ao médico e como enquanto vivia com os meus pais isso só foi necessário uma vez (em dezassete anos de existência, é obra!), já que a gravidade dessa situação ia para além dos conhecimentos e autoridade profissional do meu pai; desde então sempre que tenho de ir ao médico é um drama. É como se caminhasse ao longo do corredor da morte. O meu coração bate muito acelerado, não consigo parar de suar das mãos. Esqueço-me de contar detalhada e organizadamente como tudo começou, os sintomas, a medicação a que sou alérgica…enfim, sai tudo muito atabalhoadamente, às vezes quase aos soluços. O que vale é que levo sempre comigo a mana, que, de tão bem me conhecer e escrever tanta história clínica, sempre compõe as minhas tentativas vãs de comunicação num quadro clínico verosímil, compreensível e decente.
Tenho pavor a estados febris. É que associo a febre à morte. Os meus amigos acham que sou hipocondríaca. O meu pai já não liga. A minha irmã ri-se.
Mas o paralelo é pertinente. Já explico.
Caracterização sumária da minha pessoa acometida por um estado febril: estado dominante – fraqueza, uma fraqueza subjugadora que me verga além do humanamente imaginável – não consigo levantar-me da cama; se o faço tudo gira à minha volta antes de ficar turvo e depois branco, muito branco, tão branco que cega; estados concomitantes – sede, tenho muita sede e a garganta muito seca (conclusão: bebo litros e litros de água – sim, sei que faz bem, mas não como nada porque não consigo, porque já não há no meu estômago espaço para o que quer que seja); frio, muito frio e arrepios, como se a toda a hora houvesse uma corrente de ar – e é inacreditável porque quando estou com frio a minha cara está a ferver e vermelhíssima e então agasalho-me; calor, muito calor, suor a escorrer em bica, cara branca, amarela e verde de pálida, segundo ou terceiro pijama do dia ensopado junto ao corpo e isto poucos minutos após ter estado a tremer e ter decidido agasalhar-me.
Por isso, não percebo as reacções das pessoas quando digo. “Estou a sentir-me mal, acho que vou morrer.” (Admito que digo o mesmo quando apanho um resfriado e até quando como aquilo que sei que me faz mal. Mas aí é apenas o mimo a falar por mim. Nunca tenho febre nessas situações. Ontem tinha.)
Não percebo como a morte possa ser diferente da ausência de vitalidade que acabei de descrever. Pior não é certamente. Não pode ser.
Então ontem porque queria ver os Óscares, o que por força das circunstâncias se estava a tornar quase impossível (afasta lençol, puxa lençol, vira para um lado, vira para o outro, sua um pijama, muda para outro, puxa lençol, afasta lençol) e, sobretudo, impelida pelo pavor de uma primeira incursão pelo corporativista sistema de saúde americano, tentei esquecer a debilidade e procurei o Kit de Primeiros Socorros que o meu pai e a minha irmã atafulharam de medicamentos no final deste Verão antes de eu vir para cá. Benditos sejam os químicos. (Sou vegetariana e muito a favor de tudo quanto seja natural: chá de limão com mel, sopa quente, citrinos em abundância... mas esta era uma daquelas, fortes, e portanto para situações extremas… medidas extremas!)
Bendito seja o primeiro farmacologista (farmacólogo???) à face da Terra. Devia ser canonizado. A sério.
Benditos sejam os médicos. Continuem a fazer o trabalho deles, a milhas da minha pessoa (de preferência).
Bendito seja o meu pai. E a mana. Claro.
Ainda não é desta que vou explorar por dentro o Centro Médico de Houston.
Vi os Óscares retalhadamente entre mudas de pijamas e substituições de garrafas de água, pelo que nem vou comentar.
“My Oscar goes to Mitridates, the first pharmacologist”.

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