Tinha nove anos, lembro-me bem. Estava no dentista, naquela que não sendo a minha primeira ida, foi com certeza das primeiras.
A secretária, polivalente assistente também, era jovem, bem-disposta (sempre), calma (sempre) e um doce comigo. Sempre. Calculo que fosse uma criança encantadora também. Nunca mexia em nada. Nunca saía do lugar. Não falava muito. Observava tudo com interesse. Desinteressava-me quando não havia mais nada de novo para observar. Ainda hoje sou assim.
A secretária emprestava-me os seus livros de BD que depois da consulta eram invariavelmente meus. Não que eu alguma vez os tivesse pedido, ela assim o queria, suponho. Desde as tropelias do Pateta à ternura do Mickey e da Minnie, desde os mergulhos do Tio Patinhas naquele invejável cofre-forte às aventuras do Pato Donald com os sobrinhos, passando pelos brasileirissímos Mónica e Cascão…tudo havia já sido posto sob o microscópio através dos meus olhos inquisidores.
Mas, porque o paciente anterior demorava a sair (era pelos vistos um caso complicado), os livros de BD tinham já perdido o interesse – já estavam todos lidos – e a secretária que não vinha dar-me outro!... O tempo a passar…mui-to len-ta-men-te e eu sem fazer nada. Já conhecia as paredes, os quadros, as flores e as borboletas de cor. Fechava os olhos e conseguia ver com perfeição todos aqueles objectos perfeitamente dispostos no espaço da sala de espera. Depois tentava destruir aquela organização do espaço, imaginava outra disposição e outra e outra… mas as músicas do momento que as colunas transmitiam desconcentravam-me… e as tiradas do Cascão eram mais giras do que o meu exercício interior iconoclasta.
Enfim, lá dei uma hipótese às revistas para adultos que estavam em cima da mesinha. Imprensa cor-de-rosa típica: trivialidades, personalidades, efemérides, novidades – tudo coisas muito distantes do meu mundo de criança de nove anos e que, portanto, não me entusiasmaram muito. Mas o homem (ou a mulher) nunca mais saía e aquilo era tudo o que eu tinha de desconhecido para me ocupar. Como sou muito visual (sempre fui) comecei a apreciar as pessoas que faziam notícia. Roupas, penteados, expressões… e tentava imaginá-las com outras roupas e penteados, as roupas e penteados que eu criaria para elas. Seriam as suas expressões as mesmas?
Fiz isto com umas três revistas, estava achar graça à nova forma de entretenimento, muito mais até que aos livros de BD. Mas lá para o fim da quarta revista a imaginação entrou em greve. Deixou de funcionar. Não, eu não estava cansada. Estava apaixonada. Pela primeira vez. E tanto e tão intensamente quanto uma criança de nove anos pode estar por um atleta de vinte, cujo casamento a revista acabava de divulgar.
Não me recordo da consulta que certamente se seguiu a esse momento iluminador. Lembro-me sim que os livros de BD me foram oferecidos, como sempre, no fim da mesma. Mas eu já não queria saber deles. Queria a revista. Aquela revista. Ou pelo menos a fotografia. Uma fotografia pequenina que pouco mais deixava ver que dois jovens divertidos à saída da igreja, com a alegria que a felicidade costuma dar ao coração estampadíssima nos rostos, toldados ante tanto arroz que lhes caía em cima.
Não sei como, consegui levar a fotografia para casa. A essa juntaram-se muitas outras, centenas, pelos anos fora. Da adolescência até ao início da idade adulta. Variadíssimas revistas foram-se acumulando. Na secretária, debaixo da cama, dentro do armário. Da mesma forma, juvenil e espontânea, foram-se sucedendo as mais diversas e sentidas manifestações, de apoio – sempre incondicional –, de apreço – sempre eterno –, de apreensão – sempre natural – diante de algo menos bom… e aconteceu tantas vezes! Lágrimas quando deixou a terra-mãe. Tristeza. Lágrimas quando regressou. Alegria. Coração apertado quando falei com ele pela primeira vez. Inocência. Coração apertado quando o encontrei segunda vez. Reincidência. E assim sempre até ao dia em que me apercebi de que a chama daquela devoção, religiosamente mantida ao longo de uma boa dezena de anos, se havia extinguido. Foi de mansinho, sem mágoa e sem mancha, com toda a candura e beleza que os impossíveis encerram. Na paz.
Profunda alegria e orgulho neste momento em que o recordo. Que todas as crianças de nove anos tenham a sorte de ter um ídolo como o meu. Exemplar. Como os ídolos devem ser. Humano. Todavia, e simultaneamente, – com todos os “recomeçares” que isso acarreta. Humano, como todos devemos ousar ser.
A secretária, polivalente assistente também, era jovem, bem-disposta (sempre), calma (sempre) e um doce comigo. Sempre. Calculo que fosse uma criança encantadora também. Nunca mexia em nada. Nunca saía do lugar. Não falava muito. Observava tudo com interesse. Desinteressava-me quando não havia mais nada de novo para observar. Ainda hoje sou assim.
A secretária emprestava-me os seus livros de BD que depois da consulta eram invariavelmente meus. Não que eu alguma vez os tivesse pedido, ela assim o queria, suponho. Desde as tropelias do Pateta à ternura do Mickey e da Minnie, desde os mergulhos do Tio Patinhas naquele invejável cofre-forte às aventuras do Pato Donald com os sobrinhos, passando pelos brasileirissímos Mónica e Cascão…tudo havia já sido posto sob o microscópio através dos meus olhos inquisidores.
Mas, porque o paciente anterior demorava a sair (era pelos vistos um caso complicado), os livros de BD tinham já perdido o interesse – já estavam todos lidos – e a secretária que não vinha dar-me outro!... O tempo a passar…mui-to len-ta-men-te e eu sem fazer nada. Já conhecia as paredes, os quadros, as flores e as borboletas de cor. Fechava os olhos e conseguia ver com perfeição todos aqueles objectos perfeitamente dispostos no espaço da sala de espera. Depois tentava destruir aquela organização do espaço, imaginava outra disposição e outra e outra… mas as músicas do momento que as colunas transmitiam desconcentravam-me… e as tiradas do Cascão eram mais giras do que o meu exercício interior iconoclasta.
Enfim, lá dei uma hipótese às revistas para adultos que estavam em cima da mesinha. Imprensa cor-de-rosa típica: trivialidades, personalidades, efemérides, novidades – tudo coisas muito distantes do meu mundo de criança de nove anos e que, portanto, não me entusiasmaram muito. Mas o homem (ou a mulher) nunca mais saía e aquilo era tudo o que eu tinha de desconhecido para me ocupar. Como sou muito visual (sempre fui) comecei a apreciar as pessoas que faziam notícia. Roupas, penteados, expressões… e tentava imaginá-las com outras roupas e penteados, as roupas e penteados que eu criaria para elas. Seriam as suas expressões as mesmas?
Fiz isto com umas três revistas, estava achar graça à nova forma de entretenimento, muito mais até que aos livros de BD. Mas lá para o fim da quarta revista a imaginação entrou em greve. Deixou de funcionar. Não, eu não estava cansada. Estava apaixonada. Pela primeira vez. E tanto e tão intensamente quanto uma criança de nove anos pode estar por um atleta de vinte, cujo casamento a revista acabava de divulgar.
Não me recordo da consulta que certamente se seguiu a esse momento iluminador. Lembro-me sim que os livros de BD me foram oferecidos, como sempre, no fim da mesma. Mas eu já não queria saber deles. Queria a revista. Aquela revista. Ou pelo menos a fotografia. Uma fotografia pequenina que pouco mais deixava ver que dois jovens divertidos à saída da igreja, com a alegria que a felicidade costuma dar ao coração estampadíssima nos rostos, toldados ante tanto arroz que lhes caía em cima.
Não sei como, consegui levar a fotografia para casa. A essa juntaram-se muitas outras, centenas, pelos anos fora. Da adolescência até ao início da idade adulta. Variadíssimas revistas foram-se acumulando. Na secretária, debaixo da cama, dentro do armário. Da mesma forma, juvenil e espontânea, foram-se sucedendo as mais diversas e sentidas manifestações, de apoio – sempre incondicional –, de apreço – sempre eterno –, de apreensão – sempre natural – diante de algo menos bom… e aconteceu tantas vezes! Lágrimas quando deixou a terra-mãe. Tristeza. Lágrimas quando regressou. Alegria. Coração apertado quando falei com ele pela primeira vez. Inocência. Coração apertado quando o encontrei segunda vez. Reincidência. E assim sempre até ao dia em que me apercebi de que a chama daquela devoção, religiosamente mantida ao longo de uma boa dezena de anos, se havia extinguido. Foi de mansinho, sem mágoa e sem mancha, com toda a candura e beleza que os impossíveis encerram. Na paz.
Profunda alegria e orgulho neste momento em que o recordo. Que todas as crianças de nove anos tenham a sorte de ter um ídolo como o meu. Exemplar. Como os ídolos devem ser. Humano. Todavia, e simultaneamente, – com todos os “recomeçares” que isso acarreta. Humano, como todos devemos ousar ser.
3 comentários:
Ler-te é cada vez mais uma experiência a descobrir.
Obrigado pela visita.
Exclusivamente para o meu idolo dos blogs - Katraponga: Que bom saber-te por este meu humilde cantinho...
Um click torna tudo tão diferente. É assim...
Eduardo
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