A minha tia tem sessenta e seis anos, uma vida religiosa cheia de experiências várias, trabalho árduo e profunda dedicação ao bem.
A minha tia sempre foi líder: inteligente, segura, frontal, determinada, influente, dura, astuciosa, adaptável, controladora, clarividente, moderna, imprevisível, audaz.
A minha tia ganhou com isso muitas inimizades. Por todos os sítios onde passou. Mesmo no seio da congregação. Mesmo entre irmãs em religião. Infelizmente.
A minha tia tem uma doença muito grave. Esquece-se. De tudo. Para ela é sempre Agora. E no Agora que é sempre nunca há nada. Só há o Vácuo. O Vazio. E o desejo constante de saber, de estar a par.
Lembra-se perfeitamente da sua infância, mas esquece-se daquilo que lhe acabo de contar. Recorda com exactidão o meu percurso académico, mas não sabe onde deixou as chaves. Falo-lhe da minha estadia nos EUA. Pela enésima vez. E pergunta-me com a mesma frescura da primeira: “Está bem querida, mas e a investigação como vai?”
A minha tia tem Alzheimer.
A minha tia está a morrer cada momento que passa. A uma rapidez verdadeiramente assustadora. E a cada momento que passa parte de nós morre com ela.
A minha tia está a morrer a cada momento que passa e a instituição à qual dedicou toda a vida prefere encerrar-se num autismo muito conveniente e fechar os olhos a todo este processo. Ignoram-na. Olham em frente. Acobardam-se. Olham para o lado. Fogem-lhe. Voltam-lhe as costas. Apagam da consciência o facto (a realidade) de ela estar doente e, sob a justificação de um “cansaço” – maleita comum e frequente nos dias que correm –, olvidam o direito que qualquer ser humano doente tem a uma consulta médica da especialidade, a uma assistência profissional adequada, a exames, a uma segunda, terceira, quarta opinião. E, passando o esférico à família, transformam esse direito num dever familiar, negligentemente – reputam elas –, incumprido.
Quando foi precisamente a família que, apesar de só ter um contacto próximo, verdadeiramente familiar, com ela quinze dias por ano, detectou a etiologia e a levou ao médico. Já muito tarde. Infelizmente. Quando foi a família que teve de as alertar explicita e duramente para a impossibilidade de ela continuar a trabalhar.
Negligenciaram-na. Se calhar, desde sempre. E negligenciam-na ainda. Agora. Ostracizam-na. Votam-na ao esquecimento. Como se já não fosse o esquecimento o limbo em que ela se encontra perdida, encerrada para sempre, manietada ao limite.
E esquecem-se – mas não como ela –, esquecem-se propositadamente, por opção e conveniência, de que o património, que ostentam cá e estabeleceram facilmente noutros continentes, muito suor e lágrimas tem da minha tia. Esquecem-se da oposição férrea do meu avô e das lágrimas da minha avó quando ela partiu para o convento, há cinquenta anos atrás. Esquecem-se das verdadeiras revoluções operadas em todas as casas que ela dirigiu: das consecutivas melhorias infraestruturais, humanas e até emocionais que ela implementou e soube manter; das incríveis subidas percentuais do número de internas que passou a apostar na formação e até no ensino superior; da restituição do bom nome da instituição (e até da ordem) que ela promoveu. Esquecem-se de que só a vemos quinze dias por ano, por alturas das Festas – mas nunca no Natal, porque “O Natal tem que ser passado com a Comunidade.” Esquecem-se, não sabem, ou não querem saber, de que quando ela chega, a 27 de Dezembro todos os anos, o verdadeiro Natal começa. A alegria, a festa, a emoção… os melhores presentes também. É verdade. Esquecem-se de que é a nossa única tia do lado da mãe e sempre tivemos e temos todos uma verdadeira adoração por ela. Esquecem-se de que sabemos de tudo, mas principalmente de duas coisas: 1) a adoração é mútua e 2) somos os sobrinhos favoritos. (Ela também é a tia favorita!...)
E eu tenho uma gavetinha especial na cómoda dos favoritos. Sei. Todos me lembram das noites em que, ainda bebé, dormi com ela para dar descanso aos meus pais. Elas também sabem, mas esquecem. Todos me lembram da choradeira provocada pela minha constatação da sua ausência da cama quando, de madrugada, se levantava para as orações matinais e me deixava a “dormir”. Elas também sabem, ouviram, mas esquecem. Todos me lembram dos passeios com os avós e a tia pelos jardins do colégio. Há fotos. Elas sabem, tiraram, viram, mas esquecem. E mais recentemente… quantas épocas de exames passei com ela! E, de duas em duas horas, lá vinha ver como eu estava e dar-me leite quente e chocolates. “Para teres energia para continuar…” E à noite ligava o aquecimento logo que sabia que me preparava para dormir. “Para dormires bem… quentinha…” E quando falava com as pessoas sobre mim, ou me apresentava a essas mesmas pessoas, os seus olhos brilhavam, crescia toda e transcendia-se numa estima e num orgulho, verdadeiramente maternais, sem limites.
Conhece-me desde sempre. Conhece-me desde sempre e recuso pensar ou conceber sequer que haverá fatalmente um dia em que isso vai deixar de acontecer…
Somos muito parecidas. Somos iguais. Na intransigência, na teimosia, na força, na determinação, no controlo, na ambição, na prepotência, na coragem, no estoicismo, na abnegação, no sacrifício, na entrega… Na primogenia, na protecção familiar… Iguais.
Elas sabem tudo. Sempre souberam. Sempre, porque desde o início, há cinquenta anos atrás, entraram e se tornaram parte do nosso universo familiar. Por ela. Através dela. Com ela. Elas esquecem-se agora. Preferem assim. Um dia ela vai esquecer. Tudo. Mas eu não. Eu não.
A minha tia sempre foi líder: inteligente, segura, frontal, determinada, influente, dura, astuciosa, adaptável, controladora, clarividente, moderna, imprevisível, audaz.
A minha tia ganhou com isso muitas inimizades. Por todos os sítios onde passou. Mesmo no seio da congregação. Mesmo entre irmãs em religião. Infelizmente.
A minha tia tem uma doença muito grave. Esquece-se. De tudo. Para ela é sempre Agora. E no Agora que é sempre nunca há nada. Só há o Vácuo. O Vazio. E o desejo constante de saber, de estar a par.
Lembra-se perfeitamente da sua infância, mas esquece-se daquilo que lhe acabo de contar. Recorda com exactidão o meu percurso académico, mas não sabe onde deixou as chaves. Falo-lhe da minha estadia nos EUA. Pela enésima vez. E pergunta-me com a mesma frescura da primeira: “Está bem querida, mas e a investigação como vai?”
A minha tia tem Alzheimer.
A minha tia está a morrer cada momento que passa. A uma rapidez verdadeiramente assustadora. E a cada momento que passa parte de nós morre com ela.
A minha tia está a morrer a cada momento que passa e a instituição à qual dedicou toda a vida prefere encerrar-se num autismo muito conveniente e fechar os olhos a todo este processo. Ignoram-na. Olham em frente. Acobardam-se. Olham para o lado. Fogem-lhe. Voltam-lhe as costas. Apagam da consciência o facto (a realidade) de ela estar doente e, sob a justificação de um “cansaço” – maleita comum e frequente nos dias que correm –, olvidam o direito que qualquer ser humano doente tem a uma consulta médica da especialidade, a uma assistência profissional adequada, a exames, a uma segunda, terceira, quarta opinião. E, passando o esférico à família, transformam esse direito num dever familiar, negligentemente – reputam elas –, incumprido.
Quando foi precisamente a família que, apesar de só ter um contacto próximo, verdadeiramente familiar, com ela quinze dias por ano, detectou a etiologia e a levou ao médico. Já muito tarde. Infelizmente. Quando foi a família que teve de as alertar explicita e duramente para a impossibilidade de ela continuar a trabalhar.
Negligenciaram-na. Se calhar, desde sempre. E negligenciam-na ainda. Agora. Ostracizam-na. Votam-na ao esquecimento. Como se já não fosse o esquecimento o limbo em que ela se encontra perdida, encerrada para sempre, manietada ao limite.
E esquecem-se – mas não como ela –, esquecem-se propositadamente, por opção e conveniência, de que o património, que ostentam cá e estabeleceram facilmente noutros continentes, muito suor e lágrimas tem da minha tia. Esquecem-se da oposição férrea do meu avô e das lágrimas da minha avó quando ela partiu para o convento, há cinquenta anos atrás. Esquecem-se das verdadeiras revoluções operadas em todas as casas que ela dirigiu: das consecutivas melhorias infraestruturais, humanas e até emocionais que ela implementou e soube manter; das incríveis subidas percentuais do número de internas que passou a apostar na formação e até no ensino superior; da restituição do bom nome da instituição (e até da ordem) que ela promoveu. Esquecem-se de que só a vemos quinze dias por ano, por alturas das Festas – mas nunca no Natal, porque “O Natal tem que ser passado com a Comunidade.” Esquecem-se, não sabem, ou não querem saber, de que quando ela chega, a 27 de Dezembro todos os anos, o verdadeiro Natal começa. A alegria, a festa, a emoção… os melhores presentes também. É verdade. Esquecem-se de que é a nossa única tia do lado da mãe e sempre tivemos e temos todos uma verdadeira adoração por ela. Esquecem-se de que sabemos de tudo, mas principalmente de duas coisas: 1) a adoração é mútua e 2) somos os sobrinhos favoritos. (Ela também é a tia favorita!...)
E eu tenho uma gavetinha especial na cómoda dos favoritos. Sei. Todos me lembram das noites em que, ainda bebé, dormi com ela para dar descanso aos meus pais. Elas também sabem, mas esquecem. Todos me lembram da choradeira provocada pela minha constatação da sua ausência da cama quando, de madrugada, se levantava para as orações matinais e me deixava a “dormir”. Elas também sabem, ouviram, mas esquecem. Todos me lembram dos passeios com os avós e a tia pelos jardins do colégio. Há fotos. Elas sabem, tiraram, viram, mas esquecem. E mais recentemente… quantas épocas de exames passei com ela! E, de duas em duas horas, lá vinha ver como eu estava e dar-me leite quente e chocolates. “Para teres energia para continuar…” E à noite ligava o aquecimento logo que sabia que me preparava para dormir. “Para dormires bem… quentinha…” E quando falava com as pessoas sobre mim, ou me apresentava a essas mesmas pessoas, os seus olhos brilhavam, crescia toda e transcendia-se numa estima e num orgulho, verdadeiramente maternais, sem limites.
Conhece-me desde sempre. Conhece-me desde sempre e recuso pensar ou conceber sequer que haverá fatalmente um dia em que isso vai deixar de acontecer…
Somos muito parecidas. Somos iguais. Na intransigência, na teimosia, na força, na determinação, no controlo, na ambição, na prepotência, na coragem, no estoicismo, na abnegação, no sacrifício, na entrega… Na primogenia, na protecção familiar… Iguais.
Elas sabem tudo. Sempre souberam. Sempre, porque desde o início, há cinquenta anos atrás, entraram e se tornaram parte do nosso universo familiar. Por ela. Através dela. Com ela. Elas esquecem-se agora. Preferem assim. Um dia ela vai esquecer. Tudo. Mas eu não. Eu não.
1 comentário:
o fim ta excelente..."Eu n, eu n.."parece o poema...mas eu n vou por ai...ou klker coisa axim...lolol!Bem como spe la tou eu na brincadeira da tentativa de fugir dos sentimentos q este texto nos traz..nas saudadx d um tempo paxado...certo...tds nos alguma coisa vamos nos eskecer...especialmente ela..mas ha coisas k nunca se eskece pq faz parte d nos..exa é uma delas...MT OBRIGADA, n por desaparecer,MAS POR TER EXISTIDO!(bigada por ter existido, por ter feito parte da minha vida e por ter dado exa oportunidade e td o k advem dela..., agora ha outras coisas diferentes nunca mais iguais, mas igualmente boas..noutra perspectiva...é ixo a vida...)(liçao aprendida com puf...) :P Bjinhos pa ti.:D Nininha
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