A minha infância toda num único aroma, quente, espesso, nutritivo – palavra de mãe, de sopa a fumegar no prato. Eu com três, quatro, anos, sentada em frente a uma mesa baixinha e redonda, a olhar em volta para as dez, onze, outras batas, eu a olhar em volta, pratos de plástico quase vazios, colheres de plástico muito cheias, eu, eu a olhar os plásticos, eu a olhar em volta, eu a olhar os outros, eu, a minha infância toda... cheira a creme de cenoura. E a sumo de tomate. Coisas do infantário.
Cheira à minha infância, lá em baixo, no bar. Cheira ao creme de cenoura, de todos os cremes de cenoura, o mais meu do universo. Cheira à cenoura sem batata, cheira ao quente, cheira ao espesso, cheira ao nutritivo – palavra de mãe, cheira ao fumegar no prato, até cheira ao tempero que eu não faço ideia qual é, mas é o mesmo – exactamente o mesmo! – de há vinte e cinco anos atrás no Funchal. Cheira a creme de cenoura. Aquele que me levou uma adolescência inteira a ultrapassar, muita cenoura crua depois.
Creme de cenoura ao almoço, sumo de tomate ao lanche, havia um dia assim, havia um outro dia em que o creme era de espinafres, mas o sumo do lanche era de laranja e por isso desse dia não reza a minha história, agora do dia do creme de cenoura, o dia por semana em que eu era genuinamente infeliz, esse sim, esse único dia em que me obrigava a ser bem-comportada, coisa a que nunca me foi preciso obrigar e no entanto, um dia único para crescer à força, o único dia em que ser bem-comportada era coisa para gente grande, custava. Muito. No fim do dia, chegava a casa e contava. Passei, passo a vida toda a chegar a casa e contar – curioso, reparo agora... – hoje foi dia de creme de cenoura e sumo de tomate. E toda a gente Ahhh!!! e a minha mãe tem paciência, filha, a cenoura faz bem aos olhos, o tomate faz bem ao sangue e é tudo muito nutritivo. E eu assentia - em mim ter paciência é como ter nariz, de desde sempre e impossível de perder – tinha que ter paciência e tinha. Ainda hoje tenho. E o que isso me dói.
Creme de cenoura ao almoço, sumo de tomate ao lanche, uma vez por semana. Nunca fazer isto a uma criança. Um quarto de século depois ainda é capaz de sentir o nó na garganta ao lembrar a que cheira a paciência. E isso não é cheiro de infância saudável.
Cheira à minha infância, lá em baixo, no bar. Cheira ao creme de cenoura, de todos os cremes de cenoura, o mais meu do universo. Cheira à cenoura sem batata, cheira ao quente, cheira ao espesso, cheira ao nutritivo – palavra de mãe, cheira ao fumegar no prato, até cheira ao tempero que eu não faço ideia qual é, mas é o mesmo – exactamente o mesmo! – de há vinte e cinco anos atrás no Funchal. Cheira a creme de cenoura. Aquele que me levou uma adolescência inteira a ultrapassar, muita cenoura crua depois.
Creme de cenoura ao almoço, sumo de tomate ao lanche, havia um dia assim, havia um outro dia em que o creme era de espinafres, mas o sumo do lanche era de laranja e por isso desse dia não reza a minha história, agora do dia do creme de cenoura, o dia por semana em que eu era genuinamente infeliz, esse sim, esse único dia em que me obrigava a ser bem-comportada, coisa a que nunca me foi preciso obrigar e no entanto, um dia único para crescer à força, o único dia em que ser bem-comportada era coisa para gente grande, custava. Muito. No fim do dia, chegava a casa e contava. Passei, passo a vida toda a chegar a casa e contar – curioso, reparo agora... – hoje foi dia de creme de cenoura e sumo de tomate. E toda a gente Ahhh!!! e a minha mãe tem paciência, filha, a cenoura faz bem aos olhos, o tomate faz bem ao sangue e é tudo muito nutritivo. E eu assentia - em mim ter paciência é como ter nariz, de desde sempre e impossível de perder – tinha que ter paciência e tinha. Ainda hoje tenho. E o que isso me dói.
Creme de cenoura ao almoço, sumo de tomate ao lanche, uma vez por semana. Nunca fazer isto a uma criança. Um quarto de século depois ainda é capaz de sentir o nó na garganta ao lembrar a que cheira a paciência. E isso não é cheiro de infância saudável.
10 comentários:
Ai que adoravaa (-adoro) o creme de cenoura, do que cheira a nutritivo. :) Já o sumo de tomate acho que nunca me deram, mas acho que não ia gostar nadinha! :))
A tua escrita é tão aconchegante. Cada vez mais.
Um beijinho*
isto é só faro de alegria, de estio, de cores ameninadas, menina. :D que coisa mais linda. linda, linda.
he he
beijinhos por escrito, ora bem.
Frida,
Pois olha que, tal como o creme de cenoura, o suminho não é mau... (Fresquinho, doce, com muito gelo e uma folhinha de hortelã-pimenta... Experimenta!) ;)
Quanto ao resto, babada - cada vez mais, também... :D
Ana Salomé,
E não é que é mesmo! A-le-gri-a! :)))) e exactamente como a pintaste. Só tu...! ;)
Jinhos a ambas.
He he
Enquanto por aqui estou, vou-te comentado. Concordo completamente com a Frida. Isto aqui é um mercadinho de aconchegos e de lucidez terna. Ainda ontem à noite adormecia a ler sobre relatos de amor à humanidade vs. amor a uma só pessoa. A mulher, que costuma ter como centro do seu interesse o homem - relegando-se para o papel de fêmea -, deve poder atingir essa imensidão amável. Pois, Joana, tu tens. Não só os olhos dizem, quando pousam como pássaros fascinados sobre o brilho assaltante das coisas e das pessoas, mas depois o voo dessa passagem: do ver ao escrever. E é uma honra poder ler tal visão, tal abrangência de afectos. Quem é mais contido e arrasta nesse amor imenso algumas pedras que nos deixam no fundo, e impedem que subamos à superfície da expressão mais consentâneo à intensidade real dos afectos, como eu, por exemplo, aprende muito contigo. Por isso, irmã humana (lol - vê lá onde isto hoje chega, tamanha a alegria de existir), te agradeço. Aqui tu fazes o milagre do pão e das rosas. As rosas são pão, porque nada tem menor valor sobre outrem. O pão sobrevive à beleza da rosa. A beleza está aqui neste mercadinho, como há pouco dizia, na sua forma mais encantadora: as palavras verdadeiras.
Beijinhos e ai-jesuses.
Ana Salomé,
Se não te conhecesse, se não estivesses a cinco, dez vá, escassos metros de mim neste momento, diria que não existes.
as palavras verdadeiras
Go both ways, you know? E sim, há lá/cá aconchego maior? :))))))
Jinhos.
P.S. A Frida é um doce (daqueles cheios até ao topo de lucidez e beleza e tudo o que é verdade mesmo verdade...) yep!
eh eh
Ainda posso levar um carolito. :)
Por aqui, circula só doçura, já se sabe.
Beijinhos, Joana*
Ana Salomé,
Parafraseando muito *manhosamente* :D o Forrest Gump:
SWEETNESS SEES WHO SWEET IS.
:))))))))))))))))))))))))))))))))))
Jinhos.
oh*
run jo, run :)))))
Ana Salomé,
:))))))))))))))))))))))))))))))
Jinhos.
ai que coisa mais linda esta caixa de comentários! :))))))))
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