Mas minha mãe está contente. Diz que ainda bem. Que filha, a gripe. Que filha, o México – ali tão à mão. Que filha, o Michael Jackson – que confusão, até nas nuvens! Nas nuvens. Pois... Americanices, ai!
A minha mãe, a única pessoa que não é indiferente nunca, a única contente. Ocorre-me agora que é porventura para me contentar também que insiste, vezes sem conta, à medida que se chega até hoje – adivinho até que de hoje em diante intensificar-se-á a frequência do reconto – a saga do seu avô na Califórnia.
O avô da minha mãe é para mim o tio Clemente em magro, uma figura anglicana de tão clara e esguia, em pé, olhos muito vivos, mão no ombro da avó mais impressionante de sempre, numa fotografia a sépia, a única que há deles, que descobri por acaso, nas minhas típicas incursões pelos álbuns da família, num verão antigo.
O avô que a minha mãe designa sempre por “o meu avôzinho” foi no início do século passado para a Califórnia. De barco. Da Madeira para o continente, do continente para os Açores, dos Açores para os E.U.A. Para trabalhar e ganhar o suficiente para voltar e comprar uma casa. (Aqui é quando começo a imaginá-lo a trabalhar numa plantação de algodão sulista. Com alguma sorte teria passado pelo Texas e assim os nossos destinos não se cruzando, ficam pelo menos ligados, o meu bisavô e eu, de alguma maneira, uma insondável e bonita. – Tudo o que é bonito, realmente bonito, é insondável. – Depois lembro-me de que as plantações de algodão, tal como as plantações de café africanas, não empregavam: escravizavam, e num século completamentamente outro. É quando volto a ouvir a minha mãe.) Faria o que lhe propusessem, o que aparecesse, que qualquer trabalho na América era tudo o que a agricultura na Madeira não era: dinheiro certo. (Aqui volto novamente a mim e àquele senhor da fotografia, igualzinho ao irmão da minha avó – afinal, o filho mais novo do avôzinho e, tens razão, filha, nenhum é tão parecido ao pai como o tio Clemente! – volto ao senhor da fotografia e noto o quanto aquelas mãos não me parecem mãos de terra, aquele corpo, tão franzino, não me parece corpo de terra, aquela pele, tão clara, aqueles olhos, tão vivos, aquela postura, tão outra, não me parece de terra.) É claro que não era da terra que o avôzinho ganhava a vida, achavam que não tinha corpo para isso, na realidade o “avôzinho” era sapateiro, ‘mestre de botas’. (Interrompo a minha simpatia pela saga do avôzinho para me rir, ‘mestre de botas’ é uma expressão deliciosa, hilariante.) Achavam que ele não tinha corpo para isso, mas ele achava que para isso não era preciso corpo, que para isso bastava o coração. E era assim que se escapava, sempre que podia, para a terra. Para semear e ver crescer. Que não há outro milagre que não seja esse. (A atracção pelo milagre que a minha avó herdou do pai pelo sangue, e eu, dela, não sei como, mas também.) O avôzinho casou, botas nas mãos, terra no coração – quase todo da avózinha agora. A família foi crescendo, o espaço da casa, da fartura e do coração, não. E foi por isso, foi assim, que o avôzinho deu consigo operário na maior fábrica de veludo de São Francisco. E foi por isso, foi assim que o avôzinho viveu grandes peripécias, como no dia em que saiu para comprar massa (pasta) e chegou à copa da fábrica com goma (starch). (Consigo explicar as mudanças morfofonéticas que o desconhecimento linguístico do avôzinho propiciou, mas não o vou fazer, tiraria a graça...) E foi por isso, foi assim que anos depois, missão cumprida, comprada a tal casa grande com terreno ainda maior, grande o suficiente para deixar operar-se o milagre, sem preocupações e sem pressas, muitos milagres, pequeninos, ao sabor do coração, a avózinha achava que não recebera o mesmo marido que mandara para a América, era tão bom rapaz, e agora?!, agora mente que é uma coisa!..., agora passa a vida a contar das cidades que eles têm debaixo da terra e das panelas reluzentes onde fazem a comida e da vez em que fui ao Texas, sabem que a Califórnia é um pomar de laranjeiras, mas o Texas.
Julho começa hoje. Julho é Califórnia. July is a sunk boat. A minha mãe, a única pessoa que não é indiferente nunca, a única contente. Dia 1 de Julho é Dia da Região. Feriado na Madeira, portanto. Acho que era lá que devia estar, contente, com(o) a minha mãe.
Ossos longos, ossos chatos, ossos curtos, ossos irregulares. O osso é uma estrutura exclusiva dos animais vertebrados - a única que lhe sustenta o corpo e apoia os músculos para o movimento. É osso o que protege cada órgão vital do nosso corpo: o crânio protege o cérebro, as costelas, o coração. SUB-STANTE.
quarta-feira, julho 01, 2009
July is a sunk boat
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18 comentários:
Essa sua saudade americana ! Até no dia da sua Região !
Creio que foi o Freud que explicou que só conseguimos desculpar-nos a nós mesmos uma grave falta,quando a verbalizamos...
Quando é que "verbaliza" essa sua paixão americana? Há todos os diaa pelo menos um avião para lá..
´´E SÓ UM BOCADINHO MAIS LONGE QUE BRAGA,não é ? BJS.
Querida Maria de Lourdes,
Verbalizo agora: I LOVE THE US.
:))))))))))))))))))))))))))))
Jinhos.
P.S. Daqui a menos de nada apanho um desses diários e não volto... :D
Amiga JJ,
A ternurenta história do seu avô, é a saga de milhares de madeirenses em busca do "El Dorado Americano". Foi assim no Hawai, na cultura da cana, foi no Brasil imenso,foi a Africa do Sul e a Austrália e por fim a Venezuela. E já me esquecia das Antilhas Holandesas e Jersey! Se me indicar o nome completo poderei pesquisar a data e navio que o levou para a América.
Loo Rock,
Exactamente. A diáspora, como naquele livro MADEIRENSES ERRANTES, que conhece certamemte.
Esta história é do meu BISavô.
(A minha mãe é que não vai caber em si de contente ante a perspectiva de saber data e navio de partida, perguntar-lhe-ei o nome completo do avôzinho dela e mando-lho por mail.)
Jinhos.
"Achavam que ele não tinha corpo para isso, mas ele achava que para isso não era preciso corpo, que para isso bastava o coração."
Amei, amei. Estas histórias das famílias, do que foram, o que faziam, de que forma se cruzam com as nossas, fascinam-me imenso. Obrigada mesmo por estas coisas bonitas :)
Ah, e boa viagem, acho! :P
Para mim Julho es Barcelona ;)
Um beijinho*
Frida,
Também a mim, também a mim (me fascinam). Nota-se?!
O teu Julho... Con tu hermana? :D
Por muito bonitas que sejam as cidades, são sempre mais quando as descobrimos pelas mãos dos que nos aquecem o coração. Verdad? :))))
P.S. Acabo de ver o Pedro a falar do SLB no CONTRA-INFORMAÇÃO. Tão lindo!!!
Jinhos.
Nota-se sim :)
O julho é con mi hermana, claro! Vou buscá-la lá de vez e tiro umas fériazinhas ;)
E quanto ao Pedro, sendo SLB, ele está lá :))
Beijinhos*
Frida,
Fazes tu, ela, ele.. MUITO BEM! :D
Jinhos.
Há três países que eu gosto, e que se não fosse cá português eu me imaginaria a ser cidadão desse país: a Itália (pela beleza do país, pela arte, pela cultura, pela linguagem, por tudo xD), a Holanda (pela cultura de Liberdade que imagino lá) e os USA.
E destes todos são mesmo os USA que me deixam mais a pensar, gosto da riqueza étnica do país, gosto do sistema universitário muito pluralista, gosto das cidades e das mentalidades. acho que imagino bem o porquê de teres essas saudades todas pelos US.
Este texto emana tantas saudades de casa e da família que está mais longe, é um post muito bonito, completo de orgulho e de felicidade. Ao teu melhor estilo. :)
Beijinho*
Pedro,
TU é que és um amigo de que me orgulho. :)))
Jinhos.
Querida Joana,
Desculpa a ausência... tenho andado afastada das lides virtuais. Outras prioridades, (if you know what I mean!). E descovri por acaso que o email que te enviei a agradecer o livrinho que me enviaste não foi enviado... ficou gravado nos "drafts". Dam! Desculpa!!!!!! Obrigada!!!!!!
Quanto aos EU... na minha opinião têm tudo para ser um grande país... infelizmente são apenas um país grande. Admiro a arte e a ciência mas tudo o resto é decepcionante. A quantidade de armas nas mãos de idiotas. A pena de morte. O sitema de saúde grosseiro. A política. A teocracia mal disfarçada... não é país que me cative para viver. Nem sequer para visitar enquanto a pena de morte persistir (apesar de não ser em todos os estados...)
Beijicos
E viva a (maravilhosa) Madeira!
Beijos!
Rosário,
Não há nada a desculpar.
I totally understand. :)))))
A vida é melhor - bem melhor, penso eu... não sei, não sou mãe... - com uma criança, mas bem mais difícil também - calculo!, o tempo não estica e por consequência não dá para tudo... :D
De resto, sei pelo sitemeter que continuas a passar por cá até porque conheço o teu IP. (Só duas pessoas do UK visitam este blog, duas pessoas que eu sei perfeitamente quem são, e uma és tu, claro! :))))
OS EUA não são cinquenta e muitos estados, são cinquenta e muitos PAÍSES e sendo uma meritocracia, a única que conheço, exerce um grande apelo, especialmente para quem já viveu lá - acho que naturalmente. (Senão, olha, às vezes a vida corre-me mesmo mal e o desejo de evasão é maior que eu e tão natural como querer respirar no sufoco, ou então, vá-se lá saber porquê ... são gostos!)
Ouriço,
Viva!
Jinhos a ambas.
Ouriça,
É bom que esse Viva! seja literal... é, não é? :D
Jinhos.
:-) !!!!!
Sim, já te disse numa outra ocasião que passo sempre por cá. E sim, tenho andado num deslumbramento total... mas também tenho andado ocupada com o projecto final do curso. Acabei por escrever e ilustrar um livro para crianças sobre cirurgia e apresentei também um filme sobre a nossa experiencia no hospital. Deu-me um trabalhao mas valeu apena... arrecadei uma distinção!
Por acaso não vais estar pelo Porto na semana que começa a 23 de Agosto? Nós vamos passar uma semanita em Tras-os-Montes depois de uns dois dias no Porto. Seria optimo se pudessemos encontrar-nos...
Beijicos
Rosário,
Estou sim! (Não vou de férias em Agosto). Encontramo-nos certamente! Gostaria muito!
Já registei na agenda mas depois acertamos pormenores via mail, boa?
Jinhos.
P.S. Meu Deus, quantos projectos! E tão diferentes! Ah, deslumbramento mais produtivo!...:D
Great! depois acertamos os penteiros!...
Beijicos
Rosário,
;) Of course!
Jinhos.
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